João era caixa num banco. Tinha uma vida pacata. Era solteiro e morava na Lapa de Baixo com os pais e duas irmãs.
Família muito religiosa, frequentavam a igreja da Lapa todos os domingos. Não perdiam uma missa.
Era quase meia-noite, Maria caminhava preocupada. Não devia estar na rua naquela hora. Muito perigoso. Apertava mais o passo. Estava quase correndo. Parecia que sua casa nunca chegava. Sentia um medo muito grande. Precisava passar por um pedaço da rua que possuía um grande terreno baldio e era escura.
Devia ter dado ouvidos a Sônia e ter dormido na casa dela. Mas a preocupação com a sua mãe, sozinha esperando-a, fora maior. Decidiu que compraria um celular para evitar esse tipo de problema. Bastaria ligar e pronto. Amanhã mesmo veria isso.
Agora era fácil ter um celular. Podia-se parcelar a conta em até 24 vezes sem juros em certos lugares. Continuava caminhando, rezando. A parte escura do caminho estava chegando. O relógio da igreja da Lapa soou meia-noite.
Quando estava na metade do caminho sentiu uma mão por trás que tampou sua boca e a arrastou para o meio do mato. Ela lutou, mas a mão era forte. Foi jogada no chão. Implorou para que ele não fizesse nada. Ele a mandou calar a boca. A lua, que até então estava encoberta por nuvens, surgiu. Redonda, grande, iluminou o rosto do homem. Maria olhou bem para ele. Implorou, pediu, chorou. Ele mandou calar a boca. Enquanto ele fez o que quis Maria olhou bem para ele. Quando acabou ele disse:
-Você olhou muito para mim. Ele sentiu o olhar mudo de Maria. Um olhar cheio de ódio. Ela disse numa voz rouca:
- Eu vou me vingar de você. Mesmo se você me matar eu voltarei e me vingarei de você. Ele riu e disse:
- Você não é a primeira que eu mato. Colocou as mãos no pescoço dela. No outro dia, uns moleques encontraram o corpo e chamaram a polícia.
João, como todos os dias, chegou em casa às seis horas. Entrou, tomou banho, jantou e se recolheu em seu quarto. Trancou a porta. Os pais e as irmãs ficaram na sala assistindo televisão. No dia seguinte, saiu de casa e viu, do outro do lado da rua, um cachorro enorme preto. Não se incomodou. Não gostava de cachorros. Trabalhou normalmente.
Quando chegou em casa, viu o cachorro novamente. Todos os dias o cachorro estava ali, acompanhando quando ele saía e esperando a sua chegada. A presença ostensiva do cachorro incomodava João. Um mês depois, eram dois cachorros. Depois três e depois quatro. Eram todos negros e grandes. Olhavam para ele. Não o seguiam na rua.
Quando João, de sua janela, olhava para a rua, os cachorros estavam olhando para ele. Resolveu que no dia seguinte chamaria a carrocinha para recolher os cachorros. Assim o fez. A carrocinha levou os cachorros e eles não esboçaram nenhuma reação.
Na manhã seguinte, porém, lá estavam novamente os cachorros, olhando para João que os olhava da janela.
Segunda-feira. Onze horas da noite. João olhou a rua de sua janela. Os cachorros não estavam lá fora. Sem fazer barulho, saiu de casa. Caminhou olhando para trás. Não viu ninguém. Muito menos os cachorros. Entrou no mato. Sentou sobre uma pedra e esperou.
Logo surgiu uma moça caminhando apressada. Ele se levantou e a atacou. Quando a estava arrastando para o meio da mata sentiu uma fisgada na batata da perna e gritou de dor. Soltou a moça. Ela correu. Ele olhou para baixo e viu o enorme cachorro preto preso em sua perna. Apareceu outro que lhe mordeu a outra perna. João caiu. Apareceram os outros dois. Os cachorros o arrastaram para a mata. João gritava de dor. As nuvens andaram e a lua cheia apareceu no céu. Quando pararam de arrastá-lo, um dos cachorros subiu em cima dele e olhou nos olhos dele. João viu o olhar do cachorro sob a luz do luar:
- Eu não disse que ia voltar e me vingar. Voltei e trouxe as suas outras vítimas.
João compreendeu. Fechou os olhos. Os cachorros estraçalham o corpo de João. Comeram sua carne a noite inteira.
Cavaram um buraco e enterraram os ossos.