BEM, vai casar, tanto melhor! pensou Rubião.
Entre aquela noite e o dia do casamento, Rubião apanhou ao ar algumas olhadas
de Sofia, suspeitas de tentação; Carlos Maria, se lhe correspondeu, foi antes por polidez que outra coisa. Rubião concluiu que o caso era fortuito; lembrava-se ainda da lágrima
de Sofia, na noite dos anos, quando lhe explicou a história da carta.
Oh! boa lágrima inesperada! Tu, que bastaste a persuadir um homem, podes não
ser explicável a outros, e assim vai o mundo. Que importa que os olhos não fossem
costumados ao choro, nem que a noite parecesse exaltar sentimentos mui diversos da
melancolia? Rubião a viu cair; ainda agora a vê de memória. Mas a confiança de Rubião
não vinha só da lágrima, vinha também da presente Sofia, que nunca fora tão solícita
nem tão dada com ele. Parecia arrependida de todo o mal causado, prestes a saná-lo, ou
por afeição tardia, ou pelo próprio malogro da primeira aventura. Há delitos virtuais,
que dormem. Há óperas remissas na cabeça de um maestro, que só esperam os primeiros
compassos da inspiração.
CAPÍTULO CXXII
AINDA bem que se casa! repetiu o Rubião.
Não se demorou o casamento: três semanas. Na manhã da do dia aprazado,
Carlos Maria abriu os olhos com algum espanto. Era ele mesmo que ia casar? Não havia
dúvida; mirou-se ao espelho, era ele. Relembrou os últimos dias, a marcha rápida dos
sucessos, a realidade da afeição que tinha à noiva, e, enfim, a felicidade pura que lhe ia
dar. Esta derradeira idéia enchia-o de grande e rara satisfação. Ia-as ruminando ainda, a
cavalo, no passeio habitual da manhã; desta vez escolhera o bairro do Engenho Velho.
Posto se achasse costumado aos olhos admirativos, via agora em toda a gente um
aspecto parecido com a notícia de que ele ia casar. As casuarinas de uma chácara,
quietas antes que ele passasse por elas, disseram-lhe coisas mui particulares, que os
levianos atribuiriam à aragem que passava também, mas que os sapientes reconheceriam
ser nada menos que a linguagem nupcial das casuarinas. Pássaros saltavam de um lado
para outro, pipilando um madrigal. Um casal de borboletas, — que os japões têm por
símbolo da fidelidade, por observarem que se pousam de flor em flor, andam quase
sempre aos pares, — um casal delas acompanhou por muito tempo o passo do cavalo,
indo pela cerca de uma chácara que beirava o caminho, volteando aqui e ali, lépidas e
amarelas. De envolta com isto, um ar fresco, céu azul, caras alegres de homens,
montados em burros, pescoços estendidos pela janela fora das diligências, para vê-lo e
ao seu garbo de noivo. Certo, era difícil crer que todos aqueles gestos e atitudes da
gente, dos bichos e das árvores, exprimissem outro sentimento que não fosse a
homenagem nupcial da natureza.
As borboletas perderam-se em uma da moitas mais densas da cerca. Seguiu-se
outra chácara, despida de árvores, portão aberto, e ao fundo, fronteando com o portão,
uma casa velha, que encarquilhava os olhos sob a forma de cinco janelas de peitoril,
cansadas de perder moradores. Também elas tinham visto bodas e festins; o século
ainda as achou verdes de novidades e de esperança.
Não cuideis que esse aspecto contristou a alma do cavaleiro. Ao contrário, ele
possuía o dom particular de remoçar as ruínas e viver da vida primitiva das coisas.
Gostou até de ver a casa velhusca, desbotada, em contraste com as borboletas tão vivas
de há pouco. Parou o cavalo; evocou as mulheres que por ali entraram, outras galas,
outros rostos, outras maneiras. Porventura as próprias sombras das pessoas felizes e
extintas vinham agora cumprimentá-lo também, dizendo-lhe pela boca invisível todos os
nomes sublimes que pensavam dele. Chegou a ouvi-las e sorrir. Mas uma voz estrídula
veio mesclar-se ao concerto; — um papagaio, em gaiola pendente da parede externa da
casa: “Papagaio real, para Portugal; quem passa? Currupá, papá, Grrr... Grrr...” As sombras fugiram, o cavalo foi andando. Carlos Maria aborrecia o papagaio, como
aborrecia o macaco, duas contrafacções da pessoa humana, dizia ele.
— A felicidade que eu lhe der será assim também interrompida? reflexionou
andando.
Cambaxirras voaram de um para outro lado da rua, e pousaram cantando a sua
língua própria; foi uma reparação. Essa língua sem palavras era inteligível, dizia uma
porção de coisas claras e belas. Carlos Maria chegou a ver naquilo um símbolo de si
mesmo. Quando a mulher, aturdida dos papagaios do mundo, viesse caindo de fastio, ele
a faria erguer aos trilhos da passarada divina, que trazia em si, idéias de ouro, ditas por
uma voz de ouro: “Oh! como a tornaria feliz! Já a antevia ajoelhada, com os braços
postos nos seus joelhos, a cabeça nas mãos e os olhos nele, gratos, devotos, amorosos,
toda implorativa, toda nada.
CAPÍTULO CXXIII
ORA bem, aquele quadro, na mesma hora em que aparecia aos olhos da imaginação do
noivo, reproduzia-se no espírito da noiva, tal qual. Maria Benedita, posta à janela,
fitando as ondas que se quebravam ao longe e na praia, via-se a si mesma, ajoelhada aos
pés do marido, quieta, contrita, como à mesa da comunhão para receber a hóstia da
felicidade. E dizia consigo: “Oh! como ele me fará feliz!” Frase e pensamentos eram
outros, mas a atitude e a hora eram as mesmas.
CAPÍTULO CXXIV
CASARAM-SE; três meses depois foram para a Europa. Ao despedir-se deles, Dona
Fernanda estava tão alegre como se viesse recebê-los de volta; não chorava. O prazer
de os ver felizes era maior que o desgosto da separação.
— Você vai contente? perguntou a Maria Benedita, pela última vez, junto à
amurada do paquete.
— Oh! muito!
A alma de Dona Fernanda debruçou-se-lhe dos olhos, fresca, ingênua, cantando
um trecho italiano, — porque a soberba guasca preferia a música italiana — talvez esta
ária da Lucia: Ó bell’alma innamorata. Ou este pedaço do Barbeiro:
Ecco ridente in cielo
Spunta la bella aurora
CAPÍTULO CXXV
SOFIA não foi a bordo, adoeceu e mandou o marido. Não vão crer que era pesar nem
dor; por ocasião do casamento, houve-se com grande discrição, cuidou do enxoval da
noiva e despediu-se dela com muitos beijos chorados. Mas ir a bordo pareceu-lhe
vergonha. Adoeceu; e, para não desmentir do pretexto, deixou-se estar no quarto. Pegou
de um romance recente; fora-lhe dado pelo Rubião. Outras coisas ali lhe lembravam o
mesmo homem, tetéias de toda a sorte, sem contar jóias guardadas. Finalmente, uma
singular palavra que lhe ouvira, na noite do casamento da prima, até essa veio ali para o
inventário das recordações do nosso amigo.
— A senhora é já a rainha de todas, disse-lhe ele em voz baixa; espere que ainda
a farei imperatriz.
Sofia não pôde entender esta frase enigmática. Quis supor que era uma aliciação
de grandeza para torná-la sua amante; mas excluiu tal intenção por demasiado vaidosa.
Rubião, posto não fosse agora o mesmo homem encolhido e tímido de outros tempos,
não se mostrava tão cheio de si que lhe pudesse atribuir tão alta presunção. Mas que era
então a frase? Talvez um modo figurado de dizer que a amaria ainda mais. Sofia
acreditava possível tudo. Não lhe faltavam galanteios; chegou a ouvir aquela declaração
de Carlos Maria, provavelmente ouvira outras, a que deu somente a atenção da vaidade.
E todas passaram; Rubião é que persistia. Tinha pausas, filhas de suspeitas, mas as
suspeitas iam como vinham.
“Ele merece ser amado”, leu Sofia na página aberta do romance, quando ia
continuar a leitura; fechou o livro, fechou os olhos, e perdeu-se em si mesma. A escrava
que entrou daí a pouco, trazendo-lhe um caldo, supôs que a senhora dormia e retirou-se
pé ante pé.
CAPÍTULO CXXVI
ENTRETANTO, Rubião e Palha desciam do paquete para a lancha e tornaram ao cais
Pharoux. Vinham cuidosos e calados. Palha foi o primeira que abriu a boca.
— Ando há tempos para dizer-lhe uma coisa importante, Rubião.
CAPÍTULO CXXVII
RUBIÃO acordou. Era a primeira vez que ia a um paquete. Voltava com a alma cheia
dos rumores de bordo, a lufa-lufa das gentes que entravam e saíam, nacionais,
estrangeiros, estes de vária casta, franceses, ingleses, alemães, argentinos, italianos, uma
confusão de línguas, um cafarnaum de chapéus, de malas, cordoalha, sofás, binóculos a
tiracolo, homens que desciam ou subiam por escadas para dentro do navio, mulheres
chorosas, outras curiosas, outras cheias de riso, e muitas que traziam de terra flores ou
frutas, — tudo aspectos novos. Ao longe, a barra por onde tinha de ir o paquete. Para lá
da barra, o mar imenso, o céu fechado e a solidão. Rubião renovou os sonhos do mundo
antigo, criou uma Atlântida, sem nada saber da tradição. Não tendo noções de geografia,
formava uma idéia confusa dos outros países, e a imaginação rodeava-os de um nimbo
misterioso. Como não lhe custava viajar assim, navegou de cor algum tempo, naquele
vapor alto e comprido, sem enjôo, sem vagas, sem ventos, sem nuvens.
CAPÍTULO CXXVIII
A MIM? perguntou Rubião depois de alguns segundos.
— A você, confirmou o Palha. Devia tê-la dito há mais tempo, mas estas
histórias de casamento, de comissão das Alagoas, etc., atrapalharam-me, e não tive
ocasião; agora, porém, antes do almoço...Você almoça comigo?
— Sim, mas que é?
— Uma coisa importante.
Dizendo isto, tirou um cigarro, abriu-o, desfiou o fumo com os dedos, enrolou a
palha outra vez, e riscou um fósforo, mas o vento apagou o fósforo. Então pediu ao
Rubião que lhe fizesse o favor de segurar o chapéu, para poder acender outro. Rubião
obedeceu impaciente. Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente
fazer-lhe crer que se trataava de um terremoto; a realidade viria a ser um benefício.
Puxadas duas fumaças:
— Estou com meu plano de liquidar o negócio; convidaram-me aí para uma casa
bancária, lugar de diretor, e creio que aceito.
Rubião respirou.
— Pois sim; liquidar já?
— Não, lá para o fim do ano que vem.
— E é preciso liquidar?
— Cá para mim, é. Se a história do banco não fosse segura, não me animaria a
perder o certo pelo duvidoso; mas é seguríssima.
— Então no fim do ano que vem soltamos os laços que nos prendem...
Palha tossiu.
— Não, antes, no fim deste ano.
Rubião não entendeu; mas o sócio explicou-lhe que era útil desligarem já a
sociedade, a fim de que ele sozinho liquidasse a casa. O banco podia organizar-se mais
cedo ou mais tarde; e para que sujeitar o outro às exigências da ocasião? Demais, o
Doutor Camacho afirmava que, em breve, Rubião estaria na câmara, e que a queda do
ministério Itaboraí era certa.
— Seja o que for, concluiu; é sempre melhor desligarmos a sociedade com
tempo. Você não vive do comércio; entrou com o capital necessário ao negócio, —
como podia dá-lo a outro ou guardá-lo.
— Pois sim, não tenho dúvida, concordou o Rubião.
E depois de alguns instantes:
— Mas diga-me uma coisa, essa proposta traz algum motivo oculto? é
rompimento de pessoas, de amizade... Seja franco, diga tudo...
— Que caraminhola é essa? redargüiu o Palha. Separação de amizade, de
pessoas... Mas você está tonto. Isto é do balanço do mar. Pois eu, que tenho trabalhado
tanto por você, eu que o faço amigo dos meus amigos, que o trato como um parente,
como um irmão, havia de brigar à toa? Aquele mesmo casamento de Maria Benedita
com o Carlos Maria devia ser com você, bem sabe, se não fosse a sua recusa. A gente
pode romper um laço sem romper os outros. O contrário seria despropósito. Então todos
os amigos de sociedade ou de família são sócios de comércio? E os que não forem
comerciantes?
Rubião achou excelente a razão, e quis abraçar o Palha. Este apertou-lhe a mão
satisfeitíssimo; ia ver-se livre de um sócio, cuja prodigalidade crescente podia trazer-lhe
algum perigo. A casa estava sólida; era fácil entregar ao Rubião a parte que lhe
pertencesse, menos as dívidas pessoais e anteriores. Restavam ainda algumas daquelas
que o Palha confessou à mulher, na noite de Santa Teresa, capítulo L. Pouco tinha pago;
geralmente era o Rubião que abanava as orelhas ao assunto. um dia, o Palha, querendo
dar-lhe à força algum dinheiro, repetiu o velho provérbio: “Paga o que deves, vê o que
te fica.” Mas o Rubião, gracejando:
— Pois não pagues, e vê se te não fica ainda mais.
— É boa! redargüiu o Palha rindo e guardando o dinheiro no bolso.
CAPÍTULO CXXIX
NÃO havia banco, nem lugar de diretor, nem liquidação; mas, como justificaria o Palha
a proposta de separação, dizendo a pura verdade? Daí a invenção, tanto mais pronta,
quanto o Palha tinha amor aos bancos, e morria por um. A carreira daquele homem era
mais próspera e vistosa. O negócio corria-lhe largo; um dos motivos da separação era
justamente não ter que dividir com outro os lucros futuros; Palha, além do mais, possuía
ações de toda a parte, apólices de ouro do empréstimo Itaboraí, e fizera uns dois fornecimentos para a guerra, de sociedade com um poderoso, nos quais ganhou muito.
Já trazia apalavrado um arquiteto para lhe construir um palacete. Vagamente pensava
em baronia.