IAM casar? Mas como é então que...? Maria Benedita, — era Maria Benedita que
casava com Carlos Maria; mas então Carlos Maria... Compreendia agora; era tudo
engano, confusão; o que parecia ser com uma pessoa era com outra, e aí está como a
gente pode chegar à calúnia e ao crime.
Assim reflexionava Rubião, saindo para a sala de jantar, onde os copeiros
adereçavam a mesa da ceia. E continuou, andando ao comprido da sala: “— Ora vejam!
E o Palha queria justamente casar-me com a prima, mal sabendo que o destino lhe
guardava outro noivo. Não é feio rapaz; é muito mais bonito que ela. Ao pé de Sofia,
Maria Benedita vale pouco ou nada; mas a simpatia é assim mesmo... Casam-se, e
breve... Será de estrondo o casamento? Deve ser; o Palha vive agora um pouco melhor...
— e Rubião lançava os olhos aos móveis, porcelanas, cristais, reposteiros. — Há de ser
de estrondo. E depois o noivo é rico...” Rubião pensou na carruagem e nos cavalos que
levaria; tinha visto uma parelha soberba, no Engenho Velho, dias antes, que estava
mesmo ao pintar. Ia fazer a encomenda de outra assim, fosse por que preço; tinha
também de presentear a noiva. Ao pensar nela viu-a entrar na sala.
— Prima Sofia onde está? perguntou ela ao Rubião.
— Não sei; esteve aqui há pouco.
E, como a visse disposta a ir adiante, pediu-lhe urna palavra, e que se não se
zangasse. Maria Benedita esperou; ele, sem hesitação, deu-lhe os parabéns. Sabia que ia
casar... Maria Benedita ficou muito vermelha, e murmurou que não divulgasse nada.
Não havia então nenhum criado ali; Rubião pegou-lhe na mão e fechou-a entre as suas.
— Eu sou da casa, disse; a senhora merece ser feliz, e espero que seja.
Um pouco assustada, Maria Benedita puxou a mão e libertou-a; mas, para o não
aborrecer, sorriu. Não era preciso tanto; ele estava encantado. Sabemos que a moça não
era bonita. Pois estava linda, à força da felicidade. A natureza parecia haver posto nela
as suas mais finas idéias. Sorrindo igualmente, Rubião continuou:
— Foi sua prima que me disse; recomendou-me segredo. Não direi nada antes
do tempo. Mas que tem que diga à senhora? A senhora é boa e merece tudo. Não é
preciso esconder os olhos; casar não é vergonha. Vamos lá; levante a cabeça e ria.
Maria Benedita pôs nele os olhos radiantes.
— Isso! aplaudiu Rubião. Que mal há em confessar-se a um amigo? Deixe-me
dizer-lhe a verdade; creio que a senhora será feliz, mas admito que ele ainda será mais
feliz. Não? Verá se não falo verdade; ele mesmo lhe há de dizer o que sentir, e, se for
sincero, a senhora reconhecerá que eu estou apenas profetizando. Bem sei que não tem
balança para medir os sentimentos; enfim, o que eu quero dizer é que a senhora é uma
linda e boa criatura... Vá, vá-se embora; se não, fico dizendo verdades, e a senhora está
corando muito...
De fato, Maria Benedita corava de gosto, ouvindo a linguagem de Rubião. Em
casa, achara aquiescência, nada mais. O próprio Carlos Maria não era assim terno;
gostava dela com circunspecção. Falava-lhe da felicidade conjugal, como de uma taxa
que ia receber do destino, — pagamento devido, integral e certo. Também não era
preciso que a tratasse de outro modo, para que ela o adorasse sobre todas as coisas deste
mundo. Rubião repetiu a despedida, e ficou a olhar para ela, como para uma filha. Viua ir assim, atravessar a sala, viva e satisfeita, — tão diversa do que achara em outros
tempos, a desaparecer por uma das portas. Não pôde reter esta palavra:
— Linda e boa criatura!
CAPÍTULO CXVII
A história do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a
pena dizê-la. Fique desde já admitido que, se não fosse a epidemia das Alagoas, talvez
não chegasse a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até
necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que
aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona,
— um triste molambo de mulher, — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no
chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher,
perguntou-lhe se a casa era dela.
— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
— Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; não é preciso estar
embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom padre Chagas! —
Chamava-se Chagas. — Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos
essa idéia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não
contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, — a ponto de
não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo idéias consoladoras.
Bom padre Chagas!
É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
— Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; não é preciso estar
embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom padre Chagas! —
Chamava-se Chagas. — Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos
essa idéia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não
contando o respeito que aquele bêbado tinha o princípio da propriedade — a ponto de
não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo idéias consoladoras.
Bom padre Chagas!
CAPÍTULO CXVIII
ADEUS, padre Chapas! Vou à história do casamento. Que Maria Benedita gostava de
Carlos Maria, é coisa vista ou pressentida desde aquele baile da Rua dos Arcos, em que
ele e Sofia valsaram tanto. Vimo-la na manhã seguinte, pronta a ir para a roça; a prima
apaziguou-a com a promessa de que lhe estava arranjando um noivo. Maria Benedita
cuidou que era o valsista da véspera, e ficou esperando. Não lhe confessou nada. por
vergonha, a princípio, — e depois, por lhe não fazer perder o efeito da novidade, quando
Sofia houvesse de descobrir o nome da pessoa. Se confessasse desde logo, podia
acontecer também que a outra afrouxasse na tarefa, e lá se perdia a causa. Não façamos
caso disto; são pequenos cálculos de moça.
Sobreveio a epidemia das Alagoas. Sofia organizou a comissão, que trouxe
novas relações à família Palha. Incluída entre as senhoras que formavam uma das
subcomissões, Maria Benedita trabalhou com todas, mas granjeou em especial a estima
de uma delas, Dona Fernanda, esposa de um deputado. Dona Fernanda tinha pouco mais
de trinta anos, era jovial, expansiva, corada e robusta; nascera em Porto Alegre, casara
com um bacharel das Alagoas, deputado agora por outra província, e, segundo corria,
prestes a ser ministro de Estado. A naturalidade do marido foi o pretexto para metê-la na
comissão; e bem acertado foi, porque ela pedia como quem manda, não tinha
acanhamento nem admitia recusa. Carlos Maria, que era seu primo, foi visitá-la logo
que ela chegou ao Rio de Janeiro. Achou-a mais formosa ainda que em 1865, último ano
em que a vira, e talvez fosse verdade; concluiu que o ar do sul era feito para enrijar as
pessoas, duplicar-lhe as graças, e prometeu ir lá acabar os seus dias.
— Vamos para lá, que lhe arranjarei casamento, disse ela. Conheço uma moça
de Pelotas, que é um biju, e só casa com moço da Corte.
— Comigo, naturalmente?
— Da Corte e de olhos grandes. Olhe que não estou brincando. É uma guasca de
primeira ordem. Tenho aqui o retrato dela.
Dona Fernanda abriu o álbum e mostrou o retrato da pessoa.
— Não é feia, concordou ele.
— Só?
— Sim, é bonita.
— Onde é que você bota os seus chinelos velhos, primo?
Carlos Maria sorriu sem responder; não gostou da expressão. Quis passar a outro
assunto, mas Dona Fernanda tornou ao casamento da amiga de Pelotas. Mirava o
retrato, coloria-o de palavra, dizendo como eram os olhos, os cabelos, a tez; e depois fez
uma pequena biografia de Sonora. Tinha este bonito nome. O padre que a batizou
hesitou em dar-lho, apesar do respeito e influência do pai da menina, rico estancieiro;
mas, afinal cedeu, considerando que as virtudes da pessoa podiam levar o nome ao rol
dos santos.
— Crê que ela vá ao rol dos santos? perguntou Carlos Maria.
— Se casar com você, creio.
— Não me explica nada; casando com o diabo sucederá a mesma coisa, e com
mais certeza, por causa do martírio. Santa Sonora, não é feio nome, responde bem ao
sentido. Santa Sonora... Em todo caso, prima...
— Você tem raça de judeu; cale-se, interrompeu ela. Recusa então a minha
guasca? continuou indo pôr o álbum no seu lugar.
— Não recuso; deixe-me ir indo com o meu celibato, que é meio caminho do
céu.
Dona Fernanda soltou uma gargalhada.
— Deus de misericórdia! Você acredita mesmo que vai para o céu?
— Já cá estou, há vinte minutos. Pois que é esta sala, tranqüila, fresca, tão longe
da gente que anda lá fora? Aqui conversamos os dois, sem ouvir blasfêmias, sem aturar
espíritos aleijados, tísicos, escrupulosos, insuportáveis, o próprio inferno, em suma.
Aqui é o céu, — ou um pedaço do céu; uma vez que nós cabemos nele, vale pelo
infinito. Conversamos de Santa Sonora, de São Carlos Maria e de Santa Fernanda, que,
para contrastar com São Gonçalo, fez-se casamenteira das moças. Onde é que há outro
céu como este?
— Em Pelotas.
— Pelotas fica tão longe! suspirou ele estendendo as pernas e pondo os olhos no
lustre da sala.
— Está bom, é só a primeira investida; darei outras, até você acabar de querer.
Carlos Maria sorriu e olhou para as borlas caídas do cordão de seda que ela
trazia à cintura, atado por um laço frouxo; ou para ver borlas, ou para notar a gentileza
do corpo. Viu bem, ainda uma vez, que a prima era uma bela criatura. A plástica levoulhe os olhos, — o respeito os desviou; mas, não foi só a amizade que o fez demorar
ainda ali, e o trouxe novamente àquela casa. Carlos Maria amava a conversação das
mulheres, tanto quanto, em geral, aborrecia a dos homens. Achava os homens
declamadores, grosseiros, cansativos, pesados, frívolos, chulos, triviais. As mulheres, ao
contrário, não eram grosseiras, nem declamadoras, nem pesadas. A vaidade nelas ficava
bem, e alguns defeitos não lhes iam mal; tinham, ao demais, a graça e a meiguice do
sexo. Das mais insignificantes, pensava ele, há sempre alguma coisa que extrair.
Quando as achava insípidas ou estúpidas, tinha para si que eram homens mal acabados.
Entretanto, as relações de Dona Fernanda e Maria Benedita iam-se estreitando.
Esta, além de acanhada, andava triste por aquele tempo; foi justamente a disparidade de
caráter e de situação que as prendeu uma à outra. Dona Fernanda possuía, em larga
escala, a qualidade da simpatia; amava os fracos e os tristes, pela necessidade de os
fazer ledos e corajosos. Contavam-se dela muitos atos de piedade e dedicação.
— A senhora que tem? perguntou ela um dia à amiguinha. Quase nunca ri, anda
sempre com os olhos espantados, pensando...
Maria Benedita respondeu que não tinha nada, que era o seu modo; e sorria
dizendo isto, por simples condescendência. Aludiu à perda da mãe, como uma das
causas de suas melancolias. Dona Fernanda entrou a levá-la a toda parte, a trazê-la para
jantar, a dar-lhe lugar no camarote, se ia ao teatro; e graças a isso, e ao gênio galhofeiro,
sacudiu da alma da moça os corvos aborrecidos que lá avoejavam. Costume e afeição
depressa as fizeram íntimas. Não obstante, Maria Benedita continuou a calar o seu
mistério.
— Seja qual for o mistério, pensou um dia Dona Fernanda, acho que o melhor é
casá-la com o Carlos Maria; a Sonora que espere.
— Você precisa casar, Maria Benedita, disse-lhe dali a dois dias, de manhã, na
chácara, em Mata-Cavalos; Maria Benedita tinha ido ao teatro com ela, e passara lá a
noite. — Não quero estremecimentos, precisa casar e há de casar... Desde anteontem
que estou para lhe dizer isto, mas estas coisas conversadas em sala ou na rua não têm
força. Aqui na chácara é diferente. E se você tem ânimo de trepar comigo um pedaço do
morro, então é que ficaremos bem. Vamos?
— Está fazendo calor....
— É mais poético, menina... Ah! carioca sem sangue! Pois fiquemos aqui neste
banco. Sente-se, assim, eu aqui ao pé, armada para tudo. Casa ou morre. Não me
replique. Você não é feliz, — continuou mudando o tom; por mais que faça, eu vejo que você passa a vida sem gosto. Venha cá, diga-me com franqueza, tem inclinação a
alguém? Se tem, confesse, que eu mando procurar a pessoa.
— Não tenho.
— Não? Pois é justamente o que nos serve. Não precisa pôr escritos no coração;
conheço um bom inquilino...
Maria Benedita voltou-se de todo para ela, com os lábios entreabertos e os olhos
escancarados. Parecia recear da proposta ou ansiar por ela. Dona Fernanda, não atinando
com o verdadeiro estado da amiga, pegou-lhe na mão primeiro, e pediu que lhe dissesse
tudo. De força que amava a alguém, era claro, via-se-lhe nos olhos, cumpria confessálo, instava, rogava, — intimaria, se preciso fosse. A mão de Maria Benedita esfriara, os
olhos cavavam o chão, e, por alguns instantes, nenhuma delas disse nada.
— Vamos, fale, repetiu Dona Fernanda.
— Não tenho que dizer.
Dona Fernanda fazia gestos de incredulidade; apertava-a cada vez mais, passoulhe a mão pela cintura, e ligou-a muito a si; disse-lhe baixinho, dentro do ouvido, que
era como se fosse sua própria mãe. E beijava-a na face, na orelha, na nuca, encostavalhe a cabeça ao ombro, acarinhava-a com a outra mão. Tudo, tudo, queria saber tudo. Se
o namorado estava na lua, mandaria buscá-lo à lua, — fosse onde fosse, — exceto ao
cemitério, mas, se estivesse no cemitério, dar-lhe-ia outro muito melhor, que faria
esquecer o primeiro em poucos dias. Maria Benedita ouvia agitada, palpitante, não
sabendo por onde escapasse, — prestes a dizer, e calando a tempo, como se defendesse
o seu pudor. Não negava, não confessava. — mas, como também não sorria, e tremia de
comoção, era fácil adivinhar meia verdade, ao menos.
— Mas então não sou sua amiga, não tem confiança em mim? Faça de conta que
sou sua mãe.
Maria Benedita pouco mais resistiu; gastara as forças e sentia a necessidade de
revelar alguma coisa. Dona Fernanda escutou-a comovida. O sol vinha já lambendo as
cercanias do banco, não tardou que lhes trepasse aos sapatos, à barra dos vestidos e aos
joelhos; mas nenhuma deu por ele. O amor as absorvia; a exposição de uma tinha para a
outra um enlevo raro. Era uma paixão não sabida, não compartida, não adivinhada;
paixão que ia perdendo de índole e de espécie para se converter em adoração pura. A
princípio, quando ela via a pessoa amada, passava por dois estados mui diversos, — um
que não podia definir, alvoroço, tonteira, pancadas no coração, quase um desmaio; o
segundo era de contemplação. Agora era quase que só este. Tinha chorado muito
consigo, perdera noites e noites de saudades; pagou caro a ambição das suas esperanças.
Mas não perderia nunca a certeza de que ele era superior a todos os demais homens, um
ente divino, que, ainda não fazendo caso dela, mereceria sempre ser adorado.
— Bem, disse Dona Fernanda, quando a amiga se calou de todo. Vamos ao
essencial que é não ficar penando à toa. Não, queridinha, isto de adorar a um homem
que não faz caso da gente, é poesia. Deixe-se de poesia. Olhe que só você perde no
negócio, porque ele casa com outra, os anos passam, a paixão monta na garupa deles, e
um dia, quando você menos pensar, acorda sem amor nem marido. E quem é esse
bárbaro?
— Isso não digo, respondeu Maria Benedita, levantando-se do banco.
— Pois não diga, acudiu Dona Fernanda, pegando-lhe nos pulsos e fazendo-a
sentar nos seus joelhos. A questão principal é casar; — não podendo ser com esse, será
com outro.
— Não, não caso.
— Só com ele?
89
— Nem sei se com ele, respondeu Maria Benedita, depois de alguns instantes,
gosto dele, como gosto de Deus, que está no céu.
— Virgem Santíssima! Que blasfêmia! Duas blasfêmias, menina; a primeira é
que não se deve amar a ninguém como a Deus, — a segunda é que um marido, ainda
sendo mau, sempre é melhor que o melhor dos sonhos.
CAPÍTULO CXIX
“UM marido, ainda sendo mau, sempre é melhor que o melhor dos sonhos.” A máxima
não era idealista, Maria Benedita protestou contra ela, pois não era melhor sonhar do
que chorar? Os sonhos acabam ou alteram-se, enquanto que os maus maridos podem
viver muito. — A senhora diz isso, concluiu Maria Benedita, porque Deus lhe destinou
um anjo... Olhe, lá vem ele.
Teófilo, marido de Dona Fernanda, que as vira a distância, veio ter com elas;
trazia na mão um diário amarrotado. Não saudou a hóspede; foi direto à mulher.
— Você quer saber o que me fizeram, Nanã? disse ele com os dentes cerrados.
Saiu hoje o meu discurso do dia 5. Veja esta frase; eu tinha dito: Na dúvida abstém-te, é
o conselho do sábio. E puseram: Na dívida abstém-te... É insuportável! Nota que
tratava-se justamente de um crédito do ministério da marinha, alegando-se no debate
que muitas despesas estavam feitas. De modo que pode parecer chulice da minha parte;
é como se aconselhasse o calote. Em todo caso, é disparate.
— Mas você não leu as provas?
— Li, mas o autor é o menos apto para as ler bem. Na dívida abstém-te,
continuou ele com os olhos na folha. E bufando: — Isto só com...
Estava consternado. Era homem de talento, de gravidade e de trabalho; mas,
naquele instante, todas as grandes obras, os mais temerosos problemas, as batalhas mais
decisivas, as revoluções mais profundas, o sol e a lua, e todas as constelações, e todas as
alimárias, e todas as gerações humanas, valiam menos que a troca de um u por i. Maria
Benedita olhava para ele sem entendê-lo. Cuidava padecer a maior tristura; mas ali
estava outra tão grande como a sua, e muito mais aflitiva. Assim, a melancolia roaz de
uma pobre criatura era tanto como um erro tipográfico. Teófilo, que só então deu por
ela, estendeu-lhe a mão; estava fria. Ninguém finge as mãos frias; devia padecer
deveras. Instantes depois, atirou a folha ao chão, com um gesto violento, e foi-se
embora.
— Mas, Teófilo, emenda-se amanhã, disse-lhe D. Fernanda, levantando-se.
Teófilo, sem voltar atrás, deu de ombros, desesperado. A mulher correu a ele; a
amiga seguiu-a espantada. Ficou só o banco, já agora livre delas, recebendo em cheio os
raios do sol, que não ama nem faz discursos. Dona Fernanda levou o marido para um
gabinete, e, à força de beijos, consolou-o daquele golpe. Ao almoço, já ele sorria, ainda
que de um sorriso pálido; a mulher, para desviá-lo da preocupação, aventou o plano de
casar Maria Benedita, e havia de ser com um deputado, se existisse na câmara algum
solteiro, qualquer que fosse a opinião. Podia ser governista, oposicionista, ambas as
coisas, ou nada, — contanto que fosse marido. Sobre este tema fez algumas reflexões,
vivas, lépidas, que encheram o tempo e destinavam-se a matar a lembrança da troca de
letras. Pia criatura! Teófilo, entendendo a mulher, ia-se fazendo alegre, e concordava na
conveniência de casar Maria Benedita.
— O pior, acudiu a mulher olhando para a amiga, é que ela ama a alguém, cujo
nome não quer dizer.
— Nem é preciso, atalhou o marido enxugando os beiços; vê-se bem que ela
gosta de teu primo.
CAPÍTULO CXX
NO domingo seguinte, Dona Fernanda foi à igreja de Santo Antonio dos Pobres.
Acabada a missa, viu surgir do movimento dos fiéis que se cumprimentavam entre si, ou
saudavam o altar, nada menos que o primo, ereto, risonho, gravemente trajado,
estendendo-lhe a mão.
— Veio também à missa? perguntou espantada.
— Vim.
— Vem sempre?
— Nem sempre, muitas vezes.
— Francamente, não esperava tanta devoção em você. Os homens são, em geral,
uns ímpios. Teófilo não pisa na igreja, a não ser para batizar os filhos. Você então é
religioso?
— Não posso responder com certeza; mas tenho horror à banalidade, que é dizer
mal da religião. E basta; vim à missa, não vim confessar-me; agora, vou conduzi-la à
casa, e, se me oferecer almoço, almoçarei com vocês. Salvo se quiserem vir almoçar
comigo; é nesta rua, como sabe.
— Iria eu só, se pudesse ser, para lhe dar uma notícia muito comprida.
— Vamos então devagar, disse Carlos Maria à porta da igreja, oferecendo-lhe o
braço. E dois passos adiante: — Notícia importante?
— Importante e deliciosa.
— Querem ver que Deus, sempre misericordioso, vai levar para si o nosso
querido Teófilo, deixando aqui ao desamparo a mais gentil todas as viúvas... Não
precisa fazer essa cara, prima; deixe estar o braço. Vamos à notícia. Chegou a moça de
Pelotas, aposto?
— Não direi o que é, se você me não jurar ouvir seriamente.
— Seriamente.
Dona Fernanda confessou-lhe que hesitava em casá-lo com a patrícia de Pelotas;
não queria remorsos; descobrira aqui alguém que tinha ao primo um imenso amor.
Carlos Maria sorriu, iniciou um gracejo, mas a notícia esporeou-lhe o espírito. Imenso
amor? Imenso amor, paixão violenta, confirmou a prima; acrescentando que talvez a
definição já não coubesse bem ao atual sentimento da pessoa. Agora era urna adoração
quieta e calada. Tinha chorado por ele noites e noites, enquanto as esperanças lhe
duraram... E Dona Fernanda foi assim repetindo a confidência de Maria Benedita.
Restava só o nome; Carlos Maria quis sabê-lo, ela negou-lho. Não podia revelá-lo. Para
que dar-lhe o gosto de saber quem era que o adorava, se não corria ao encontro da alma
dela? Melhor era deixá-la no mistério. Já não chorava agora; modesta e desambiciosa,
perdera as esperanças de ser amada, e, com o tempo ficou apenas uma devota, mas uma
devota sem par, que nem sequer esperava ser ouvida ou agraciada um dia por um olhar
benévolo de seu deus querido.
— Prima, você...
— Eu quê?...
Carlos Maria concluiu dizendo que a advogada era digna da causa. Realmente,
se essa moça o adorava a tal ponto, era justo e natural que a prima se interessasse por ela
com tanto calor. Mas por que não dizer o nome?
— Agora não digo; pode ser que algum dia... Mas, você compreende que me
custaria muito casá-lo com a minha patrícia, sabendo que outra pessoa o ama tanto. E
daí bem pode ser que esta de cá não padeça muito, se o vir casado. Sim, senhor, parece
absurdo, mas é preciso conhecê-la; digo que, uma vez que você seja feliz, é capaz de
abençoar a bela rival.
— Já não é romantismo, é misticismo, redargüiu Carlos Maria depois de alguns
passos, com os olhos no chão. Não está nas cordas do nosso tempo. Tem alguma prova
de semelhante estado da alma?
— Tenho... A sua casa é aquela, não? perguntou Dona Fernanda parando.
— É.
— Bonito prédio, e sólido.
— Muito sólido.
— Uma, duas, três, quatro... Sete janelas. O salão vai de ponta a ponta? Bem
bom para um baile.
E andando:
— Eu, se tivesse aqui uma casa maior que a minha, daria um grande baile, antes
de voltar para o Rio Grande. Gosto de festas. Os meus dois filhos não me dão grande
trabalho A propósito, ando com vontade de meter o Lopo no colégio; onde acharei um
bons colégio?
Carlos Maria pensava na devota incógnita. Estava longe, muito longe do ensino
e seus estabelecimentos. Que bom que era sentir-se um deus adorado, e adorado à
maneira evangélica, metida a devota no aposento, fechada a porta, em secreto, não nas
sinagogas, à vista de todos. “E teu pai que vê o que se passa em secreto te dará a paga.”
Oh! ele daria a paga, se soubesse quem era. Casada, seria? Não, não podia ser, não iria
confessá-lo a ninguém; viúva ou solteira, antes solteira. Cheirava-lhe a solteira. Em que
aposento se fechava para rezar, para evocá-lo, chorá-lo, e abençoá-lo? Já nem teimava
pelo nome; mas o aposento, ao menos.
— Onde acharei um bom colégio? repetiu Dona Fernanda.
— Colégio? Não sei; estou pensando na desconhecida. Compreende bem que
uma pessoa que me adora, em silêncio, sem esperanças, é objeto de alguma atenção.
Alta ou baixa?
— Maria Benedita.
Carlos Maria estacou o passo.
Aquela moça...? Não é possível. Tenho-lhe falado muitas vezes, e nunca
descobri nada. Achei-a sempre fria. Há de ser engano. Ouviu-lhe o meu nome?
— Não, por mais que lhe pedisse. Confessou o milagre sem nomear o santo, mas
que milagre! Gabe-se de ser adorado como ninguém... De quem é aquela casa?
— Você costuma exagerar as coisas, prima; pode não ser tanto. Adorado como
ninguém? E de que modo soube que era eu?
— Teófilo foi o primeiro que descobriu; ela, dizendo-se-lhe isto, ficou como
uma pitanga. Negou-o ainda depois, comigo; e desde esse dia não voltou lá a casa.
Tal foi o início dos amores. Carlos Maria folgou de se ver assim amado em
silêncio, e toda a prevenção se converteu em simpatia. Começou a vê-la, saboreou a
confusão da moça, os medos, a alegria, a modéstia, as atitudes quase implorativas, um
composto de atos e sentimentos que eram a apoteose do homem amado. Tal foi o início,
tal o desfecho. Assim os vimos, naquela noite dos anos de Dona Sofia, a quem ele
dissera antes coisas tão doces. São assim os homens; as águas que passam e os ventos
que rugem não são outra coisa.