RUBIÃO aplaudiu o artigo; achava-o excelente. Talvez pouco enérgico. Vendilhões, por
exemplo, era bem dito; mas ficava melhor vis vendilhões.
— Vis vendilhões? Há só um inconveniente, ponderou Camacho. É a repetição
dos vv. Vis ven... Vis vendilhões; não sente que o som fica desagradável?
— Mas lá em cima há vés vis...
— Vae victis. Mas é uma frase latina. Podemos arranjar outra coisa: vis
mercadores.
— Vis mercadores é bom.
— Contudo, mercadores não tem a força de vendilhões.
— Então, por que não deixa vendilhões? Vis vendilhões é forte; ninguém repara
no som. Olhe, eu nunca dou por isso. Gosto de energia. Vis vendilhões.
— Vis vendilhões, vis vendilhões, repetiu Camacho, à meia voz. Já estou
achando melhor. Vis vendilhões. Aceito, concluiu emendando. E releu: “Os vis
vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima
dos interesses mesquinhos, locais e passageiros a vitória indefectível dos princípios.
Tudo que não for isto ter-nos-á contra si. Alea jacta est.
— Muito bem! disse Rubião, sentindo-se algum tanto autor do artigo.
— Parece-lhe bem? perguntou Camacho, sorrindo. Há pessoas que ainda me
acham no estilo a frescura do meu tempo de estudante. Não sei, não digo nada; a
disposição, sim, é a mesma. Hei de castigá-los; havemos de castigá-los.
CAPÍTULO CXII
AQUI é que eu quisera ter dado a este livro o método de tantos outros, — velhos todos
—, em que a matéria do capítulo era posta no sumário: “De como aconteceu isto assim,
e mais assim”. Aí está Bernardim Ribeiro; aí estão outros livros gloriosos. Da línguas
estranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e
Smollet, muitos capítulos dos quais só pelo sumário estão lidos. Pegai em Tom Jones,
livro IV, cap. I, lede o título: Contendo cinco folhas de papel. É claro, é simples, não
engana a ninguém; são cinco folhas, mais nada, quem não quer ler não lê, e quem quer
lê, para os últimos é que o autor conclui obsequiosamente: “E agora, sem mais prefácio,
vamos ao seguinte capítulo”.
CAPÍTULO CXIII
SE tal fosse o método deste livro, eis aqui um título que explicaria tudo: “De como
Rubião, satisfeito da emenda feita no artigo, tantas frases compôs e ruminou, que
acabou por escrever todos os livros que lera”.
Lá haverá leitor a quem só isso não bastasse. Naturalmente, quereria toda a
análise da operação mental do nosso homem, sem advertir que, para tanto, não
chegariam as cinco folhas de papel de Fielding. Há um abismo entre a primeira frase de
que Rubião era co-autor até a autoria de todas as obras lidas por ele; é certo que o que
mais lhe custou foi ir da frase ao primeiro livro; — deste em diante a carreira fez-se
rápida. Não importa; a análise seria ainda assim longa e fastiosa. O melhor de tudo é
deixar só isto; durante alguns minutos, Rubião se teve por autor de muitas obras alheias.
CAPÍTULO CXIV
AO contrário, não sei se o capítulo que se segue poderia estar todo no título.
CAPÍTULO CXV
RUBIÃO foi mantendo o propósito de não tornar a ver Sofia; pelo menos, não ia ao
Flamengo. Viu-a um dia passar de carro, com uma das damas da comissão das Alagoas;
ela inclinou-se risonha, dizendo-lhe adeus com a mão. Ele retribuiu o cumprimento,
tirando o chapéu, com tal ou qual alvoroço, mas não ficou parado como lhe aconteceria
dantes; apenas lançou um olhar ao carro que ia andando. Também ele foi andando, — e
pensando no lance da carta, não compreendendo aquele gesto de mão, sem ódio nem
vexame, — como se nada houvesse entre eles. Podia ser que o serviço da comissão e a
companheira que levava explicassem a benevolência graciosa de Sofia; mas Rubião não
cogitou desta hipótese.
— Estará assim tão falta de brio? perguntava ele. Pois não se lembra da carta
que achei, mandada por ela ao tal gamenho da Rua dos Inválidos? É muito; é demais.
Parece um desafio, um modo de dizer que não faz caso, que escreverá todas as cartas
que quiser. Que as escreva, mas gaste algum dinheiro em registrá-las no correio; é
barato...
Achou algum pico em si mesmo, e riu-se. Isto, e um homem que passou
rasgando-lhe uma cortesia, tiraram-lhe o amargor das saudades, e ele esqueceu o
assunto, para cuidar de outro, que o levava ao Banco do Brasil.
Ao entrar no Banco esbarrou com o sócio, que saiu.
— Creio que vi agora Dona Sofia, disse-lhe Rubião.
— Onde?
— Na Rua dos Ourives; ia de carro, com outra senhora, que não conheço. Como
tem você passado?
— Viu-a, e não se lembrou de nada, observou Palha, sem responder à pergunta.
Não se lembrou que ela faz anos, quarta-feira, depois de amanhã. Não lhe peço que vá
jantar, não ouso tanto, seria convidá-lo a aborrecer-se; mas uma xícara de chá bebe-se
depressa. Faz-me esse favor?
Rubião não respondeu logo.
— Vou até jantar, disse finalmente. Quarta-feira? Conte comigo. Tinha-me
esquecido, confesso; mas ando com tanta coisa na cabeça. Espere por mim daqui a meia
hora, no armazém.
Antes de meia hora estava lá, pedindo-lhe dois contos de réis. Palha já não
resistia ao desmoronamento do capital; e, se uma ou outra vez, dizia alguma palavrinha
frouxa, agora entregou-lhe o dinheiro com indiferença. Rubião não tornou à casa sem
comprar um magnífico brilhante, que, na quarta-feira, enviou a Sofia, acompanhado de
um bilhete de visita, e duas palavras de felicitação.
Sofia estava só, no quarto de vestir, calçando os sapatos, quando a criada lhe
entregou o pacote. Era o terceiro presente do dia; a criada esperou que ela o abrisse para
ver também o que era. Sofia ficou deslumbrada, quando abriu a caixa e deu com a rica
jóia, — uma bela pedra, no centro de um colar. Esperava alguma coisa bonita; mas,
depois dos últimos sucessos, mal podia crer que ele fosse tão generoso. Batia-lhe o
coração.
— O portador está aí?
— Já foi. Que bonito, minha ama!
Sofia fechou a caixa, e acabou de calçar-se. Deteve-se algum tempo, sentada,
sozinha, recordando coisas idas, e levantou-se pensando:
— Aquele homem adora-me.
Tratou de vestir-se; mas, ao passar por diante do espelho, deixou-se estar alguns
instantes. Comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas formas, dos braços
nus de cima a baixo, dos próprios olhos contempladores. Fazia vinte e nove anos,
achava que era a mesma dos vinte e cinco, e não se enganava. Cingido e apertado o
colete, diante do espelho, acomodou os seios com amor, e deixou espraiar-se o colo
magnífico. Lembrou-se então de ver como lhe ficava o brilhante; tirou o colar e pô-lo ao
pescoço. Perfeito. Voltou-se da esquerda para a direita e vice-versa, aproximou-se,
afetou-se, aumentou a luz do camarim; perfeito. Fechou a jóia e guardou-a.
— Aquele homem adora-me, repetiu.
— Provavelmente, ele lá estará, pensou Rubião indo jantar ao Flamengo; duvido
que tenha dado melhor presente que eu.
Carlos Maria lá estava, efetivamente, conversando, entre uma das comissárias
das Alagoas, e Maria Benedita. Poucos eram os convivas; houve propósito em escolher
e limitar. Não estava ali o major Siqueira, nem a filha, nem as senhoras e os homens que
Rubião conheceu naquele outro jantar de Santa Teresa. Da comissão das Alagoas viamse algumas damas; via-se mais o diretor do banco, — o da visita ao ministro, — com a
senhora e as filhas, outro personagem bancário — um comerciante inglês, um deputado,
um desembargador, um conselheiro, alguns capitalistas, e pouco mais.
Posto que evidentemente gloriosa, Sofia esqueceu por um instante os outros,
quando viu Rubião entrar na sala e caminhar para ela. Ou mudança, ou descostume,
achou-lhe outro ar, passo firme, cabeça levantada, o avesso, em suma, do antigo gesto
encolhido e diminuto. Sofia apertou-lhe a mão com força e sussurrou um
agradecimento. À mesa fê-lo sentar ao pé de si, tendo do outro lado a presidente da
comissão. Rubião olhava superiormente para tudo. A qualidade dos convivas não lhe
produziu impressão, nem o ar cerimonioso, nem o luxo da mesa; nem o da farda dos
criados barbeados de fresco, abotoados até a gravata branca, e trazendo nos botões essas
duas letras C.P.; nada disso o deslumbrou. O mesmo cuidado particular de Sofia,
embora lhe fosse agradável, não o tonteava, como outrora. E da parte dela era mais
apurada a atenção, e os olhos excepcionalmente meigos e serviçais. Rubião procurou
Carlos Maria; lá estava entre as mesmas moças da sala, — Maria Benedita e a
comissária das Alagoas. Verificou que só se ocupava com elas, não olhava para Sofia,
nem esta para ele.
— Talvez disfarcem, pensou.
Pareceu-lhe, ao levantarem-se da mesa, que trocavam um olhar, mas o
movimento geral da reunião podia iludi-lo, e Rubião não fez maior cabedal da
observação. Sofia dera-se pressa em tomar-lhe o braço. De caminho, disse-lhe ela:
— Tenho esperado pelo senhor desde aquele dia, e nunca mais veio aqui. Era
meu direito exigi-lo, para explicar-me. Logo falaremos.
Rubião foi daí a pouco para o gabinete dos fumantes. Ouviu calado, com os
olhos erradios. Quando os outros saíram, Rubião deixou-se estar só, meio reclinado em
um sofá de couro, sem pensar. A imaginação é que fazia o seu ofício, um tanto
pachorrenta, agora, — talvez porque ele tivesse comido muito. Lá fora iam entrando os
convidados da noite; enchia-se a casa, crescia o burburinho da conversação, sem que o
nosso amigo descesse dos seus belos sonhos. O próprio som do piano, que fez calar
todos os rumores, não o atraiu à terra. Mas um farfalhar de sedas, entrando no gabinete,
fê-lo erguer-se de golpe, acordado.
— Aí está, disse Sofia, recolhe-se aqui para fugir ao aborrecimento; nem quer
ouvir boa música. Pensei que tivesse ido embora. Vim ter com o senhor.
E sem mais demora, porque não podia perder um minuto, referiu-lhe o que
sabemos da carta achada no jardim de Botafogo; lembrou-lhe que, antes de a abrir,
pedira-lhe que ele mesmo a abrisse e lesse. Que melhor prova de inocência? A palavra
saía-lhe rápida, séria, digna e comovida. Ocasião houve em que os olhos se lhe tornaram
úmidos; ela enxugou-os, e ficaram vermelhos. Rubião pegou-lhe na mão, e viu ainda
uma lágrima, uma pequena lágrima, — escorregar até o canto da boca. Jurou então que
sim, acreditava em tudo. Que idéia aquela de chorar? Sofia enxugou ainda os olhos, e
estendeu-lhe a mão agradecida.
— Até já, disse ela.
O piano continuava; Rubião notou-lhe esta circunstância. Enquanto ouviam
tocar, não viriam ter com eles.
— Mas eu é que não posso estar ausente tanto tempo, acudiu Sofia. Demais,
tenho ordens que dar. Até já.
— Olhe, escute, insistiu Rubião.
Sofia parou.
— Escute; deixe-me dizer-lhe, e não sei se pela última vez...
— Pela última vez?
— Quem sabe? Pode ser que última. Importa-me pouco que esse homem viva ou
não, mas posso achá-lo aqui alguma vez, e não me sinto disposto a brigar.
— Há de encontrá-lo todos os dias. Cristiano ainda lhe não disse o que há? Vai
casar com Maria Benedita.
Rubião deu um passo para trás.
— Casam-se, continuou ela. O fato é de admirar porque surgiu quando menos
contávamos com isto; — ou eram muito fingidos, — ou foi coisa que lhes deu de
repente. Casam-se. Maria Benedita contou-me uma história, que me foi confirmada por
outra pessoa; mas, afinal, a história é sempre a mesma. Gostaram um do outro, e adeus.
Casam-se brevemente. Quando ele falou a Cristiano, Cristiano respondeu que dependia
de mim... Como se fosse mãe dela! Consenti logo, e desejo que sejam felizes. Ele parece
bom rapaz; ela é excelente criatura; hão de ser felizes, por força. E bom negócio, sabe?
Ele está de posse de todos os bens do pai e da mãe. Maria Benedita não tem nada, em
dinheiro; mas tem a educação que lhe dei. Há de lembrar-se que, quando veio para
minha companhia, era um bicho-do-mato; não sabia quase nada; fui eu que a eduquei.
Minha tia merecia tudo, e ela também. Pois, é verdade, casam-se muito breve. Não os
viu hoje sempre juntos? Não há ainda participação oficial; mas os íntimos da família
podem saber.
Para quem tinha tanta pressa, eis aí um discurso demasiado comprido. Sofia deu
por isso um pouco tarde; repetiu a Rubião que até logo, que fosse para a sala. O piano
acabara; ouvia-se um burburinho discreto de aplauso e conversação.