Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulos 111 a 115

CAPÍTULO CXI 

RUBIÃO aplaudiu o artigo; achava-o excelente. Talvez pouco enérgico. Vendilhões, por exemplo, era bem dito; mas ficava melhor vis vendilhões. — Vis vendilhões? Há só um inconveniente, ponderou Camacho. É a repetição dos vv. Vis ven... Vis vendilhões; não sente que o som fica desagradável? — Mas lá em cima há vés vis... — Vae victis. Mas é uma frase latina. Podemos arranjar outra coisa: vis mercadores. — Vis mercadores é bom. — Contudo, mercadores não tem a força de vendilhões. — Então, por que não deixa vendilhões? Vis vendilhões é forte; ninguém repara no som. Olhe, eu nunca dou por isso. Gosto de energia. Vis vendilhões. — Vis vendilhões, vis vendilhões, repetiu Camacho, à meia voz. Já estou achando melhor. Vis vendilhões. Aceito, concluiu emendando. E releu: “Os vis vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locais e passageiros a vitória indefectível dos princípios. Tudo que não for isto ter-nos-á contra si. Alea jacta est.
— Muito bem! disse Rubião, sentindo-se algum tanto autor do artigo. — Parece-lhe bem? perguntou Camacho, sorrindo. Há pessoas que ainda me acham no estilo a frescura do meu tempo de estudante. Não sei, não digo nada; a disposição, sim, é a mesma. Hei de castigá-los; havemos de castigá-los.

CAPÍTULO CXII 

AQUI é que eu quisera ter dado a este livro o método de tantos outros, — velhos todos —, em que a matéria do capítulo era posta no sumário: “De como aconteceu isto assim, e mais assim”. Aí está Bernardim Ribeiro; aí estão outros livros gloriosos. Da línguas estranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollet, muitos capítulos dos quais só pelo sumário estão lidos. Pegai em Tom Jones, livro IV, cap. I, lede o título: Contendo cinco folhas de papel. É claro, é simples, não engana a ninguém; são cinco folhas, mais nada, quem não quer ler não lê, e quem quer lê, para os últimos é que o autor conclui obsequiosamente: “E agora, sem mais prefácio, vamos ao seguinte capítulo”. 

CAPÍTULO CXIII 

SE tal fosse o método deste livro, eis aqui um título que explicaria tudo: “De como Rubião, satisfeito da emenda feita no artigo, tantas frases compôs e ruminou, que acabou por escrever todos os livros que lera”. Lá haverá leitor a quem só isso não bastasse. Naturalmente, quereria toda a análise da operação mental do nosso homem, sem advertir que, para tanto, não chegariam as cinco folhas de papel de Fielding. Há um abismo entre a primeira frase de que Rubião era co-autor até a autoria de todas as obras lidas por ele; é certo que o que mais lhe custou foi ir da frase ao primeiro livro; — deste em diante a carreira fez-se rápida. Não importa; a análise seria ainda assim longa e fastiosa. O melhor de tudo é deixar só isto; durante alguns minutos, Rubião se teve por autor de muitas obras alheias. 

CAPÍTULO CXIV 

AO contrário, não sei se o capítulo que se segue poderia estar todo no título. 

CAPÍTULO CXV 

RUBIÃO foi mantendo o propósito de não tornar a ver Sofia; pelo menos, não ia ao Flamengo. Viu-a um dia passar de carro, com uma das damas da comissão das Alagoas; ela inclinou-se risonha, dizendo-lhe adeus com a mão. Ele retribuiu o cumprimento, tirando o chapéu, com tal ou qual alvoroço, mas não ficou parado como lhe aconteceria dantes; apenas lançou um olhar ao carro que ia andando. Também ele foi andando, — e pensando no lance da carta, não compreendendo aquele gesto de mão, sem ódio nem vexame, — como se nada houvesse entre eles. Podia ser que o serviço da comissão e a companheira que levava explicassem a benevolência graciosa de Sofia; mas Rubião não cogitou desta hipótese. — Estará assim tão falta de brio? perguntava ele. Pois não se lembra da carta que achei, mandada por ela ao tal gamenho da Rua dos Inválidos? É muito; é demais. Parece um desafio, um modo de dizer que não faz caso, que escreverá todas as cartas que quiser. Que as escreva, mas gaste algum dinheiro em registrá-las no correio; é barato...
Achou algum pico em si mesmo, e riu-se. Isto, e um homem que passou rasgando-lhe uma cortesia, tiraram-lhe o amargor das saudades, e ele esqueceu o assunto, para cuidar de outro, que o levava ao Banco do Brasil. Ao entrar no Banco esbarrou com o sócio, que saiu. — Creio que vi agora Dona Sofia, disse-lhe Rubião. — Onde? — Na Rua dos Ourives; ia de carro, com outra senhora, que não conheço. Como tem você passado? — Viu-a, e não se lembrou de nada, observou Palha, sem responder à pergunta. Não se lembrou que ela faz anos, quarta-feira, depois de amanhã. Não lhe peço que vá jantar, não ouso tanto, seria convidá-lo a aborrecer-se; mas uma xícara de chá bebe-se depressa. Faz-me esse favor? Rubião não respondeu logo. — Vou até jantar, disse finalmente. Quarta-feira? Conte comigo. Tinha-me esquecido, confesso; mas ando com tanta coisa na cabeça. Espere por mim daqui a meia hora, no armazém. Antes de meia hora estava lá, pedindo-lhe dois contos de réis. Palha já não resistia ao desmoronamento do capital; e, se uma ou outra vez, dizia alguma palavrinha frouxa, agora entregou-lhe o dinheiro com indiferença. Rubião não tornou à casa sem comprar um magnífico brilhante, que, na quarta-feira, enviou a Sofia, acompanhado de um bilhete de visita, e duas palavras de felicitação. Sofia estava só, no quarto de vestir, calçando os sapatos, quando a criada lhe entregou o pacote. Era o terceiro presente do dia; a criada esperou que ela o abrisse para ver também o que era. Sofia ficou deslumbrada, quando abriu a caixa e deu com a rica jóia, — uma bela pedra, no centro de um colar. Esperava alguma coisa bonita; mas, depois dos últimos sucessos, mal podia crer que ele fosse tão generoso. Batia-lhe o coração. — O portador está aí? — Já foi. Que bonito, minha ama! Sofia fechou a caixa, e acabou de calçar-se. Deteve-se algum tempo, sentada, sozinha, recordando coisas idas, e levantou-se pensando: — Aquele homem adora-me. Tratou de vestir-se; mas, ao passar por diante do espelho, deixou-se estar alguns instantes. Comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas formas, dos braços nus de cima a baixo, dos próprios olhos contempladores. Fazia vinte e nove anos, achava que era a mesma dos vinte e cinco, e não se enganava. Cingido e apertado o colete, diante do espelho, acomodou os seios com amor, e deixou espraiar-se o colo magnífico. Lembrou-se então de ver como lhe ficava o brilhante; tirou o colar e pô-lo ao pescoço. Perfeito. Voltou-se da esquerda para a direita e vice-versa, aproximou-se, afetou-se, aumentou a luz do camarim; perfeito. Fechou a jóia e guardou-a. — Aquele homem adora-me, repetiu. — Provavelmente, ele lá estará, pensou Rubião indo jantar ao Flamengo; duvido que tenha dado melhor presente que eu. Carlos Maria lá estava, efetivamente, conversando, entre uma das comissárias das Alagoas, e Maria Benedita. Poucos eram os convivas; houve propósito em escolher e limitar. Não estava ali o major Siqueira, nem a filha, nem as senhoras e os homens que Rubião conheceu naquele outro jantar de Santa Teresa. Da comissão das Alagoas viamse algumas damas; via-se mais o diretor do banco, — o da visita ao ministro, — com a senhora e as filhas, outro personagem bancário — um comerciante inglês, um deputado, um desembargador, um conselheiro, alguns capitalistas, e pouco mais. 
Posto que evidentemente gloriosa, Sofia esqueceu por um instante os outros, quando viu Rubião entrar na sala e caminhar para ela. Ou mudança, ou descostume, achou-lhe outro ar, passo firme, cabeça levantada, o avesso, em suma, do antigo gesto encolhido e diminuto. Sofia apertou-lhe a mão com força e sussurrou um agradecimento. À mesa fê-lo sentar ao pé de si, tendo do outro lado a presidente da comissão. Rubião olhava superiormente para tudo. A qualidade dos convivas não lhe produziu impressão, nem o ar cerimonioso, nem o luxo da mesa; nem o da farda dos criados barbeados de fresco, abotoados até a gravata branca, e trazendo nos botões essas duas letras C.P.; nada disso o deslumbrou. O mesmo cuidado particular de Sofia, embora lhe fosse agradável, não o tonteava, como outrora. E da parte dela era mais apurada a atenção, e os olhos excepcionalmente meigos e serviçais. Rubião procurou Carlos Maria; lá estava entre as mesmas moças da sala, — Maria Benedita e a comissária das Alagoas. Verificou que só se ocupava com elas, não olhava para Sofia, nem esta para ele. — Talvez disfarcem, pensou. Pareceu-lhe, ao levantarem-se da mesa, que trocavam um olhar, mas o movimento geral da reunião podia iludi-lo, e Rubião não fez maior cabedal da observação. Sofia dera-se pressa em tomar-lhe o braço. De caminho, disse-lhe ela: — Tenho esperado pelo senhor desde aquele dia, e nunca mais veio aqui. Era meu direito exigi-lo, para explicar-me. Logo falaremos. Rubião foi daí a pouco para o gabinete dos fumantes. Ouviu calado, com os olhos erradios. Quando os outros saíram, Rubião deixou-se estar só, meio reclinado em um sofá de couro, sem pensar. A imaginação é que fazia o seu ofício, um tanto pachorrenta, agora, — talvez porque ele tivesse comido muito. Lá fora iam entrando os convidados da noite; enchia-se a casa, crescia o burburinho da conversação, sem que o nosso amigo descesse dos seus belos sonhos. O próprio som do piano, que fez calar todos os rumores, não o atraiu à terra. Mas um farfalhar de sedas, entrando no gabinete, fê-lo erguer-se de golpe, acordado. — Aí está, disse Sofia, recolhe-se aqui para fugir ao aborrecimento; nem quer ouvir boa música. Pensei que tivesse ido embora. Vim ter com o senhor. E sem mais demora, porque não podia perder um minuto, referiu-lhe o que sabemos da carta achada no jardim de Botafogo; lembrou-lhe que, antes de a abrir, pedira-lhe que ele mesmo a abrisse e lesse. Que melhor prova de inocência? A palavra saía-lhe rápida, séria, digna e comovida. Ocasião houve em que os olhos se lhe tornaram úmidos; ela enxugou-os, e ficaram vermelhos. Rubião pegou-lhe na mão, e viu ainda uma lágrima, uma pequena lágrima, — escorregar até o canto da boca. Jurou então que sim, acreditava em tudo. Que idéia aquela de chorar? Sofia enxugou ainda os olhos, e estendeu-lhe a mão agradecida. — Até já, disse ela. O piano continuava; Rubião notou-lhe esta circunstância. Enquanto ouviam tocar, não viriam ter com eles. — Mas eu é que não posso estar ausente tanto tempo, acudiu Sofia. Demais, tenho ordens que dar. Até já. — Olhe, escute, insistiu Rubião. Sofia parou. — Escute; deixe-me dizer-lhe, e não sei se pela última vez... — Pela última vez? — Quem sabe? Pode ser que última. Importa-me pouco que esse homem viva ou não, mas posso achá-lo aqui alguma vez, e não me sinto disposto a brigar. 
— Há de encontrá-lo todos os dias. Cristiano ainda lhe não disse o que há? Vai casar com Maria Benedita. Rubião deu um passo para trás. — Casam-se, continuou ela. O fato é de admirar porque surgiu quando menos contávamos com isto; — ou eram muito fingidos, — ou foi coisa que lhes deu de repente. Casam-se. Maria Benedita contou-me uma história, que me foi confirmada por outra pessoa; mas, afinal, a história é sempre a mesma. Gostaram um do outro, e adeus. Casam-se brevemente. Quando ele falou a Cristiano, Cristiano respondeu que dependia de mim... Como se fosse mãe dela! Consenti logo, e desejo que sejam felizes. Ele parece bom rapaz; ela é excelente criatura; hão de ser felizes, por força. E bom negócio, sabe? Ele está de posse de todos os bens do pai e da mãe. Maria Benedita não tem nada, em dinheiro; mas tem a educação que lhe dei. Há de lembrar-se que, quando veio para minha companhia, era um bicho-do-mato; não sabia quase nada; fui eu que a eduquei. Minha tia merecia tudo, e ela também. Pois, é verdade, casam-se muito breve. Não os viu hoje sempre juntos? Não há ainda participação oficial; mas os íntimos da família podem saber. Para quem tinha tanta pressa, eis aí um discurso demasiado comprido. Sofia deu por isso um pouco tarde; repetiu a Rubião que até logo, que fosse para a sala. O piano acabara; ouvia-se um burburinho discreto de aplauso e conversação.  

Agora é Lei: Toda mulher tem direito a acompanhante maior de idade em consultas, exames e cirurgias

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