Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulos 164 a 189

CAPÍTULO CLXIV 

UM só incidente afligiu Sofia naquele dia puro e brilhante, — foi um encontro com Rubião. Tinha entrado em uma livraria da Rua do Ouvidor para comprar um romance; enquanto esperava o troco, viu entrar o amigo. Rapidamente voltou o rosto e percorreu com os olhos os livros da prateleira, — uns livros de anatomia e de estatística; — recebeu o dinheiro, guardou-o, e, de cabeça baixa, rápida como uma flecha, saiu à rua, e enfiou para cima. O sangue só lhe sossegou, quando a Rua dos Ourives ficou para trás. Dias depois, indo a entrar em casa de Dona Fernanda, deu com ele no saguão. Cuidou que subisse, e dispôs-se a subir também, ainda que receosa; mas Rubião descia, apertaram-se as mãos familiarmente, e despediram-se até à tarde. — Ele vem aqui muitas vezes? perguntou Sofia a Dona Fernanda, depois de lhe contar o encontro do saguão. — Esta é a quarta vez, quarta ou quinta; mas só da segunda vez apareceu delirando. Das outras é como viu agora; sossegado, e até conversador. Há nele sempre alguma coisa que mostra não estar completamente bem. Não reparou nos olhos, um pouco vagos? É isso, no mais, conversa bem. Creia, Dona Sofia; aquele homem pode sarar. Por que não faz com que seu marido tome isto a peito? — Cristiano tem projeto de o mandar examinar e tratar; mas, deixe estar que eu o apresso. — Pois sim. Ele parece ser muito amigo da senhora e do Senhor Palha — Ter-lhe-á dito alguma inconveniência no delírio, a meu respeito? Pensou Sofia. Convirá revelar-lhe a verdade? Concluiu que não; o próprio mal do Rubião explicaria as inconveniências. Prometeu que apressaria o marido, e nessa mesma tarde expôs o negócio ao Palha. É uma grande amolação, redargüiu este. E perguntou que interesse tinha Dona Fernanda em tornar àquele negócio. Que o tratasse ela mesma! Era uma atrapalhação ter de cuidar do outro, de o acompanhar, e, provavelmente, de recolher e gerir algum resto de dinheiro que ainda houvesse, fazendo-se curador, como dissera o Doutor Teófilo. Um aborrecimento de todos os diabos. — Já ando com grande carga sobre mim, Sofia. E depois como há de ser? Havemos de trazê-lo para casa? Parece que não. Metê-lo onde? Em alguma casa de saúde... Sim, mas se não puderem aceitá-lo? Não hei de mandá-lo para a Praia Vermelha... E as responsabilidades? você prometeu que me falaria? — Prometi, e afirmei que você faria isto, respondeu Sofia sorrindo. Talvez não custe tanto como parece. Sofia insistiu ainda. A compaixão de Dona Fernanda tinha-a impressionado muito; achou-lhe um quê distinto e nobre, e advertiu que a outra, sem relações estreitas nem antigas com Rubião, assim se mostrava interessada, era de bom tom não ser menos generosa. 

CAPÍTULO CLXV 

TUDO se fez sossegadamente. Palha alugou uma casinha na Rua do Príncipe, cerca do mar, onde meteu o nosso Rubião, alguns trastes, e o cachorro amigo. Rubião adotou a mudança sem desgosto, desde que lhe tornou o delírio, com entusiasmo. Estava nos seus paços de Saint-Cloud. Não sucedeu assim aos amigos da casa, que receberam a notícia da mudança como um decreto de exílio. Tudo na antiga habitação fazia parte deles, o jardim, a grade, os canteiros, os degraus de pedra, a enseada. Traziam tudo de cor. Era entrar, pendurar o chapéu, e ir esperar na sala. Tinham perdido a noção da casa alheia e do obséquio recebido. Depois, a vizinhança. Cada um daqueles amigos do Rubião estava afeito a ver as pessoas do lugar, as caras da manhã e as da tarde, alguns chegavam a cumprimentá-las, como aos seus próprios vizinhos. Paciência! iriam agora para Babilônia, como os desterrados de Sião. Onde quer que estivesse o Eufrates, achariam salgueiros em que pendurassem as harpas saudosas, — ou mais propriamente, cabides em que pusessem os chapéus. A diferença entre eles e os profetas é que, ao cabo de uma semana, pegariam outra vez dos instrumentos, e os tangeriam com a mesma graça e força; cantariam os velhos hinos, tão novos como no primeiro dia, e Babel acabaria por ser a mesma Sião, perdida e resgatada. — O nosso amigo precisa de repouso por algum tempo, disse-lhes o Palha, em Botafogo, na véspera da mudança. Hão de ter reparado que não anda bom; tem suas horas de esquecimento, de transtorno, de confusão, vai tratar-se, por enquanto é preciso que descanse. Arranjei-lhe uma casa pequena, mas pode ser que, ainda assim, passe para um estabelecimento de saúde. Ouviram atônitos. Um deles, o Pio, voltando a si mais depressa que os outros, respondeu que há mais tempo se devia ter feito aquilo; mas, para fazê-lo, era preciso ter influência decisiva no ânimo de Rubião. — Muitas vezes lhe disse, por boas maneiras, que era indispensável consultar um médico, por me parecer que tinha alguma coisa no estômago... Era um modo de desviar o sentido, compreende? Mas ele respondia sempre que não tinha nada, digeria bem... — “Mas come menos, dizia-lhe eu; há dias em que não come quase nada; está mais magro, um pouco amarelo...” Compreende que não podia dizer-lhe a verdade. Cheguei a consultar um médico, meu amigo; mas o nosso bom Rubião não o quis receber. Os outros quatro iam confirmando de cabeça toda aquela invenção; era o mais que se lhes podia pedir e tudo o que lhes consentia o atordoamento do golpe. Acabaram perguntando o número da nova casa, para irem saber dele. Pobre amigo! Quando se arrancaram dali, e se despediram uns dos outros, deu-se um fenômeno com que não contavam; é que eles mesmos mal podiam separar-se. Não que os ligasse amizade nem estima; o próprio interesse os fazia antipáticos. Mas o costume de se verem todos os dias, ao almoço e ao jantar, — à mesma mesa, como que os tinha fundido uns nos outros; a necessidade os fez suportáveis, o tempo os tornou mutuamente precisos. Em resumo, eram os olhos de cada um que iam padecer com a ausência das caras de uso, do gesto, das suíças, dos bigodes, da calva, dos sestros particulares, do modo de comer, de falar e de estar dos companheiros. Era mais que separação, era desarticulação. 

CAPÍTULO CLXVI 

RUBIÃO notou que eles não o acompanharam à casa nova, e mandou-os chamar; nenhum veio, e a ausência encheu de tristeza o nosso amigo, — durante as primeiras semanas. Era a família que o abandonava. Rubião procurou recordar se lhes fizera algum mal, por obra ou por palavra, e não achou nada. 

CAPÍTULO CLXVII 

CONVERSEI com o homem; achei-lhe idéias delirantes. Conquanto não seja alienista, acho que pode ficar bom. Mas quer saber uma descoberta interessante? — Crê que fique bom? disse Dona Fernanda, sem atender à pergunta do Doutor Falcão. Era deputado o Doutor Falcão, deputado e médico, amigo da casa, varão sabedor, céptico e frio. Dona Fernanda tinha-lhe pedido o favor de examinar o Rubião, pouco depois que este se transportou para a casa da Rua do Príncipe. — Sim, creio que fique bom, desde que seja regularmente tratado. Pode ser que a doença não tenha antecedentes na família. Mande ver um especialista. Mas não quer saber a minha interessante descoberta? — Qual é? — Talvez tenha parte na moléstia uma pessoa sua conhecida, respondeu ele sorrindo. — Quem? — Dona Sofia. — Como assim? — Ele falou-me dela com entusiasmo, disse-me que era a mais esplêndida mulher do mundo, e que a nomeara duquesa, por não poder nomeá-la imperatriz; mas que não brincassem com ele, que era capaz de fazer como o tio, divorciar-se e casar com ela. Concluí que terá tido paixão pela moça; e depois a intimidade, Sofia para aqui, Sofia para ali... Desculpe-me, mas eu creio que os dois se amaram. — Oh! não! — Dona Fernanda, creio que se amaram. Que admira? Eu mal a conheço; a senhora parece que não a conhece há muito tempo, nem viveu na intimidade dela. Pode ser que se tivessem amado, e que alguma paixão violenta... Suponhamos que ela o mandasse pôr fora de casa... E verdade que tem a mania das grandezas; mas tudo se pode juntar... Dona Fernanda não olhava para ele, vexada de lhe ouvir aquela suposição; evitava discuti-la pelo melindre do assunto. Achava a suspeita sem fundamento, absurda, inverossímil; não chegaria a crer naquele amor espúrio, ainda que o ouvisse ao próprio Rubião. Um desvairado, em suma. Quando o não fosse, é ainda provável que lhe não desse fé. Sim, não lhe daria fé. Não podia crer que Sofia houvesse amado aquele homem, não por ele, mas por ela, tão correta e pura. Era impossível. Quis defendê-la; mas apesar da intimidade do Doutor Falcão, recuou segunda vez do assunto, e repetiu a pergunta de há pouco: — Parece-lhe então que ele pode ficar bom? — Pode, mas não basta o meu exame. A senhora sabe que, nestas coisas, é melhor um especialista. Pouco depois, saindo à rua, Falcão sorria da resistência de Dona Fernanda em aceitar a sua hipótese. “Com certeza, houve alguma coisa, dizia ele consigo; boa cara, e, se não é um petimetre, é apessoado, e tem fogo nos olhos. Com certeza... ” E repetia algumas frases de Rubião, evocava o gesto e a modulação terna da voz, e cada vez mais se lhe ia agravando a suspeita. “Com certeza...” Era já impossível que se não tivessem amado; a oposição de Dona Fernanda parecia-lhe ingênua, — se não era antes um recurso para desconversar e não tocar na matéria. Havia de ser isso. Neste ponto, sem querer, o deputado estacou. Uma suspeita nova assaltara-lhe o espírito. Após alguns instantes rápidos, abanou a cabeça voluntariamente, como a desmentir-se, como a achar-se absurdo, e foi andando. Mas a suspeita era teimosa, e a que ocupa deveras o interior do homem, não faz caso da cabeça nem dos seus gestos. “Quem sabe se Dona Fernanda não suspirou também por ele? Essa dedicação não seria um prolongamento de amor, etc.?” E assim foram nascendo perguntas, que achavam no íntimo do Doutor Falcão resposta afirmativa. Resistiu ainda, era amigo da casa, tinha respeito a Dona Fernanda, conhecia-a honesta; mas, — ia pensando, — bem podia ser que um sentimento oculto, recatado, — quem sabe até se provocado pela mesma paixão da outra... ? Há dessas tentações. O contágio da lepra corrompe o mais puro sangue; um triste bacilo destrói o mais robusto organismo. Pouco a pouco, as veleidades de resistência foram cedendo à noção da possibilidade, da probabilidade e da certeza. Em verdade, tinha notícia de algumas obras de caridade de Dona Fernanda; mas aquele caso era novo. Essa dedicação especial a um homem que não era familiar da casa, nem velho amigo, nem parente, aderente, colega do marido, qualquer coisa que o fizesse partícipe da vida doméstica, pelas relações, pelo sangue ou pelo costume não era explicável sem algum motivo secreto. Amor, seguramente; curiosidade de mulher honesta, que pode descambar no vício e no remorso. Aquela teria recuado a tempo; ficou-lhe a simpatia mórbida... E daí, quem sabe? 

CAPÍTULO CLXVIII 

E daí quem sabe? repetiu o Doutor Falcão na manhã seguinte. A noite não apagara a desconfiança do homem. E daí quem sabe? Sim, não seria só simpatia mórbida. Sem conhecer Shakespeare, ele emendou Hamlet: “Há entre o céu e a terra, Horácio, muitas coisas mais do que sonha a vossa vã filantropia”. Ali andou dedo de amor. E não chasqueava nem lastimava nada. Já disse que era céptico; mas, como era também discreto, não transmitiu a ninguém a sua conclusão. 

CAPÍTULO CLXIX 

A volta de Carlos Maria e da mulher interrompeu as preocupações de Dona Fernanda, relativamente a Rubião. Esta foi a bordo recebê-los, conduziu-os à Tijuca onde um velho amigo da família de Carlos Maria alugara e trastejara uma casa, por ordem dele. Sofia não foi a bordo; mandou o cupé esperá-los no cais Pharoux, mas Dona Fernanda já ali tinha uma caleça, que os levou, e mais a ela e ao Palha. De tarde, Sofia foi visitar os recém-chegados. Dona Fernanda não cabia em si de contente. As cartas de Maria Benedita os davam por felizes; ela não pôde ler desde logo nos olhos e nas maneiras do casal a confirmação do escrito. Pareciam satisfeitos. Maria Benedita não reteve as lágrimas, quando abraçou a amiga, nem esta as suas, e ambas se apertaram como duas irmãs de sangue. No dia seguinte, Dona Fernanda perguntou a Maria Benedita se ela e o marido eram felizes, e, sabendo que sim, pegou-lhe nas mãos e fitou-a longamente sem achar palavra. Não logrou mais que repetir a pergunta: — Vocês são felizes? — Somos, respondia Maria Benedita. — Não sabe que bem me faz a sua resposta. Não é só porque eu teria remorsos, se vocês não tivessem a felicidade que eu imaginei dar-lhes, mas também porque é bem bom ver os outros felizes. Ele gosta de você como no primeiro dia? — Creio que mais, porque eu o adoro. Dona Fernanda não entendeu esta palavra. Creio que mais, porque eu o adoro! Em verdade, a conclusão não parecia estar nas premissas; mas era o caso de emendar outra vez Hamlet: “Há entre o céu e a terra, Horácio, muitas coisas mais do que sonha a vossa vã dialética.” Maria Benedita começou a contar-lhe a viagem, a desfiar as suas impressões e reminiscências; e, como o marido viesse ter com elas, pouco depois, recorria à memória dele para preencher as lacunas. — Como foi, Carlos Maria? Carlos Maria lembrava, explicava, ou retificava, mas sem interesse, quase impaciente. Adivinhara que Maria Benedita acabava de confiar a outra as suas venturas, e mal podia encobrir o efeito desagradável que isto lhe trazia. Para que dizer que era feliz com ele, se não podia ser outra coisa? E por que divulgar os seus carinhos e palavras, as suas misericórdias de deus grande e amigo? A volta ao Rio de Janeiro foi uma condescendência sua. Maria Benedita queria ter aqui o filho; o marido cedeu, — a custo, mas cedeu. A custo, por quê? É difícil explicá-lo, não menos que entendê-lo. Relativamente à maternidade, Carlos Maria tinha idéias pessoais e singulares, recônditas, não confiadas a ninguém. Achava impudica a natureza em fazer da gestação humana um fenômeno público, franco às vistas, crescente até ao aleijão, sugestivo até ao desrespeito. Daí vinha o desejo da solidão, do mistério e da ausência. Viveria de boa mente os últimos tempos no interior de uma casa única, posta no alto de um morro, vedada ao mundo, donde a mulher baixasse um dia com o filho nos braços e a divindade nos olhos. Não fez sobre isto nenhuma proposta à mulher. Teria de discutir, e ele não gostava de discutir; preferia ceder. Maria Benedita tinha naturalmente o sentimento contrário: considerava-se a si mesma um templo divino e recatado em que vivia um deus, filho de outro deus. A gestação ia cheia de tédios, de dores, de incômodos que ela ocultava o mais que podia ao marido; mas tudo isso dava maior preço à criaturinha futura. Acolhia o mal com resignação, se não é que o agasalhava com alegria, — uma vez que era a condição da vinda do fruto. Fazia cordialmente o ofício da espécie. E repetia sem palavras a resposta de Maria de Nazareth: “Eu sou a serva do Senhor; façase em mim a sua vontade.” 

CAPÍTULO CLXX 

— VOCÊ que tem? perguntou Maria Benedita ao marido, logo que ficaram sós. — Eu? Nada. Por quê? — Parecia estar aborrecido. 
— Não, não estava aborrecido. — Estava, sim, insistiu ela. Carlos Maria sorriu, sem responder. Maria Benedita já lhe conhecia esse sorriso especial, inexpressivo, sem ternura nem censura, superficial e pálido. Não teimou em querer saber, mordeu os beiços e retirou-se. No quarto, durante algum tempo, não cuidou de outra coisa que não fosse aquele sorriso descorado e mudo, sinal de algum aborrecimento, cuja culpa não podia ser senão ela. E percorria toda a conversação, todos os gestos que fizera, e não achava nada que explicasse a frieza, ou o que quer que era de Carlos Maria. Talvez ela se mostrasse excessiva nas palavras; era seu costume, se estava contente, pôr o coração nas mãos e distribuí-lo a amigos e a estranhos. Carlos Maria reprovava essa generosidade, porque dava um ar de sorte grande ao seu estado moral e doméstico, e porque lhe parecia banal e inferior. Maria Benedita recordava-se que, em Paris, na colônia brasileira, sentira mais de uma vez esse efeito de suas expansões, e reprimira-se. Mas Dona Fernanda estaria no mesmo caso? Não era a autora da felicidade de ambos? Rejeitou essa hipótese, e tratou de ver outra. Não a achando, voltou à primeira, e, segundo lhe sucedia sempre, deu razão ao marido. Em verdade, por mais íntima e grata que fosse, não devia contar à boa amiga as minúcias da vida; era leviandade sua. Náuseas vieram interrompê-la neste ponto das reflexões. A natureza lembravalhe uma razão de Estado — a razão da espécie, — mais instante e superior aos tédios do marido. Ela cedeu à necessidade; mas, poucos minutos depois, estava ao pé de Carlos Maria, contornando-lhe o pescoço com o braço direito. Ele, sentado, lia uma revista inglesa; pegou-lhe na mão, pendente sobre o peito, e acabou a página. Você me perdoa? perguntou a mulher, quando o viu fechar o folheto. Daqui em diante vou ser menos tagarela. Carlos Maria pegou-lhe nas duas mãos, sorrindo e respondeu com a cabeça que sim. Foi como se lançasse uma onda de luz sobre ela; a alegria penetrou-lhe a alma. Dirse-ia que o próprio feto repercutiu a sensação e abençoou o pai.
 
CAPÍTULO CLXXI 

PERFEITAMENTE! Assim é que eu os quero ver! bradou uma voz do lado da varanda. Maria Benedita afastou-se rapidamente do marido. A varanda, que comunicava para a sala, por três portas, tinha uma destas aberta. Dali viera a voz; dali espiava e ria a cabeça de Rubião. Era a primeira vez que o viam. Carlos Maria, sem se levantar, olhava para ele, sério, esperando. E a cabeça ria, com os seus fartos bigodes de ponta de agulha, mirando um e outro, e repetindo: — Perfeitamente! assim é que eu os quero ver! Rubião entrou, estendeu-lhes a mão, que eles receberam sem carinho, disse muitas frases de admiração e louvor a Maria Benedita, ela tão galante, ele tão galhardo; notou que ambos tivessem o nome de Maria, espécie de predestinação, e acabou noticiando a queda do ministério. — Caiu o ministério? perguntou involuntariamente Carlos Maria. — Não se fala em outra coisa na cidade. Vou abancar-me, sem pedir licença, já que não me oferecem cadeira, continuou ele, sentando-se, tirando a bengala que trazia debaixo do braço e firmando as mãos sobre ela. Pois é verdade, o ministério pediu demissão. Vou organizar outro. Há de entrar o Palha, o nosso Palha, — seu primo Palha, e o senhor também, se lhe dá gosto, será ministro. Preciso de um bom gabinete, todo gente amiga e forte, capaz de dar a vida por mim. Hei de chamar o Morny, o Pio, o Camacho, o Rouher, o major Siqueira. A senhora lembra-se do major? Creio que fica com a guerra; não conheço homem mais apto para os negócios militares. Maria Benedita, aborrecida e impaciente, andava pela sala, à espera que o marido mandasse alguma coisa; este disse-lhe com os olhos que se fosse embora; ela não aguardou outro gesto, pediu licença ao hóspede e retirou-se. Rubião, depois que ela saiu, elogiou-a novamente, — uma flor, disse ele; e emendou-se rindo: duas flores, creio que há ali duas flores. Nosso Senhor as abençoe! Carlos Maria estendeu-lhe a mão em ar de despedida. — Meu caro senhor... — Posso incluí-lo no ministério? perguntou Rubião. Não ouvindo resposta, entendeu que sim e prometeu-lhe uma boa pasta. O major iria para a guerra, e o Camacho para a justiça. Não os conhecia acaso? “Dois grandes homens, Camacho ainda maior que o outro.” E obedecendo a Carlos Maria, que ia andando na direção da porta, Rubião retirava-se sem se sentir; mas não foi tão pronto. Na varanda, antes de descer os degraus, referiu vários fatos da guerra. Por exemplo, tinha restituído a Alemanha aos alemães; era bonito e político; já havia dado Veneza aos italianos. Não precisava mais território; as províncias do Reno, sim, mas havia tempo de as ir buscar. — Meu caro senhor... insistiu Carlos Maria estendendo-lhe a mão. Despediu-o e fechou a porta; Rubião proferiu ainda algumas palavras e desceu os degraus. Maria Benedita, que os espreitava do fundo, veio ter com o marido, reteve-o pela mão, e ficou a ver o Rubião que atravessava o jardim. Não ia direito, nem apressado, nem calado; detinha-se, gesticulava, apanhava um galho seco, vendo mil coisas no ar, mais galantes que a dona da casa, mais galhardas que o dono. Da vidraça miravam o nosso amigo, e, em certo lance grotesco, Maria Benedita não pôde suster o riso; Carlos Maria, porém, olhava plácido.
 
CAPÍTULO CLXXII 

— MAS se a queda do ministério é verdadeira disse ela, sabe você quem está ministro? — Quem? perguntou Carlos Maria com os olhos. — Seu primo Teófilo. Nanã contou-me que ele andava com suas esperanças, e foi por isso que ficou este ano na Corte. Desconfiou, ou já se falava na saída do ministério; talvez desconfiasse. Não se lembra bem o que ela me disse; mas parece que entra. — Pode ser. — Olha, lá vai Rubião; parou, está olhando para cima, espera talvez a diligência ou o carro. Ele tinha carro. Lá vai andando... 

CAPÍTULO CLXXIII 

COM quê, o Teófilo está ministro! exclamou Carlos Maria. E, depois de um instante: — Creio que dará um bom ministro. Você queria ver-me também ministro? — Se você gostasse, que remédio? — De maneira que, por teu voto, não o era? perguntou Carlos Maria. — Que hei de responder? pensou ela, escrutando o rosto do marido. Ele, rindo: — Confessa que me adorarias, ainda que eu fosse uma simples ordenança de ministro. — Justamente! exclamou a moça, lançando-lhe os braços aos ombros. Carlos Maria afagou-lhe os cabelos, e murmurou sério: — Bernadotte foi rei, e Bonaparte imperador. Você queria ser a rainha-mãe da Suécia? Maria Benedita não entendeu a pergunta nem ele a explicou. Para explicá-la seria mister dizer que possivelmente trazia ela no seio um Bernadotte; mas esta suposição significava um desejo, e o desejo uma confissão de inferioridade. Carlos Maria espalmou outra vez as mãos sobre a cabeça da mulher, com um gesto que parecia dizer: “Maria, tu escolheste a melhor parte...” E ela pareceu entender o sentido daquele gesto. — Sim! sim! O marido sorriu e tornou à revista inglesa. Ela, encostada à poltrona, passava-lhe os dedos pelos cabelos, muito ao de leve e caladinha para não perturbá-lo. Ele ia lendo, lendo, lendo. Mana Benedita foi atenuando a carícia, retirando os dedos aos poucos, até que saiu da sala, onde Carlos Maria continuou a ler um estudo de Sir Charles Little, M. P., sobre a famosa estatueta de Narciso, do Museu de Nápoles. 

CAPÍTULO CLXX IV 

QUANDO Rubião foi à casa de Dona Fernanda, à tardinha, ouviu do criado que não podia subir. A senhora estava incomodada; o senhor estava com ela; parece que esperavam o médico. O nosso amigo não teimou, e retirou-se. Era o contrário; era o senhor que estava doente, e a senhora que o acompanhava; mas o criado não podia trocar o recado que lhe deram. Outro criado desconfiou, é certo, que o doente fosse ele e não ela, porque o vira entrar abatido. Em cima, no quarto deles, havia algum rumor de vozes, ora alto, ora baixo, com intervalos de silêncio. Uma criadinha, que subira pé ante pé, desceu dizendo que ouvira lastimar-se o amo; provavelmente a senhora estava perdida. Em baixo, um palavrear surdo, ouvidos compridos, conjecturas; notavam que de cima não pedissem água, qualquer remédio, um caldo, ao menos. A mesa posta, o criado engravatado, o cozinheiro orgulhoso e ansioso... Justamente, um dos melhores jantares! Que era? Teófilo tinha ainda o gesto abatido com que entrou; estava sentado em um canapé, sem colete, olhos fixos. Ao pé dele, sentada também, segurando-lhe uma das mãos, Dona Fernanda pedia-lhe que sossegasse, que não valia a pena. E inclinava-se para ver-lhe o rosto, chamava-o para si, queria que ele encostasse a cabeça ao ombro dela... — Deixa, deixa, murmurava o marido. — Não vale a pena, Teófilo! Pois agora um ministério...? Valerá tanto um cargo de pouco tempo, cheio de desgostos, insultos, trabalhos, para quê? Não é melhor a vida tranqüila? Vá que haja injustiça; creio que sim, você tem serviços; mas será tamanha perda assim? Anda, querido, sossega; vamos jantar. Teófilo mordia os beiços, puxando uma das suíças. Não ouvira nada do que a mulher dissera, nem exortações nem consolações. Ouvira as conversas da noite anterior e daquela manhã, as combinações políticas, os nomes lembrados, os recusados e os aceitos. Nenhuma combinação o incluiu, posto que ele falasse com muita gente acerca do verdadeiro aspecto da situação. Era ouvido com atenção por uns, com impaciência por outros. Uma vez, os óculos do organizador pareceram interrogá-lo, — mas foi rápido o gesto e ilusório. Teófilo recompunha agora a agitação de tantas horas e lugares, — lembrava os que o olhavam de esguelha, os que sorriam, os que traziam a mesma cara que ele. Para o fim já não falava; as últimas esperanças estalavam-lhe nos olhos como lamparina de madrugada. Ouvira os nomes dos ministros, fora obrigado a achá-los bons; mas que força não lhe era precisa para articular alguma palavra! Receava que lhe descobrissem o abatimento ou despeito, e todos os seus esforços concluíam por acentuálos ainda mais. Empalidecia, tremiam-lhe os dedos.
 
CAPÍTULO CLXXV 

— ANDA, vamos jantar, repetiu Dona Fernanda. Teófilo deu um golpe no joelho, com a mão aberta, e levantou-se, dizendo palavras soltas e raivosas, andando de um lado para outro, batendo o pé, ameaçando. Dona Fernanda não pôde vencer a violência daquele novo acesso, esperou que fosse curto, e foi curto; Teófilo chegou-se a uma poltrona, sacudiu a cabeça e caiu outra vez prostrado. Dona Fernanda pegou de uma cadeira e sentou-se ao pé dele. — Tens razão, Teófilo; mas é preciso ser homem. És moço e forte, tens ainda futuro, e talvez grande futuro. Quem sabe se, entrando agora no ministério, não perderias mais tarde? Entrarás em outro. Às vezes, o que parece desgraça é felicidade. — Teófilo apertou-lhe a mão agradecido. — É perfídia, é intriga, murmurava ele, olhando para ela; eu conheço toda essa canalha. Se eu contasse a você tudo, tudo... Mas para quê? Prefiro esquecer... Não é por causa de uma miserável pasta que estou aborrecido, continuou ele depois de alguns instantes. Pastas não valem nada. Quem sabe trabalhar e tem talento pode zombar das pastas, e mostrar que é superior a elas. A maior parte dessa gente, Nanã, não me chega aos calcanhares. Disso estou certo e eles também. Súcia de intrigantes! Onde acharão mais sinceridade, mais fidelidade, mais ardor para a luta? Quem trabalhou mais na imprensa, no tempo do ostracismo? Desculpam-se; dizem que os gabinetes já vêm organizados de São Cristóvão... Ah! eu quisera falar ao Imperador! — Teófilo! — Eu diria ao Imperador: “Senhor, Vossa Majestade não sabe o que é essa política de corredores, esses arranjos de camarilha. Vossa Majestade quer que os melhores trabalhem nos seus conselhos, mas os medíocres é que se arranjam... O merecimento fica para o lado.” É o que lhe hei de dizer um dia; pode ser até que amanhã. Calou-se. Depois de longa pausa, ergueu-se e foi ao gabinete de trabalho, que ficava ao pé do quarto; a mulher acompanhou-o. Era já escuro, acendeu o bico de gás, e circulou pelo gabinete os olhos velados de melancolia. Havia ali quatro largas estantes cheias de livros, de relatórios, de orçamentos, de balanços do Tesouro. A secretária estava em ordem. Três armários altos, sem portas, guardavam os manuscritos, notas, lembranças, cálculos, apontamentos, tudo empilhado e rotulado metodicamente; — créditos extraordinários, — créditos suplementares, — créditos de guerra, — créditos de marinha, — empréstimo de 1868, — estradas de ferro, — dívida interna, — exercício de 61 - 62, de 62 - 63, de 63 - 64, etc. Era ali que trabalhava de manhã e de noite, somando, calculando, recolhendo os elementos dos seus discursos e pareceres, porque era membro de três comissões parlamentares, e trabalhava geralmente por si e pelos seis colegas; estes ouviam e assinavam. Um deles, quando os pareceres eram extensos, assinava-os sem ouvir. — Homem, você é mestre e basta, dizia-lhe, dê cá a pena. Tudo ali respirava atenção, cuidado, trabalho assíduo, meticuloso e útil. Da parede, em ganchos, pendiam os jornais da semana, que eram depois tirados, guardados e finalmente encadernados semestralmente, para consultas. Os discursos do deputado, impressos e brochados em 4º, enfileiravam-se em uma estante. Nenhum quadro ou busto, adereço, nada para recrear, nada para admirar; — tudo seco, exato, administrativo. — De que vale tudo isto? perguntou Teófilo à mulher, após alguns instantes de contemplação triste. Horas cansadas, longas horas da noite até madrugada, às vezes. Não se dirá que este gabinete é de homem, vadio; aqui trabalha-se. Você é testemunha que eu trabalho. Tudo para quê? — Consola-te trabalhando, murmurou ela. Ele, acerbo: — Ruim consolação! Não, não, acabo com isto, passo a ignorar tudo. Olha, na câmara, todos me consultam, até os ministros — porque sabem que eu aplico-me deveras às coisas da administração. Que prêmio? Vir para cá, em maio, aplaudir os novos senhores? — Pois não aplaudas nada, disse-lhe mansamente a mulher. Queres fazer-me um obséquio? Vamos à Europa, em março ou abril, e voltemos daqui a um ano. Pede licença à câmara, donde quer que estejamos, de Varsóvia, por exemplo; tenho muita vontade de ir a Varsóvia, continuou sorrindo e fechando-lhe graciosamente a cara entre as mãos. Diga que sim; responda que é para eu escrever hoje mesmo para o Rio Grande, o vapor sai amanhã. Está dito; vamos a Varsóvia? — Não brinques, Nanã, que isto não é objeto de brincadeira. — Falo seriamente. Já há muito tempo que ando para propor a você uma viagem, a ver se descansa desta papelada infernal. E demais, Teófilo! Você mal se pode arranjar para uma visita. Passeio, é raro. Quase não conversa. Os nossos filhos apenas vêem seu pai, porque aqui não se entra quando você trabalha... É preciso descansar; peço-lhe um ano de repouso. Olhe que é sério. Vamos para a Europa em março. — Não pode ser, balbuciou ele. — Por que não? Não podia ser. Era convidá-lo a sair da própria pele. Política valia tudo. Que também houvesse política lá fora, sim; mas que tinha ele com ela? Teófilo não sabia nada do que ia por fora, exceto a nossa dívida cm Londres, e meia dúzia de economistas. Contudo, agradeceu à mulher a intenção da proposta: — Tu és boa. E um sentimento vago de esperança restituía à voz do deputado a brandura que perdera naquela grande crise moral. Os papéis sopravam-lhe ânimo. Toda aquela massa de estudos aparecia-lhe como a terra adubada e semeada aos olhos do lavrador. Não tardaria a grelar; o trabalho teria a recompensa; um dia mais tarde ou mais cedo, o grelo brotaria e a árvore daria frutos. Era justamente o que a mulher havia dito por outras palavras diretas e próprias; mas só agora é que ele via a possibilidade da colheita. Lembrou-se das explosões de cólera, de indignação, de desespero, das queixas de há pouco, ficou vexado. Quis rir, e fê-lo mal. Ao jantar e ao café entreteve-se com os filhos, que naquela noite recolheram-se mais tarde. Nuno, que já andava no colégio, onde ouvira falar da mudança de gabinete, disse ao pai que queria ser ministro. Teófilo ficou sério. — Meu filho, disse ele, escolhe outra coisa, menos ministro. — Diz que é bonito, papai; diz que anda de carro com soldado atrás. — Pois eu te dou um carro. — Papai já foi ministro? Teófilo tentou sorrir e olhou para a mulher, que aproveitou a ocasião para mandar deitar os filhos. — Já, já fui ministro, respondeu o pai beijando a testa ao Nuno; mas não quero mais, é muito feio, dá trabalho. Tu hás de ser capelão. 126 — Que é capelão? — Capelão é cama, respondeu Dona Fernanda; vai dormir, Nuno. 

CAPÍTULO CLXXVI 

AO almoço, no dia seguinte, Teófilo recebeu uma carta por uma ordenança. — Ordenança? — Sim, senhor, diz que vem da parte do senhor presidente do conselho. Teófilo abriu a carta, com a mão trêmula. Que podia ser? Tinha lido nos jornais a relação dos novos ministros; o gabinete estava completo. Não havia divergência de nomes. Que podia ser? Dona Fernanda, defronte do marido, procurava ler-lhe no rosto o texto da carta. Via uma claridade; percebeu que a boca sofreava um sorriso de satisfação, — de esperança, ao menos. — Diga que espere, ordenou Teófilo ao criado. Foi ao gabinete, e tornou minutos depois com a resposta. Sentou-se à mesa, calado, dando tempo a que o criado entregasse a carta à ordenança. Desta vez, como estava prevenido, ouviu as patas do cavalo, e logo depois a galope, rua fora e sentiu-se bem. — Lê, disse ele. Dona Fernanda leu a carta do presidente do conselho; era um pedido para ir falar-lhe às duas horas da tarde. — Mas então o ministério...? — Está completo, deu-se pressa em dizer o deputado; os ministros estão nomeados. Não acreditava de todo o que dizia. Imaginava alguma vaga da última hora, e a necessidade urgente de a preencher. — Há de ser alguma conferência política, ou talvez queira conversar sobre o orçamento, — ou incumbir-me algum estudo. Dizendo isto, para iludir a mulher, sentiu a probabilidade das hipóteses, e outra vez se abateu; mas, três minutos depois, as borboletas da esperança volteavam diante dele, não duas, nem quatro, mas um turbilhão, que cegava o ar. 

CAPÍTULO CLXXVII 

DONA FERNANDA esperou, cheia de ânsias, como se o ministério fosse para ela, e lhe viesse dar qualquer gosto, que não fosse amargo e complicado. Uma vez, porém, que satisfizesse o marido, tudo iria pelo melhor. Teófilo tornou às cinco horas e meia. Pelo aspecto reconheceu que vinha satisfeito. Correu a apertar-lhe as mãos. — Que há? — Pobre Nanã! Aí vamos com a trouxa às costas. O marquês pediu-me instantemente que aceitasse uma presidência de primeira ordem. Não podendo meter-me no gabinete, onde tinha lugar marcado, desejava, queria e pedia que eu partilhasse a responsabilidade política e administrativa do governo, assumindo uma presidência. Não podia, em nenhum caso, dispensar o meu prestígio (são palavras dele), e espera que na câmara assuma o lugar de chefe da maioria. Que dizes? — Que arranjemos a trouxa, respondeu Dona Fernanda. — Achas que podia recusar? — Não. — Não podia. Você sabe, não se podem negar serviços destes a um governo amigo; ou então deixa-se a política. Tratou-me muito bem o marquês; eu já sabia que era homem superior; mas que risonho e afável! não imaginas. Quer também que compareça a uma reunião, os ministros e alguns amigos, poucos, meia dúzia. Confioume já o programa do gabinete, em reserva. — Quando saímos? — Não sei; hei de estar com ele amanhã, à noite. A reunião é amanhã às oito horas... Mas não te parece que fiz bem, aceitando? — Decerto. — Sim; se recusasse censurar-me-iam, e com razão. Em política, a primeira coisa que se perde é a liberdade. Agora você é que se quisesse, podia ficar; daqui a cinco meses, — ou quatro, — abrem-se as câmaras; mal terei tempo de chegar e olhar. 

CAPÍTULO CLXXVIII 

DONA FERNANDA anuiu à proposta; não interrompia a educação do filho; era uma separação de quatro meses. Teófilo partiu daí a dias. Na manhã do dia do embarque, logo cedo, foi despedir-se do gabinete de trabalho. Deitou os últimos olhos aos livros, relatórios, orçamentos, manuscritos, a toda essa parte da família, que só tinha língua e interesse para ele. Havia atado os papéis e os folhetos para que se não extraviassem, e fez à mulher grandes recomendações. Parado no centro, circulou a vista pelas estantes, e dispersou a alma por todas elas. Despedia-se assim dos seus santos e amigos, com verdadeiras saudades. Dona Fernanda, que estava ao pé dele, não viveu ali mais que os dez minutos de despedida. Teófilo viveu muitos anos. — Deixa estar, eu cuidarei deles, eu mesma os espanarei todos os dias. Teófilo deu-lhe um beijo... Outra mulher recebê-lo-ia triste, por ver que ele amava tanto os livros que parecia amá-los mais que a ela. Mas Dona Fernanda sentiu-se venturosa.

CAPÍTULO CLXXIX 

RUBIÃO, desde o dia da crise ministerial, não tornou à casa de Dona Fernanda; nada soube, nem da presidência, nem do embarque de Teófilo. Vivia entre o cão e um criado, sem grandes crises, nem longos repousos. O criado fazia o serviço irregularmente, comia gratificações, e recebia, amiúde, o título de marquês. Ao demais, divertia-se. Quando lhe dava ao amo para conversar com as paredes, o criado corria a espiá-lo; assistia ao diálogo, porque o Rubião incumbia-se das palavras delas, respondendo como se houvessem feito alguma pergunta. De noite, ia à palestra com os amigos da vizinhança. — Como vai o gira? — O gira vai bem. Hoje convidou o cachorro para cantar; o cachorro ladrou muito, e ele gostou que se pelou, mas assim um gosto de figurão. Ele, quando está de pancada, parece que é como quem governa o mundo. Ainda ontem, almoçando, disse para mim: “Marquês Raimundo... quero que tu...” e embrulhou o resto, que não entendi nada. No fim deu-me dez tostões. — Você guardou logo... — Ora! Quando Rubião voltava do delírio, toda aquela fantasmagoria palavrosa tornavase, por instantes, uma tristeza calada... A consciência, onde ficavam rastos do estado anterior, forcejava por despegá-los de si. Era como a ascensão dolorosa que um homem fizesse do abismo, trepando pelas paredes, arrancando a pele, deixando as unhas, para  chegar acima, para não tombar outra vez e perder-se. Ia então à visita dos amigos, uns novos, outros velhos, como a gente do major e a do Camacho, por exemplo. Este, desde algum tempo, era menos conversado. A mesma política não lhe dava matéria aos discursos de outrora. No escritório, quando via Rubião assomar à porta, fazia um gesto de impaciência, que sofreava logo; o outro notava essa mudança, e perdia-se em conjecturas, se lhe escapara alguma ofensa, por descuido — ou se começava a aborrecê-lo. E para desfazer o tédio ou o ressentimento, falava macio, risonho, abrindo longas pausas respeitosas, à espera que ele dissesse qualquer coisa. Em vão apelava para o Marquês de Paraná, cujo retrato continuava a pender da parede; repetia os nomes que lhe ouvira, — o grande marquês! o estadista consumado! Camacho ia apoiando de cabeça, e escrevendo sem parar, consultando os autos e os praxistas, Lobão, Coelho da Rocha, citando, riscando, pedindo-lhe desculpa. Tinha um libelo que dar naquele dia. Interrompia-se para ir à estante. — Com licença. Rubião arredava as pernas para deixá-lo passar; ele tirava um volume das Ordenações do Reino, e folheava, folheava, pulando adiante, voltando atrás, à toa, sem buscar nada, unicamente para o fim de despedir o importuno; mas o importuno ia ficando, por isso mesmo, e entreolhavam-se disfarçados. Camacho tornava ao libelo. Para ler, sentado, inclinava-se muito à esquerda, donde lhe vinha a luz, dando as costas ao Rubião. — Aqui é escuro, aventurou Rubião um dia. E não ouviu resposta, tão atento parecia o advogado na leitura dos autos. Realmente, pode ser importunação, pensou o nosso amigo. Espreitava-lhe o rosto duro e sério, o gesto com que pegava da pena para continuar o interminável libelo. Vinte minutos mais de silêncio absoluto. No fim desse prazo, Rubião viu-o deixar a pena, retesar o busto, esticar os braços e passar as mãos pelos olhos. Disse-lhe com interesse: — Cansado, não? Camacho fez um gesto afirmativo, e preparou-se para continuar; então o nosso homem levantou-se e aproveitou o intervalo para dizer adeus. — Voltarei, quando estiver menos atarefado. Estendeu-lhe a mão; Camacho segurou-lha ao de leve, e tornou ao papel. Rubião desceu a escada, aturdido, magoado com a frieza do seu ilustre amigo. Que lhe teria feito? 

CAPÍTULO CLXXX 

DAQUELA vez, teve a fortuna de encontrar o major Siqueira. — Ia agora mesmo à sua casa, disse-lhe; vai para lá? — Vou; mas já não estamos na mesma casa; mudamo-nos para os Cajueiros, Rua da Princesa... — Seja onde for, vamos. Rubião precisava de um pedaço de corda que o atasse à realidade, porque o espírito sentia-se outra vez presa da vertigem. Entretanto, falou com tal acerto e propriedade, que o major o achou em pleno juízo, e disse-lhe: — Sabe que tenho uma grande notícia que lhe dar? — Vamos a ela. — Há de ser quando chegarmos. Chegaram. Era uma casa assobradada; Dona Tonica veio abrir-lhes a cancela. Trazia um vestido novo e brincos. — Olhe bem para ela, disse o major pegando na filha pelo queixo. 
Dona Tonica recuou envergonhada. — Estou olhando, respondeu Rubião. — Não se vê logo que é uma pessoa que vai casar? — Ah! parabéns! — É verdade, vai casar. Custou, mas acertou. Achou por aí um noivo, que a adora, como todos eles; eu, quando fui noivo, adorei a minha defunta, que foi uma coisa nunca vista... Vai casar. Arranjou um noivo. Custou, mas acertou. Pessoa séria, meiaidade; vem aqui passar as noites. De manhã, quando passa para a repartição, creio que bate na janela, ou ela já o espera; eu finjo que não percebo. Dona Tonica dizia com a cabeça que não, mas sorrindo de modo que parecia dizer que sim. Estava tão buliçosa! Nem se lembrava já que reqüestara o Rubião, que este fora uma das últimas, e por fim a última das suas esperanças. Tinham entrado na sala; Dona Tonica foi à janela, voltou, cabeça alta, andando à toa, reconciliada com a vida. — Boa pessoa, repetiu o major, boa criatura... Tonica, vai buscar o retrato... Anda, vai buscar o teu noivo... Dona Tonica foi buscar o retrato. Era uma fotografia; representava um homem de meia idade, cabelo curto, raro, olhando espantado para a gente, cara chupada, pescoço fino e paletot abotoado. — Que lhe parece? — Muito bem. Dona Tonica recebeu o retrato e fitou-o alguns instantes; mas, tirou logo os olhos, e deixou-se estar sentada, enquanto a imaginação saiu a esperar o Rodrigues. Chamava-se Rodrigues. Era mais baixo que ela, coisa que o retrato não dava, — e empregado em uma repartição do ministério da guerra. Viúvo, com dois filhos, um que estava no batalhão dos menores, outro que era tuberculoso, — doze anos, —condenado à morte. Que importa? Era o noivo; todas as noites, ao recolher-se, Dona Tonica ajoelhava-se ante a imagem de Nossa Senhora, sua madrinha, agradecia-lhe o favor e pedia-lhe que a fizesse feliz. Sonhava já com um filho; havia de chamar-lhe Álvaro. 

CAPÍTULO CLXXXI 

RUBIÃO escutou calado um discurso do major. O casamento era dali a mês e meio; o noivo tinha que perfazer os arranjos da casa, não era capitalista, vivia do ordenado e recorrera a empréstimos. A casa era a mesma e não exigia trastes novos nem ricos; mas, há sempre algumas necessidades... Em suma, dali a mês e meio, ou pelo menos, cinco semanas, estariam unidos pelos santos laços do matrimônio. — E fico eu livre do trambolho, concluiu o major. — Oh! protestou Rubião. A filha ria-se; estava acostumada às graças do pai, e tão disposta à alegria que nada a vexava; ainda mesmo que o pai se referisse aos seus quarenta anos passados não lhe daria grande golpe. Todas as noivas têm quinze anos. — Verá como ele há de procurá-la depois, com saudades, disse Rubião a Dona Tonica. — Qual! Talvez eu me case também! Rubião levantou-se repentino, e deu alguns passos; o major não viu a expressão do rosto, não percebeu que o espírito do homem ia talvez descarrilhar, e que ele mesmo o pressentia. Disse-lhe que se sentasse, e contou-lhe os seus tempos de casado e de campanha. Quando chegou à narração da batalha de Monte-Caseros, com as marchas e contramarchas próprias do seu discurso, tinha diante de si Napoleão III. Calado a  princípio, Rubião proferiu algumas palavras de aplauso, citou Solferino e Magenta, prometeu ao Siqueira uma condecoração. Pai e filha entreolharam-se; o major disse que vinha muita chuva. Com efeito, escurecera um pouco. Era melhor que Rubião fosse, antes de cair água; não trouxera guarda-chuva, o dele era velho e único... — Aí vem o meu coche, redargüiu Rubião tranqüilamente. — Não vem, foi esperá-lo no Campo. Não vês daí o coche, Tonica? Dona Tonica fez um gesto vago e sem vontade. Não queria mentir, mas tinha medo, e desejava que Rubião saísse. Da casa era impossível ver o Campo da Aclamação. Já então o pai pegava no Rubião pelo braço e o encaminhava para a porta. — Volte amanhã, depois, quando quiser. — Mas por que não hei de esperar aqui até que venha o coche? perguntou Rubião. A imperatriz não pode apanhar chuva... — A imperatriz já foi. — Fez mal. Eugênia fez muito mal. General... Para que há de o senhor ficar sempre em major? General, vi o retrato do seu genro; quero dar-lhe o meu. Mande às Tulherias. Onde está o coche? — Está no Campo, esperando. — Mande chamá-lo. Dona Tonica, que estava à janela, disse para dentro: — Lá vem Rodrigues. E tornou a olhar para a rua, inclinando-se, sorrindo, enquanto na sala o pai continuava a guiar o Rubião para a porta, sem violência, mas tenaz. Este parava, repreendia: — General, sou seu imperador! — Decerto, mas acompanhe-me Vossa Majestade... Tinham chegado à porta; o major abriu a cancela, justamente quando o Rodrigues punha o pé na soleira. Dona Tonica entrou para receber o noivo, mas a porta estava atravancada com o pai e Rubião. Rodrigues tirou o chapéu, mostrando o cabelo, áspero e grisalho; tinha nas faces chupadas umas pintinhas de sarda, mas o riso era bom e humilde, — mais humilde ainda que bom, — e, não obstante a trivialidade do gesto e da pessoa, era agradável. Os olhos não mostravam o espanto da fotografia; este efeito provinha da ênfase que ele pôs em todo o corpo, a fim de que o retrato saísse bonito. — Este senhor é o meu futuro genro, disse o major a Rubião. Não é verdade que viu no Campo um coche e um esquadrão de cavalaria? perguntou ao Rodrigues, piscando um olho. — Parece que sim, senhor. — Pois então? continuou Siqueira, voltando-se para Rubião. Vá, vá, dobre a Rua de S. Lourenço, e caminhe direito para o Campo. Adeus, até amanhã. Rubião desceu três degraus, — eram cinco — e parou diante do recém-chegado, fitou-o alguns instantes e declarou que estimava muito conhecê-lo, que fosse bom esposo e bom genro. Como se chamava? — João José Rodrigues. — Rodrigues. Hei de mandar-lhe uma fitinha aqui para a casaca. É o meu presente de núpcias. Lembre-me, Siqueira. Siqueira pegou-lhe no braço para fazê-lo descer os dois últimos degraus e pô-lo na rua. — No Campo, dizes tu? — No Campo. — Adeus.
Da rua, ainda Rubião olhou para as janelas, com os dedos no chapéu, a fim de cumprimentar Dona Tonica; mas Dona Tonica estava na sala, onde Rodrigues acabava de entrar, fresco e delicioso, como a primeira rosa de verão. 

CAPÍTULO CLXXXII 

RUBIÃO não cuidou mais do coche nem do esquadrão de cavalaria. Foi dar consigo abaixo, andou por várias ruas, até que subiu pela de São José. Desde o paço imperial, vinha gesticulando e falando a alguém que supunha trazer pelo braço, e era a imperatriz. Eugênia ou Sofia? Ambas em uma só criatura, — ou antes a segunda com o nome da primeira. Homens que iam passando, paravam, do interior das lojas corria gente às portas. Uns riam-se, outros ficavam indiferentes; alguns, depois de verem o que era, desviavam os olhos para poupá-los à aflição que lhes dava o espetáculo do delírio. Uma turba de moleques acompanhava o Rubião, alguns tão próximos, que lhe ouviam as palavras. Crianças de toda a sorte vinham juntar-se ao grupo. Quando eles viram a curiosidade geral, entenderam dar voz à multidão, e começou a surriada: — Ó gira! ó gira! Esse vozear chamou a atenção de outras pessoas, muitas janelas dos sobrados começaram a abrir-se, apareceram curiosos de ambos os sexos e todas as idades, um fotógrafo, um estofador, três e quatro figuras juntas, cabeças por cima de outras, todas inclinadas, espiando, acompanhando o homem, que falava à parede, com o seu gesto cheio de grandeza e de obséquio. — Ó gira! ó gira! berravam os vadios. Um deles, muito menor que todos, apegava-se às calças de outro, taludo. Era já na Rua da Ajuda. Rubião continuava a não ouvir nada; mas, de uma vez que ouviu, supôs que eram aclamações, e fez uma cortesia de agradecimento. A surriada aumentava. No meio do rumor, distinguiu-se a voz de uma mulher à porta de uma colchoaria: — Deolindo! vem para casa, Deolindo! Deolindo, a criança, que se agarrava às calças da outra mais velha, não obedeceu; pode ser que nem ouvisse, tamanha era a grita, e tal a alegria do pequerrucho, clamando com a vozinha miúda: — Ó gira! ó gira! — Deolindo! Deolindo tratou de esconder-se entre os outros, para escapar às vistas da mãe que o chamava; esta, porém, correu ao grupo, e arrancou-o de lá. Em verdade, era pequeno demais para andar em tumultos de rua. — Mamãe, deixa eu ver... — Qual ver! anda! Meteu-o em casa, e ficou à porta, a olhar para a rua. Rubião estacara o passo; ela pôde vê-lo bem, com os seus gestos e palavras, o peito alto, e uma barretada que deu em volta. — Os malucos têm graça, às vezes, disse ela sorrindo a uma vizinha. Os rapazes continuavam a. bradar e a rir, e Rubião foi andando, com o mesmo coro atrás de si. Deolindo, à porta da loja, vendo o grupo alongar-se, pedia chorosamente à mãe que o deixasse ir também, ou então que o levasse. Quando perdeu as esperanças, enfeixou todas as energias em um só gritozinho esganiçado: — Ó gira! 

CAPÍTULO CLXXXIII 

A vizinha riu-se. A mãe riu-se também. Confessou que o filho era uma pestezinha, um endiabrado, que não sossegava; não podia perdê-lo de vista. Qualquer distração, estava na rua. E isto desde pequenino; tinha ainda dois anos, quando escapou de morrer em baixo de um carro, ali mesmo; esteve por um fio. Se não fosse um homem que passava, um senhor bem vestido, que acudiu depressa, até com perigo de vida, estaria morto e bem morto. Nisto o marido, que vinha pela calçada oposta, atravessou a rua, e interrompeu a conversação. Trazia o cenho carregado, mal cumprimentou a vizinha, e entrou; a mulher foi ter com ele. Que era? O marido contou a surriada. — Passou por aqui, disse ela. — Não conheceste o homem? — Não. O marido cruzou os braços e ficou a olhar, fixo, calado. A mulher perguntou-lhe quem era. — É aquele homem que nos salvou o Deolindo da morte. A mulher estremeceu. — Viste bem? perguntou. — Perfeitamente. Se eu já o tinha encontrado outras vezes, mas então não estava assim. Coitado! E a molecada berrava atrás dele. Qual! não há polícia nesta terra. O que lhe doía à mulher não era tanto o mal do homem, nem ainda a surriada; mas a parte que teve nesta o filho, — a mesma criança que o homem salvara da morte. Realmente, como podia o menino reconhecê-lo, nem saber que lhe devia a vida? Doíalhe o encontro, a coincidência. Afinal, contentou-se de pôr todas as culpas em si. Se tivesse tido mais cuidado, o pequeno não haveria saído, e não entraria na troça. Tremia de quando em quando, e estava inquieta. O marido pegou na cabeça do filho, e deu-lhe dois beijos. — Você viu a cena toda? perguntou à mulher. — Vi. — Eu ainda quis dar o braço ao homem, e trazê-lo para aqui; mas, tive vergonha; os moleques eram capazes de dar-me uma vaia. Desviei o rosto, porque ele podia conhecer-me. Coitado! Nota que não parecia ouvir nada, e seguia satisfeito, creio que até ria... Que triste coisa que é perder o juízo! A mulher pensava na travessura do filho; não a referiu ao marido, pediu à vizinha que não aludisse a ela, e, de noite, só pregou olho tarde. Metera-se-lhe em cabeça que, anos depois, o filho endoidecia, era castigado pela mesma troça, e que ela cuspia para o céu, indignada, blasfemando. 

CAPÍTULO CLXXXIV 

DUAS horas depois da cena da Rua da Ajuda chegou Rubião à casa de Dona Fernanda. Os vadios foram-se dispersando, a pouco e pouco, e os claros não se preenchiam; os três últimos juntaram os seus adeuses em um berro único e formidável. Rubião continuou sozinho, mal percebido pelos moradores das casas, porque a gesticulação diminuía ou mudava de feitio. Não se dirigia à parede, à suposta imperatriz; mas era ainda imperador. Caminhava, parava, murmurava, sem grandes gestos, sonhando sempre, sempre, sempre, envolvido naquele véu, através do qual todas as coisas eram outras, contrárias e melhores; cada lampião tinha um aspecto de camarista, cada esquina uma feição de reposteiro. Rubião seguia direito à sala do trono, para receber um embaixador qualquer, mas o paço era interminável, cumpria atravessar muitas salas e galerias, verdade é que sobre tapetes, — e por entre alabardeiros, altos e robustos. Das gentes que o viam e paravam na rua, ou se debruçavam das janelas, muitas suspendiam por instantes os seus pensamentos tristes ou enfastiados, as preocupações do dia, os tédios, os ressentimentos, este uma dívida, outro uma doença, desprezos de amor, vilanias de amigo. Cada miséria esquecia-se, o que era melhor que consolar-se; mas o esquecimento durava um relâmpago. Passado o enfermo, a realidade empolgavaos outra vez, as ruas eram ruas, porque os paços suntuosos iam com Rubião. E mais de um tinha pena do pobre diabo; comparando as duas fortunas, mais de um agradecia ao céu a parte que lhe coube, — amarga, mas consciente. Preferiam o seu casebre real ao alcáçar fantasmagórico. 

CAPÍTULO CLXXXV 

RUBIÃO foi recolhido a uma casa de saúde. Palha esquecera a obrigação que Sofia lhe impôs, e Sofia não se lembrou mais da promessa feita à rio-grandense. Cuidavam ambos de outra casa, um palacete em Botafogo, cuja reconstrução estava prestes a acabar, e que eles queriam inaugurar, no inverno, quando as câmaras trabalhassem, e toda a gente houvesse descido de Petrópolis. Mas agora a promessa foi cumprida; Rubião deu entrada no estabelecimento, onde ficou ocupando uma sala e um quarto especiais, recomendado pelo Doutor Falcão e pelo Palha. Não resistiu a nada; acompanhou-os com satisfação, e entrou nos seus aposentos, como se os conhecesse desde muito. Quando eles se despediram, dizendo que já voltavam, Rubião convidou-os para uma revista militar, no sábado. — Pois sim, sábado, assentiu Falcão. — Sábado é bom dia, continuou Rubião. Não faltes, duque de Palha. — Não falto, disse o Palha andando. — Olha, mandar-te-ei um dos meus coches, novo em folha; é preciso que tua mulher pouse o seu lindo corpo, onde ninguém ainda ousou sentar-se. Almofadas de damasco e veludo, arreios de prata e rodas de ouro; os cavalos descendem do próprio cavalo que meu tio montava em Marengo. Adeus, duque de Palha. 

CAPÍTULO CLXXXVI 

PARA mim, é claro, saiu pensando o Doutor Falcão, aquele homem foi amante da mulher deste sujeito. 

CAPÍTULO CLXXXVII 

LÁ ficou o homem. Quincas Borba tentara entrar na carruagem que levou o amigo, e porfiou em acompanhá-la, correndo; foi necessária toda a força do criado para agarrá-lo, contê-lo e trancá-lo em casa. Era a mesma situação de Barbacena; mas a vida, meu rico senhor, compõe-se rigorosamente de quatro ou cinco situações, que as circunstâncias variam e multiplicam aos olhos. Rubião pediu instantemente que lhe mandassem o cão. Dona Fernanda, alcançado o consentimento do diretor, cuidou de satisfazer o desejo do doente. Quis escrever a Sofia, mas foi ela própria ao Flamengo. 

CAPÍTULO CLXXXVIII 

MANDO ver, é aqui perto, propôs Sofia.
— Vamos nós mesmas. Que tem? Já pensei em uma coisa. Valerá a pena conservar a casa pronta e alugada, quando a cura pode prolongar-se? Melhor é deixá-la, vender os trastes e apurar o que houver. Foram a pé do Flamengo à Rua do Príncipe, três a quatro minutos. Raimundo estava na rua, mas viu gente à porta e veio abri-la. O interior da casa tinha a feição do abandono, sem a fixidez e regularidade das coisas, que parecem conservar um resto da vida interrompida; era o abandono do desmazelo. Mas, por outro lado, o transtorno dos móveis da sala exprimia bem o delírio do morador, suas idéias tortas e confusas. — Ele foi muito rico? perguntou Dona Fernanda a Sofia. — Tinha alguma coisa, respondeu esta, quando chegou de Minas; mas parece que estragou tudo. Olhe, levante o vestido que o chão parece que não se varre há um século. Não era só o chão; os trastes tinham a crosta da incúria. Nem por isso o criado explicava nada; olhava, escutava, e, baixinho, assobiava uma polca do dia. Sofia não lhe perguntou pelo asseio; estava morta por fugir “daquela imundície”, dizia a si mesma, e tinha vontade de indagar do cão, que era o principal motivo da visita; mas, não queria mostrar interesse por ele nem pelo resto. A trivialidade daquilo tudo não lhe dizia nada ao espírito nem ao coração; a lembrança do alienado não a ajudava a suportar o tempo. De si para si achava a companheira singularmente romântica ou afetada. “Que bobagem!” ia pensando, sem desconcertar o sorriso aprovador com que acudia a todas as observações de Dona Fernanda. — Abra aquela janela, disse esta ao criado; tudo cheira a mofo. — Oh! insuportável! acudiu Sofia, respirando com asco. Mas, apesar da exclamação, Dona Fernanda não se resolveu a sair. Sem que nenhuma recordação pessoal lhe viesse daquela miserável estância, sentia-se presa de uma comoção particular e profunda, não a que dá a ruína das coisas. Aquele espetáculo não lhe trazia um tema de reflexões gerais, não lhe ensinava a fragilidade dos tempos, nem a tristeza do mundo; dizia-lhe tão-somente a moléstia de um homem, de um homem que ela mal conhecia, a quem falara algumas vezes. E ia ficando e olhando, sem pensar, sem deduzir, metida em si mesma, dolente e muda. Sofia não ousava articular nada, com receio de ser desagradável a tão conspícua dama. Tinham ambas os vestidos apanhados, para evitar a mácula da poeira; mas Sofia acrescentou a essa precaução a agitação viva, contínua e impaciente da ventarola, como pessoa que sufocasse naquela atmosfera. Chegou a tossir algumas vezes. — E o cachorro? perguntou Dona Fernanda ao criado. — Está preso no quarto, lá dentro. — Vá buscá-lo. Quincas Borba apareceu. Magro, abatido, parou à porta da sala, estranhando as duas senhoras, mas sem latir; mal erguia os olhos apagados. Ia a dar meia volta ao corpo na direção do interior da casa, quando Dona Fernanda fez uns estalinhos com os dedos; ele parou, agitando a cauda. — Como é mesmo que se chama? perguntou a Dona Fernanda. — Quincas Borba, respondeu o criado, rindo, com a voz arrastada! Tem nome de gente. Eh! Quincas Borba! vai lá! a senhora está chamando. — Quincas Borba! vem cá! Quincas Borba! repetiu Dona Fernanda. Quincas Borba acudiu ao chamado, não pulando, nem alegre. Dona Fernanda inclinou-se, perguntou-lhe pelo amigo, se estava longe, se queria ir vê-lo. Assim mesmo inclinada, interrogava o criado sobre o trato do cão. — Agora come, sim, senhora; logo que meu amo foi embora, não queria comer nem beber; — eu até pensei que estivesse danado. Come bem?
Come pouco. Procura pelo senhor? — Parece que procura, respondeu Raimundo tapando o riso com a mão; mas eu tranquei ele no quarto, para não fugir. Já não chora; a princípio chorava muito, que até me acordava... Era preciso eu bater com um cacete na porta e gritar, para ele sossegar. Dona Fernanda coçava a cabeça do animal. Era o primeiro afago depois de longos dias de solidão e desprezo. Quando Dona Fernanda cessou de acariciá-lo, e levantou o corpo, ele ficou a olhar para ela, e ela para ele, tão fixos e tão profundos, que pareciam penetrar no íntimo um do outro. A simpatia universal, que era a alma desta senhora, esquecia toda a consideração humana diante daquela miséria obscura e prosaica, e estendia ao animal uma parte de si mesma, que o envolvia, que o fascinava, que o atava aos pés dela. Assim, a pena que lhe dava o delírio do senhor, dava-lhe agora o próprio cão, como se ambos representassem a mesma espécie. E sentindo que a sua presença levava ao animal uma sensação boa, não queria privá-lo do benefício. — A senhora está-se enchendo de pulgas, observou Sofia. Dona Fernanda não a ouviu. Continuou a mirar os olhos meigos e tristes do animal, até que este deixou cair a cabeça e entrou a farejar a sala. Sentira o cheiro do senhor. A porta da rua estava aberta; ele teria fugido por ela, se Raimundo não acudisse a prendê-lo. Dona Fernanda deu algum dinheiro ao criado para que o fosse lavar e conduzir à casa de saúde, recomendando-lhe o maior cuidado, que o levasse ao colo, ou preso por um cordão. Nesta parte acudiu também Sofia, ordenando que a procurasse antes, em casa. 

CAPÍTULO CLXXXIX 

SAÍRAM. Sofia, antes de pôr o pé na rua, olhou para um e outro lado, espreitando se vinha alguém; felizmente, a rua estava deserta. Ao ver-se livre da pocilga, Sofia readquiriu o uso das boas palavras, a arte maviosa e delicada de captar os outros, e enfiou amorosamente o braço no de Dona Fernanda. Falou-lhe de Rubião e da grande desgraça da loucura; assim também do palacete de Botafogo. Por que não ia com ela ver as obras? Era só lanchar um pouco, e partiriam imediatamente.  

Agora é Lei: Toda mulher tem direito a acompanhante maior de idade em consultas, exames e cirurgias

  No dia 27/11/2023 foi promulgada a Lei 14.737 que altera a Lei 8.080, de 19/09/1990 - Lei Orgânica da Saúde, para ampliar o direito da mul...