CAPÍTULO CLXIV
UM só incidente afligiu Sofia naquele dia puro e brilhante, — foi um encontro com
Rubião. Tinha entrado em uma livraria da Rua do Ouvidor para comprar um romance;
enquanto esperava o troco, viu entrar o amigo. Rapidamente voltou o rosto e percorreu
com os olhos os livros da prateleira, — uns livros de anatomia e de estatística; —
recebeu o dinheiro, guardou-o, e, de cabeça baixa, rápida como uma flecha, saiu à rua, e
enfiou para cima. O sangue só lhe sossegou, quando a Rua dos Ourives ficou para trás.
Dias depois, indo a entrar em casa de Dona Fernanda, deu com ele no saguão.
Cuidou que subisse, e dispôs-se a subir também, ainda que receosa; mas Rubião descia,
apertaram-se as mãos familiarmente, e despediram-se até à tarde.
— Ele vem aqui muitas vezes? perguntou Sofia a Dona Fernanda, depois de lhe
contar o encontro do saguão.
— Esta é a quarta vez, quarta ou quinta; mas só da segunda vez apareceu
delirando. Das outras é como viu agora; sossegado, e até conversador. Há nele sempre
alguma coisa que mostra não estar completamente bem. Não reparou nos olhos, um
pouco vagos? É isso, no mais, conversa bem. Creia, Dona Sofia; aquele homem pode
sarar. Por que não faz com que seu marido tome isto a peito?
— Cristiano tem projeto de o mandar examinar e tratar; mas, deixe estar que eu
o apresso.
— Pois sim. Ele parece ser muito amigo da senhora e do Senhor Palha
— Ter-lhe-á dito alguma inconveniência no delírio, a meu respeito? Pensou
Sofia. Convirá revelar-lhe a verdade?
Concluiu que não; o próprio mal do Rubião explicaria as inconveniências.
Prometeu que apressaria o marido, e nessa mesma tarde expôs o negócio ao Palha. É
uma grande amolação, redargüiu este. E perguntou que interesse tinha Dona Fernanda
em tornar àquele negócio. Que o tratasse ela mesma! Era uma atrapalhação ter de cuidar
do outro, de o acompanhar, e, provavelmente, de recolher e gerir algum resto de dinheiro que ainda houvesse, fazendo-se curador, como dissera o Doutor Teófilo. Um
aborrecimento de todos os diabos.
— Já ando com grande carga sobre mim, Sofia. E depois como há de ser?
Havemos de trazê-lo para casa? Parece que não. Metê-lo onde? Em alguma casa de
saúde... Sim, mas se não puderem aceitá-lo? Não hei de mandá-lo para a Praia
Vermelha... E as responsabilidades? você prometeu que me falaria?
— Prometi, e afirmei que você faria isto, respondeu Sofia sorrindo. Talvez não
custe tanto como parece.
Sofia insistiu ainda. A compaixão de Dona Fernanda tinha-a impressionado
muito; achou-lhe um quê distinto e nobre, e advertiu que a outra, sem relações estreitas
nem antigas com Rubião, assim se mostrava interessada, era de bom tom não ser menos
generosa.
CAPÍTULO CLXV
TUDO se fez sossegadamente. Palha alugou uma casinha na Rua do Príncipe, cerca do
mar, onde meteu o nosso Rubião, alguns trastes, e o cachorro amigo. Rubião adotou a
mudança sem desgosto, desde que lhe tornou o delírio, com entusiasmo. Estava nos seus
paços de Saint-Cloud.
Não sucedeu assim aos amigos da casa, que receberam a notícia da mudança
como um decreto de exílio. Tudo na antiga habitação fazia parte deles, o jardim, a
grade, os canteiros, os degraus de pedra, a enseada. Traziam tudo de cor. Era entrar,
pendurar o chapéu, e ir esperar na sala. Tinham perdido a noção da casa alheia e do
obséquio recebido. Depois, a vizinhança. Cada um daqueles amigos do Rubião estava
afeito a ver as pessoas do lugar, as caras da manhã e as da tarde, alguns chegavam a
cumprimentá-las, como aos seus próprios vizinhos. Paciência! iriam agora para
Babilônia, como os desterrados de Sião. Onde quer que estivesse o Eufrates, achariam
salgueiros em que pendurassem as harpas saudosas, — ou mais propriamente, cabides
em que pusessem os chapéus. A diferença entre eles e os profetas é que, ao cabo de uma
semana, pegariam outra vez dos instrumentos, e os tangeriam com a mesma graça e
força; cantariam os velhos hinos, tão novos como no primeiro dia, e Babel acabaria por
ser a mesma Sião, perdida e resgatada.
— O nosso amigo precisa de repouso por algum tempo, disse-lhes o Palha, em
Botafogo, na véspera da mudança. Hão de ter reparado que não anda bom; tem suas
horas de esquecimento, de transtorno, de confusão, vai tratar-se, por enquanto é preciso
que descanse. Arranjei-lhe uma casa pequena, mas pode ser que, ainda assim, passe para
um estabelecimento de saúde.
Ouviram atônitos. Um deles, o Pio, voltando a si mais depressa que os outros,
respondeu que há mais tempo se devia ter feito aquilo; mas, para fazê-lo, era preciso ter
influência decisiva no ânimo de Rubião.
— Muitas vezes lhe disse, por boas maneiras, que era indispensável consultar
um médico, por me parecer que tinha alguma coisa no estômago... Era um modo de
desviar o sentido, compreende? Mas ele respondia sempre que não tinha nada, digeria
bem... — “Mas come menos, dizia-lhe eu; há dias em que não come quase nada; está
mais magro, um pouco amarelo...” Compreende que não podia dizer-lhe a verdade.
Cheguei a consultar um médico, meu amigo; mas o nosso bom Rubião não o quis
receber.
Os outros quatro iam confirmando de cabeça toda aquela invenção; era o mais
que se lhes podia pedir e tudo o que lhes consentia o atordoamento do golpe. Acabaram
perguntando o número da nova casa, para irem saber dele. Pobre amigo! Quando se arrancaram dali, e se despediram uns dos outros, deu-se um fenômeno com que não
contavam; é que eles mesmos mal podiam separar-se. Não que os ligasse amizade nem
estima; o próprio interesse os fazia antipáticos. Mas o costume de se verem todos os
dias, ao almoço e ao jantar, — à mesma mesa, como que os tinha fundido uns nos
outros; a necessidade os fez suportáveis, o tempo os tornou mutuamente precisos. Em
resumo, eram os olhos de cada um que iam padecer com a ausência das caras de uso, do
gesto, das suíças, dos bigodes, da calva, dos sestros particulares, do modo de comer, de
falar e de estar dos companheiros. Era mais que separação, era desarticulação.
CAPÍTULO CLXVI
RUBIÃO notou que eles não o acompanharam à casa nova, e mandou-os chamar;
nenhum veio, e a ausência encheu de tristeza o nosso amigo, — durante as primeiras
semanas. Era a família que o abandonava. Rubião procurou recordar se lhes fizera
algum mal, por obra ou por palavra, e não achou nada.
CAPÍTULO CLXVII
CONVERSEI com o homem; achei-lhe idéias delirantes. Conquanto não seja alienista,
acho que pode ficar bom. Mas quer saber uma descoberta interessante?
— Crê que fique bom? disse Dona Fernanda, sem atender à pergunta do Doutor
Falcão.
Era deputado o Doutor Falcão, deputado e médico, amigo da casa, varão
sabedor, céptico e frio. Dona Fernanda tinha-lhe pedido o favor de examinar o Rubião,
pouco depois que este se transportou para a casa da Rua do Príncipe.
— Sim, creio que fique bom, desde que seja regularmente tratado. Pode ser que
a doença não tenha antecedentes na família. Mande ver um especialista. Mas não quer
saber a minha interessante descoberta?
— Qual é?
— Talvez tenha parte na moléstia uma pessoa sua conhecida, respondeu ele
sorrindo.
— Quem?
— Dona Sofia.
— Como assim?
— Ele falou-me dela com entusiasmo, disse-me que era a mais esplêndida
mulher do mundo, e que a nomeara duquesa, por não poder nomeá-la imperatriz; mas
que não brincassem com ele, que era capaz de fazer como o tio, divorciar-se e casar com
ela. Concluí que terá tido paixão pela moça; e depois a intimidade, Sofia para aqui,
Sofia para ali... Desculpe-me, mas eu creio que os dois se amaram.
— Oh! não!
— Dona Fernanda, creio que se amaram. Que admira? Eu mal a conheço; a
senhora parece que não a conhece há muito tempo, nem viveu na intimidade dela. Pode
ser que se tivessem amado, e que alguma paixão violenta... Suponhamos que ela o
mandasse pôr fora de casa... E verdade que tem a mania das grandezas; mas tudo se
pode juntar...
Dona Fernanda não olhava para ele, vexada de lhe ouvir aquela suposição;
evitava discuti-la pelo melindre do assunto. Achava a suspeita sem fundamento,
absurda, inverossímil; não chegaria a crer naquele amor espúrio, ainda que o ouvisse ao
próprio Rubião. Um desvairado, em suma. Quando o não fosse, é ainda provável que lhe
não desse fé. Sim, não lhe daria fé. Não podia crer que Sofia houvesse amado aquele homem, não por ele, mas por ela, tão correta e pura. Era impossível. Quis defendê-la;
mas apesar da intimidade do Doutor Falcão, recuou segunda vez do assunto, e repetiu a
pergunta de há pouco:
— Parece-lhe então que ele pode ficar bom?
— Pode, mas não basta o meu exame. A senhora sabe que, nestas coisas, é
melhor um especialista.
Pouco depois, saindo à rua, Falcão sorria da resistência de Dona Fernanda em
aceitar a sua hipótese. “Com certeza, houve alguma coisa, dizia ele consigo; boa cara, e,
se não é um petimetre, é apessoado, e tem fogo nos olhos. Com certeza... ” E repetia
algumas frases de Rubião, evocava o gesto e a modulação terna da voz, e cada vez mais
se lhe ia agravando a suspeita. “Com certeza...” Era já impossível que se não tivessem
amado; a oposição de Dona Fernanda parecia-lhe ingênua, — se não era antes um
recurso para desconversar e não tocar na matéria. Havia de ser isso.
Neste ponto, sem querer, o deputado estacou. Uma suspeita nova assaltara-lhe o
espírito. Após alguns instantes rápidos, abanou a cabeça voluntariamente, como a
desmentir-se, como a achar-se absurdo, e foi andando. Mas a suspeita era teimosa, e a
que ocupa deveras o interior do homem, não faz caso da cabeça nem dos seus gestos.
“Quem sabe se Dona Fernanda não suspirou também por ele? Essa dedicação não seria
um prolongamento de amor, etc.?” E assim foram nascendo perguntas, que achavam no
íntimo do Doutor Falcão resposta afirmativa. Resistiu ainda, era amigo da casa, tinha
respeito a Dona Fernanda, conhecia-a honesta; mas, — ia pensando, — bem podia ser
que um sentimento oculto, recatado, — quem sabe até se provocado pela mesma paixão
da outra... ? Há dessas tentações. O contágio da lepra corrompe o mais puro sangue; um
triste bacilo destrói o mais robusto organismo.
Pouco a pouco, as veleidades de resistência foram cedendo à noção da
possibilidade, da probabilidade e da certeza. Em verdade, tinha notícia de algumas obras
de caridade de Dona Fernanda; mas aquele caso era novo. Essa dedicação especial a um
homem que não era familiar da casa, nem velho amigo, nem parente, aderente, colega
do marido, qualquer coisa que o fizesse partícipe da vida doméstica, pelas relações, pelo
sangue ou pelo costume não era explicável sem algum motivo secreto. Amor,
seguramente; curiosidade de mulher honesta, que pode descambar no vício e no
remorso. Aquela teria recuado a tempo; ficou-lhe a simpatia mórbida... E daí, quem
sabe?
CAPÍTULO CLXVIII
E daí quem sabe? repetiu o Doutor Falcão na manhã seguinte. A noite não apagara a
desconfiança do homem. E daí quem sabe? Sim, não seria só simpatia mórbida. Sem
conhecer Shakespeare, ele emendou Hamlet: “Há entre o céu e a terra, Horácio, muitas
coisas mais do que sonha a vossa vã filantropia”. Ali andou dedo de amor. E não
chasqueava nem lastimava nada. Já disse que era céptico; mas, como era também
discreto, não transmitiu a ninguém a sua conclusão.
CAPÍTULO CLXIX
A volta de Carlos Maria e da mulher interrompeu as preocupações de Dona Fernanda,
relativamente a Rubião. Esta foi a bordo recebê-los, conduziu-os à Tijuca onde um
velho amigo da família de Carlos Maria alugara e trastejara uma casa, por ordem dele.
Sofia não foi a bordo; mandou o cupé esperá-los no cais Pharoux, mas Dona Fernanda
já ali tinha uma caleça, que os levou, e mais a ela e ao Palha. De tarde, Sofia foi visitar os recém-chegados.
Dona Fernanda não cabia em si de contente. As cartas de Maria Benedita os
davam por felizes; ela não pôde ler desde logo nos olhos e nas maneiras do casal a
confirmação do escrito. Pareciam satisfeitos. Maria Benedita não reteve as lágrimas,
quando abraçou a amiga, nem esta as suas, e ambas se apertaram como duas irmãs de
sangue. No dia seguinte, Dona Fernanda perguntou a Maria Benedita se ela e o marido
eram felizes, e, sabendo que sim, pegou-lhe nas mãos e fitou-a longamente sem achar
palavra. Não logrou mais que repetir a pergunta:
— Vocês são felizes?
— Somos, respondia Maria Benedita.
— Não sabe que bem me faz a sua resposta. Não é só porque eu teria remorsos,
se vocês não tivessem a felicidade que eu imaginei dar-lhes, mas também porque é bem
bom ver os outros felizes. Ele gosta de você como no primeiro dia?
— Creio que mais, porque eu o adoro.
Dona Fernanda não entendeu esta palavra. Creio que mais, porque eu o adoro!
Em verdade, a conclusão não parecia estar nas premissas; mas era o caso de emendar
outra vez Hamlet: “Há entre o céu e a terra, Horácio, muitas coisas mais do que sonha a
vossa vã dialética.” Maria Benedita começou a contar-lhe a viagem, a desfiar as suas
impressões e reminiscências; e, como o marido viesse ter com elas, pouco depois,
recorria à memória dele para preencher as lacunas.
— Como foi, Carlos Maria?
Carlos Maria lembrava, explicava, ou retificava, mas sem interesse, quase
impaciente. Adivinhara que Maria Benedita acabava de confiar a outra as suas venturas,
e mal podia encobrir o efeito desagradável que isto lhe trazia. Para que dizer que era
feliz com ele, se não podia ser outra coisa? E por que divulgar os seus carinhos e
palavras, as suas misericórdias de deus grande e amigo?
A volta ao Rio de Janeiro foi uma condescendência sua. Maria Benedita queria
ter aqui o filho; o marido cedeu, — a custo, mas cedeu. A custo, por quê? É difícil
explicá-lo, não menos que entendê-lo. Relativamente à maternidade, Carlos Maria tinha
idéias pessoais e singulares, recônditas, não confiadas a ninguém. Achava impudica a
natureza em fazer da gestação humana um fenômeno público, franco às vistas, crescente
até ao aleijão, sugestivo até ao desrespeito. Daí vinha o desejo da solidão, do mistério e
da ausência. Viveria de boa mente os últimos tempos no interior de uma casa única,
posta no alto de um morro, vedada ao mundo, donde a mulher baixasse um dia com o
filho nos braços e a divindade nos olhos.
Não fez sobre isto nenhuma proposta à mulher. Teria de discutir, e ele não
gostava de discutir; preferia ceder. Maria Benedita tinha naturalmente o sentimento
contrário: considerava-se a si mesma um templo divino e recatado em que vivia um
deus, filho de outro deus. A gestação ia cheia de tédios, de dores, de incômodos que ela
ocultava o mais que podia ao marido; mas tudo isso dava maior preço à criaturinha
futura. Acolhia o mal com resignação, se não é que o agasalhava com alegria, — uma
vez que era a condição da vinda do fruto. Fazia cordialmente o ofício da espécie. E
repetia sem palavras a resposta de Maria de Nazareth: “Eu sou a serva do Senhor; façase em mim a sua vontade.”
CAPÍTULO CLXX
— VOCÊ que tem? perguntou Maria Benedita ao marido, logo que ficaram sós.
— Eu? Nada. Por quê?
— Parecia estar aborrecido.
— Não, não estava aborrecido.
— Estava, sim, insistiu ela.
Carlos Maria sorriu, sem responder. Maria Benedita já lhe conhecia esse sorriso
especial, inexpressivo, sem ternura nem censura, superficial e pálido. Não teimou em
querer saber, mordeu os beiços e retirou-se.
No quarto, durante algum tempo, não cuidou de outra coisa que não fosse aquele
sorriso descorado e mudo, sinal de algum aborrecimento, cuja culpa não podia ser senão
ela. E percorria toda a conversação, todos os gestos que fizera, e não achava nada que
explicasse a frieza, ou o que quer que era de Carlos Maria. Talvez ela se mostrasse
excessiva nas palavras; era seu costume, se estava contente, pôr o coração nas mãos e
distribuí-lo a amigos e a estranhos. Carlos Maria reprovava essa generosidade, porque
dava um ar de sorte grande ao seu estado moral e doméstico, e porque lhe parecia banal
e inferior. Maria Benedita recordava-se que, em Paris, na colônia brasileira, sentira mais
de uma vez esse efeito de suas expansões, e reprimira-se. Mas Dona Fernanda estaria no
mesmo caso? Não era a autora da felicidade de ambos? Rejeitou essa hipótese, e tratou
de ver outra. Não a achando, voltou à primeira, e, segundo lhe sucedia sempre, deu
razão ao marido. Em verdade, por mais íntima e grata que fosse, não devia contar à boa
amiga as minúcias da vida; era leviandade sua.
Náuseas vieram interrompê-la neste ponto das reflexões. A natureza lembravalhe uma razão de Estado — a razão da espécie, — mais instante e superior aos tédios do
marido. Ela cedeu à necessidade; mas, poucos minutos depois, estava ao pé de Carlos
Maria, contornando-lhe o pescoço com o braço direito. Ele, sentado, lia uma revista
inglesa; pegou-lhe na mão, pendente sobre o peito, e acabou a página.
Você me perdoa? perguntou a mulher, quando o viu fechar o folheto. Daqui em diante
vou ser menos tagarela.
Carlos Maria pegou-lhe nas duas mãos, sorrindo e respondeu com a cabeça que
sim. Foi como se lançasse uma onda de luz sobre ela; a alegria penetrou-lhe a alma. Dirse-ia que o próprio feto repercutiu a sensação e abençoou o pai.
CAPÍTULO CLXXI
PERFEITAMENTE! Assim é que eu os quero ver! bradou uma voz do lado da varanda.
Maria Benedita afastou-se rapidamente do marido. A varanda, que comunicava para a
sala, por três portas, tinha uma destas aberta. Dali viera a voz; dali espiava e ria a cabeça
de Rubião. Era a primeira vez que o viam. Carlos Maria, sem se levantar, olhava para
ele, sério, esperando. E a cabeça ria, com os seus fartos bigodes de ponta de agulha,
mirando um e outro, e repetindo:
— Perfeitamente! assim é que eu os quero ver!
Rubião entrou, estendeu-lhes a mão, que eles receberam sem carinho, disse
muitas frases de admiração e louvor a Maria Benedita, ela tão galante, ele tão galhardo;
notou que ambos tivessem o nome de Maria, espécie de predestinação, e acabou
noticiando a queda do ministério.
— Caiu o ministério? perguntou involuntariamente Carlos Maria.
— Não se fala em outra coisa na cidade. Vou abancar-me, sem pedir licença, já
que não me oferecem cadeira, continuou ele, sentando-se, tirando a bengala que trazia
debaixo do braço e firmando as mãos sobre ela. Pois é verdade, o ministério pediu
demissão. Vou organizar outro. Há de entrar o Palha, o nosso Palha, — seu primo Palha,
e o senhor também, se lhe dá gosto, será ministro. Preciso de um bom gabinete, todo
gente amiga e forte, capaz de dar a vida por mim. Hei de chamar o Morny, o Pio, o Camacho, o Rouher, o major Siqueira. A senhora lembra-se do major? Creio que fica
com a guerra; não conheço homem mais apto para os negócios militares.
Maria Benedita, aborrecida e impaciente, andava pela sala, à espera que o
marido mandasse alguma coisa; este disse-lhe com os olhos que se fosse embora; ela
não aguardou outro gesto, pediu licença ao hóspede e retirou-se. Rubião, depois que ela
saiu, elogiou-a novamente, — uma flor, disse ele; e emendou-se rindo: duas flores, creio
que há ali duas flores. Nosso Senhor as abençoe! Carlos Maria estendeu-lhe a mão em
ar de despedida.
— Meu caro senhor...
— Posso incluí-lo no ministério? perguntou Rubião.
Não ouvindo resposta, entendeu que sim e prometeu-lhe uma boa pasta. O major
iria para a guerra, e o Camacho para a justiça. Não os conhecia acaso? “Dois grandes
homens, Camacho ainda maior que o outro.” E obedecendo a Carlos Maria, que ia
andando na direção da porta, Rubião retirava-se sem se sentir; mas não foi tão pronto.
Na varanda, antes de descer os degraus, referiu vários fatos da guerra. Por exemplo,
tinha restituído a Alemanha aos alemães; era bonito e político; já havia dado Veneza aos
italianos. Não precisava mais território; as províncias do Reno, sim, mas havia tempo de
as ir buscar.
— Meu caro senhor... insistiu Carlos Maria estendendo-lhe a mão.
Despediu-o e fechou a porta; Rubião proferiu ainda algumas palavras e desceu
os degraus. Maria Benedita, que os espreitava do fundo, veio ter com o marido, reteve-o
pela mão, e ficou a ver o Rubião que atravessava o jardim. Não ia direito, nem
apressado, nem calado; detinha-se, gesticulava, apanhava um galho seco, vendo mil
coisas no ar, mais galantes que a dona da casa, mais galhardas que o dono. Da vidraça
miravam o nosso amigo, e, em certo lance grotesco, Maria Benedita não pôde suster o
riso; Carlos Maria, porém, olhava plácido.
CAPÍTULO CLXXII
— MAS se a queda do ministério é verdadeira disse ela, sabe você quem está ministro?
— Quem? perguntou Carlos Maria com os olhos.
— Seu primo Teófilo. Nanã contou-me que ele andava com suas esperanças, e
foi por isso que ficou este ano na Corte. Desconfiou, ou já se falava na saída do
ministério; talvez desconfiasse. Não se lembra bem o que ela me disse; mas parece que
entra.
— Pode ser.
— Olha, lá vai Rubião; parou, está olhando para cima, espera talvez a diligência
ou o carro. Ele tinha carro. Lá vai andando...
CAPÍTULO CLXXIII
COM quê, o Teófilo está ministro! exclamou Carlos Maria.
E, depois de um instante:
— Creio que dará um bom ministro. Você queria ver-me também ministro?
— Se você gostasse, que remédio?
— De maneira que, por teu voto, não o era? perguntou Carlos Maria.
— Que hei de responder? pensou ela, escrutando o rosto do marido.
Ele, rindo:
— Confessa que me adorarias, ainda que eu fosse uma simples ordenança de
ministro. — Justamente! exclamou a moça, lançando-lhe os braços aos ombros.
Carlos Maria afagou-lhe os cabelos, e murmurou sério: — Bernadotte foi rei, e
Bonaparte imperador. Você queria ser a rainha-mãe da Suécia?
Maria Benedita não entendeu a pergunta nem ele a explicou. Para explicá-la
seria mister dizer que possivelmente trazia ela no seio um Bernadotte; mas esta
suposição significava um desejo, e o desejo uma confissão de inferioridade. Carlos
Maria espalmou outra vez as mãos sobre a cabeça da mulher, com um gesto que parecia
dizer: “Maria, tu escolheste a melhor parte...” E ela pareceu entender o sentido daquele
gesto.
— Sim! sim!
O marido sorriu e tornou à revista inglesa. Ela, encostada à poltrona, passava-lhe
os dedos pelos cabelos, muito ao de leve e caladinha para não perturbá-lo. Ele ia lendo,
lendo, lendo. Mana Benedita foi atenuando a carícia, retirando os dedos aos poucos, até
que saiu da sala, onde Carlos Maria continuou a ler um estudo de Sir Charles Little, M.
P., sobre a famosa estatueta de Narciso, do Museu de Nápoles.
CAPÍTULO CLXX IV
QUANDO Rubião foi à casa de Dona Fernanda, à tardinha, ouviu do criado que não
podia subir. A senhora estava incomodada; o senhor estava com ela; parece que
esperavam o médico. O nosso amigo não teimou, e retirou-se.
Era o contrário; era o senhor que estava doente, e a senhora que o acompanhava;
mas o criado não podia trocar o recado que lhe deram. Outro criado desconfiou, é certo,
que o doente fosse ele e não ela, porque o vira entrar abatido. Em cima, no quarto deles,
havia algum rumor de vozes, ora alto, ora baixo, com intervalos de silêncio. Uma
criadinha, que subira pé ante pé, desceu dizendo que ouvira lastimar-se o amo;
provavelmente a senhora estava perdida. Em baixo, um palavrear surdo, ouvidos
compridos, conjecturas; notavam que de cima não pedissem água, qualquer remédio, um
caldo, ao menos. A mesa posta, o criado engravatado, o cozinheiro orgulhoso e
ansioso... Justamente, um dos melhores jantares!
Que era? Teófilo tinha ainda o gesto abatido com que entrou; estava sentado em
um canapé, sem colete, olhos fixos. Ao pé dele, sentada também, segurando-lhe uma
das mãos, Dona Fernanda pedia-lhe que sossegasse, que não valia a pena. E inclinava-se
para ver-lhe o rosto, chamava-o para si, queria que ele encostasse a cabeça ao ombro
dela...
— Deixa, deixa, murmurava o marido.
— Não vale a pena, Teófilo! Pois agora um ministério...? Valerá tanto um cargo
de pouco tempo, cheio de desgostos, insultos, trabalhos, para quê? Não é melhor a vida
tranqüila? Vá que haja injustiça; creio que sim, você tem serviços; mas será tamanha
perda assim? Anda, querido, sossega; vamos jantar.
Teófilo mordia os beiços, puxando uma das suíças. Não ouvira nada do que a
mulher dissera, nem exortações nem consolações. Ouvira as conversas da noite anterior
e daquela manhã, as combinações políticas, os nomes lembrados, os recusados e os
aceitos. Nenhuma combinação o incluiu, posto que ele falasse com muita gente acerca
do verdadeiro aspecto da situação. Era ouvido com atenção por uns, com impaciência
por outros. Uma vez, os óculos do organizador pareceram interrogá-lo, — mas foi
rápido o gesto e ilusório. Teófilo recompunha agora a agitação de tantas horas e lugares,
— lembrava os que o olhavam de esguelha, os que sorriam, os que traziam a mesma
cara que ele. Para o fim já não falava; as últimas esperanças estalavam-lhe nos olhos
como lamparina de madrugada. Ouvira os nomes dos ministros, fora obrigado a achá-los bons; mas que força não lhe era precisa para articular alguma palavra! Receava que lhe
descobrissem o abatimento ou despeito, e todos os seus esforços concluíam por acentuálos ainda mais. Empalidecia, tremiam-lhe os dedos.
CAPÍTULO CLXXV
— ANDA, vamos jantar, repetiu Dona Fernanda.
Teófilo deu um golpe no joelho, com a mão aberta, e levantou-se, dizendo
palavras soltas e raivosas, andando de um lado para outro, batendo o pé, ameaçando.
Dona Fernanda não pôde vencer a violência daquele novo acesso, esperou que fosse
curto, e foi curto; Teófilo chegou-se a uma poltrona, sacudiu a cabeça e caiu outra vez
prostrado. Dona Fernanda pegou de uma cadeira e sentou-se ao pé dele.
— Tens razão, Teófilo; mas é preciso ser homem. És moço e forte, tens ainda
futuro, e talvez grande futuro. Quem sabe se, entrando agora no ministério, não
perderias mais tarde? Entrarás em outro. Às vezes, o que parece desgraça é felicidade.
— Teófilo apertou-lhe a mão agradecido.
— É perfídia, é intriga, murmurava ele, olhando para ela; eu conheço toda essa
canalha. Se eu contasse a você tudo, tudo... Mas para quê? Prefiro esquecer... Não é por
causa de uma miserável pasta que estou aborrecido, continuou ele depois de alguns
instantes. Pastas não valem nada. Quem sabe trabalhar e tem talento pode zombar das
pastas, e mostrar que é superior a elas. A maior parte dessa gente, Nanã, não me chega
aos calcanhares. Disso estou certo e eles também. Súcia de intrigantes! Onde acharão
mais sinceridade, mais fidelidade, mais ardor para a luta? Quem trabalhou mais na
imprensa, no tempo do ostracismo? Desculpam-se; dizem que os gabinetes já vêm
organizados de São Cristóvão... Ah! eu quisera falar ao Imperador!
— Teófilo!
— Eu diria ao Imperador: “Senhor, Vossa Majestade não sabe o que é essa
política de corredores, esses arranjos de camarilha. Vossa Majestade quer que os
melhores trabalhem nos seus conselhos, mas os medíocres é que se arranjam... O
merecimento fica para o lado.” É o que lhe hei de dizer um dia; pode ser até que
amanhã.
Calou-se. Depois de longa pausa, ergueu-se e foi ao gabinete de trabalho, que
ficava ao pé do quarto; a mulher acompanhou-o. Era já escuro, acendeu o bico de gás, e
circulou pelo gabinete os olhos velados de melancolia. Havia ali quatro largas estantes
cheias de livros, de relatórios, de orçamentos, de balanços do Tesouro. A secretária
estava em ordem. Três armários altos, sem portas, guardavam os manuscritos, notas,
lembranças, cálculos, apontamentos, tudo empilhado e rotulado metodicamente; —
créditos extraordinários, — créditos suplementares, — créditos de guerra, — créditos
de marinha, — empréstimo de 1868, — estradas de ferro, — dívida interna, —
exercício de 61 - 62, de 62 - 63, de 63 - 64, etc. Era ali que trabalhava de manhã e de
noite, somando, calculando, recolhendo os elementos dos seus discursos e pareceres,
porque era membro de três comissões parlamentares, e trabalhava geralmente por si e
pelos seis colegas; estes ouviam e assinavam. Um deles, quando os pareceres eram
extensos, assinava-os sem ouvir.
— Homem, você é mestre e basta, dizia-lhe, dê cá a pena.
Tudo ali respirava atenção, cuidado, trabalho assíduo, meticuloso e útil. Da
parede, em ganchos, pendiam os jornais da semana, que eram depois tirados, guardados
e finalmente encadernados semestralmente, para consultas. Os discursos do deputado,
impressos e brochados em 4º, enfileiravam-se em uma estante. Nenhum quadro ou busto, adereço, nada para recrear, nada para admirar; — tudo seco, exato,
administrativo.
— De que vale tudo isto? perguntou Teófilo à mulher, após alguns instantes de
contemplação triste. Horas cansadas, longas horas da noite até madrugada, às vezes.
Não se dirá que este gabinete é de homem, vadio; aqui trabalha-se. Você é testemunha
que eu trabalho. Tudo para quê?
— Consola-te trabalhando, murmurou ela.
Ele, acerbo:
— Ruim consolação! Não, não, acabo com isto, passo a ignorar tudo. Olha, na
câmara, todos me consultam, até os ministros — porque sabem que eu aplico-me
deveras às coisas da administração. Que prêmio? Vir para cá, em maio, aplaudir os
novos senhores?
— Pois não aplaudas nada, disse-lhe mansamente a mulher. Queres fazer-me um
obséquio? Vamos à Europa, em março ou abril, e voltemos daqui a um ano. Pede
licença à câmara, donde quer que estejamos, de Varsóvia, por exemplo; tenho muita
vontade de ir a Varsóvia, continuou sorrindo e fechando-lhe graciosamente a cara entre
as mãos. Diga que sim; responda que é para eu escrever hoje mesmo para o Rio Grande,
o vapor sai amanhã. Está dito; vamos a Varsóvia?
— Não brinques, Nanã, que isto não é objeto de brincadeira.
— Falo seriamente. Já há muito tempo que ando para propor a você uma
viagem, a ver se descansa desta papelada infernal. E demais, Teófilo! Você mal se pode
arranjar para uma visita. Passeio, é raro. Quase não conversa. Os nossos filhos apenas
vêem seu pai, porque aqui não se entra quando você trabalha... É preciso descansar;
peço-lhe um ano de repouso. Olhe que é sério. Vamos para a Europa em março.
— Não pode ser, balbuciou ele.
— Por que não?
Não podia ser. Era convidá-lo a sair da própria pele. Política valia tudo. Que
também houvesse política lá fora, sim; mas que tinha ele com ela? Teófilo não sabia
nada do que ia por fora, exceto a nossa dívida cm Londres, e meia dúzia de economistas.
Contudo, agradeceu à mulher a intenção da proposta:
— Tu és boa.
E um sentimento vago de esperança restituía à voz do deputado a brandura que
perdera naquela grande crise moral. Os papéis sopravam-lhe ânimo. Toda aquela massa
de estudos aparecia-lhe como a terra adubada e semeada aos olhos do lavrador. Não
tardaria a grelar; o trabalho teria a recompensa; um dia mais tarde ou mais cedo, o grelo
brotaria e a árvore daria frutos. Era justamente o que a mulher havia dito por outras
palavras diretas e próprias; mas só agora é que ele via a possibilidade da colheita.
Lembrou-se das explosões de cólera, de indignação, de desespero, das queixas de há
pouco, ficou vexado. Quis rir, e fê-lo mal. Ao jantar e ao café entreteve-se com os
filhos, que naquela noite recolheram-se mais tarde. Nuno, que já andava no colégio,
onde ouvira falar da mudança de gabinete, disse ao pai que queria ser ministro. Teófilo
ficou sério.
— Meu filho, disse ele, escolhe outra coisa, menos ministro.
— Diz que é bonito, papai; diz que anda de carro com soldado atrás.
— Pois eu te dou um carro.
— Papai já foi ministro?
Teófilo tentou sorrir e olhou para a mulher, que aproveitou a ocasião para
mandar deitar os filhos.
— Já, já fui ministro, respondeu o pai beijando a testa ao Nuno; mas não quero
mais, é muito feio, dá trabalho. Tu hás de ser capelão.
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— Que é capelão?
— Capelão é cama, respondeu Dona Fernanda; vai dormir, Nuno.
CAPÍTULO CLXXVI
AO almoço, no dia seguinte, Teófilo recebeu uma carta por uma ordenança.
— Ordenança?
— Sim, senhor, diz que vem da parte do senhor presidente do conselho.
Teófilo abriu a carta, com a mão trêmula. Que podia ser? Tinha lido nos jornais
a relação dos novos ministros; o gabinete estava completo. Não havia divergência de
nomes. Que podia ser? Dona Fernanda, defronte do marido, procurava ler-lhe no rosto o
texto da carta. Via uma claridade; percebeu que a boca sofreava um sorriso de
satisfação, — de esperança, ao menos.
— Diga que espere, ordenou Teófilo ao criado.
Foi ao gabinete, e tornou minutos depois com a resposta. Sentou-se à
mesa, calado, dando tempo a que o criado entregasse a carta à ordenança. Desta vez,
como estava prevenido, ouviu as patas do cavalo, e logo depois a galope, rua fora e
sentiu-se bem.
— Lê, disse ele.
Dona Fernanda leu a carta do presidente do conselho; era um pedido para ir
falar-lhe às duas horas da tarde.
— Mas então o ministério...?
— Está completo, deu-se pressa em dizer o deputado; os ministros estão
nomeados.
Não acreditava de todo o que dizia. Imaginava alguma vaga da última hora, e a
necessidade urgente de a preencher.
— Há de ser alguma conferência política, ou talvez queira conversar sobre o
orçamento, — ou incumbir-me algum estudo.
Dizendo isto, para iludir a mulher, sentiu a probabilidade das hipóteses, e outra
vez se abateu; mas, três minutos depois, as borboletas da esperança volteavam diante
dele, não duas, nem quatro, mas um turbilhão, que cegava o ar.
CAPÍTULO CLXXVII
DONA FERNANDA esperou, cheia de ânsias, como se o ministério fosse para ela, e lhe
viesse dar qualquer gosto, que não fosse amargo e complicado. Uma vez, porém, que
satisfizesse o marido, tudo iria pelo melhor. Teófilo tornou às cinco horas e meia. Pelo
aspecto reconheceu que vinha satisfeito. Correu a apertar-lhe as mãos.
— Que há?
— Pobre Nanã! Aí vamos com a trouxa às costas. O marquês pediu-me
instantemente que aceitasse uma presidência de primeira ordem. Não podendo meter-me
no gabinete, onde tinha lugar marcado, desejava, queria e pedia que eu partilhasse a
responsabilidade política e administrativa do governo, assumindo uma presidência. Não
podia, em nenhum caso, dispensar o meu prestígio (são palavras dele), e espera que na
câmara assuma o lugar de chefe da maioria. Que dizes?
— Que arranjemos a trouxa, respondeu Dona Fernanda.
— Achas que podia recusar?
— Não.
— Não podia. Você sabe, não se podem negar serviços destes a um governo
amigo; ou então deixa-se a política. Tratou-me muito bem o marquês; eu já sabia que era homem superior; mas que risonho e afável! não imaginas. Quer também que
compareça a uma reunião, os ministros e alguns amigos, poucos, meia dúzia. Confioume já o programa do gabinete, em reserva.
— Quando saímos?
— Não sei; hei de estar com ele amanhã, à noite. A reunião é amanhã às oito
horas... Mas não te parece que fiz bem, aceitando?
— Decerto.
— Sim; se recusasse censurar-me-iam, e com razão. Em política, a primeira
coisa que se perde é a liberdade. Agora você é que se quisesse, podia ficar; daqui a
cinco meses, — ou quatro, — abrem-se as câmaras; mal terei tempo de chegar e olhar.
CAPÍTULO CLXXVIII
DONA FERNANDA anuiu à proposta; não interrompia a educação do filho; era uma
separação de quatro meses. Teófilo partiu daí a dias. Na manhã do dia do embarque,
logo cedo, foi despedir-se do gabinete de trabalho. Deitou os últimos olhos aos livros,
relatórios, orçamentos, manuscritos, a toda essa parte da família, que só tinha língua e
interesse para ele. Havia atado os papéis e os folhetos para que se não extraviassem, e
fez à mulher grandes recomendações. Parado no centro, circulou a vista pelas estantes, e
dispersou a alma por todas elas. Despedia-se assim dos seus santos e amigos, com
verdadeiras saudades. Dona Fernanda, que estava ao pé dele, não viveu ali mais que os
dez minutos de despedida. Teófilo viveu muitos anos.
— Deixa estar, eu cuidarei deles, eu mesma os espanarei todos os dias.
Teófilo deu-lhe um beijo... Outra mulher recebê-lo-ia triste, por ver que ele
amava tanto os livros que parecia amá-los mais que a ela. Mas Dona Fernanda sentiu-se
venturosa.
CAPÍTULO CLXXIX
RUBIÃO, desde o dia da crise ministerial, não tornou à casa de Dona Fernanda; nada
soube, nem da presidência, nem do embarque de Teófilo. Vivia entre o cão e um criado,
sem grandes crises, nem longos repousos. O criado fazia o serviço irregularmente,
comia gratificações, e recebia, amiúde, o título de marquês. Ao demais, divertia-se.
Quando lhe dava ao amo para conversar com as paredes, o criado corria a espiá-lo;
assistia ao diálogo, porque o Rubião incumbia-se das palavras delas, respondendo como
se houvessem feito alguma pergunta. De noite, ia à palestra com os amigos da
vizinhança.
— Como vai o gira?
— O gira vai bem. Hoje convidou o cachorro para cantar; o cachorro ladrou
muito, e ele gostou que se pelou, mas assim um gosto de figurão. Ele, quando está de
pancada, parece que é como quem governa o mundo. Ainda ontem, almoçando, disse
para mim: “Marquês Raimundo... quero que tu...” e embrulhou o resto, que não entendi
nada. No fim deu-me dez tostões.
— Você guardou logo...
— Ora!
Quando Rubião voltava do delírio, toda aquela fantasmagoria palavrosa tornavase, por instantes, uma tristeza calada... A consciência, onde ficavam rastos do estado
anterior, forcejava por despegá-los de si. Era como a ascensão dolorosa que um homem
fizesse do abismo, trepando pelas paredes, arrancando a pele, deixando as unhas, para chegar acima, para não tombar outra vez e perder-se. Ia então à visita dos amigos, uns
novos, outros velhos, como a gente do major e a do Camacho, por exemplo.
Este, desde algum tempo, era menos conversado. A mesma política não lhe dava
matéria aos discursos de outrora. No escritório, quando via Rubião assomar à porta,
fazia um gesto de impaciência, que sofreava logo; o outro notava essa mudança, e
perdia-se em conjecturas, se lhe escapara alguma ofensa, por descuido — ou se
começava a aborrecê-lo. E para desfazer o tédio ou o ressentimento, falava macio,
risonho, abrindo longas pausas respeitosas, à espera que ele dissesse qualquer coisa. Em
vão apelava para o Marquês de Paraná, cujo retrato continuava a pender da parede;
repetia os nomes que lhe ouvira, — o grande marquês! o estadista consumado!
Camacho ia apoiando de cabeça, e escrevendo sem parar, consultando os autos e os
praxistas, Lobão, Coelho da Rocha, citando, riscando, pedindo-lhe desculpa. Tinha um
libelo que dar naquele dia. Interrompia-se para ir à estante.
— Com licença.
Rubião arredava as pernas para deixá-lo passar; ele tirava um volume das
Ordenações do Reino, e folheava, folheava, pulando adiante, voltando atrás, à toa, sem
buscar nada, unicamente para o fim de despedir o importuno; mas o importuno ia
ficando, por isso mesmo, e entreolhavam-se disfarçados. Camacho tornava ao libelo.
Para ler, sentado, inclinava-se muito à esquerda, donde lhe vinha a luz, dando as costas
ao Rubião.
— Aqui é escuro, aventurou Rubião um dia.
E não ouviu resposta, tão atento parecia o advogado na leitura dos autos.
Realmente, pode ser importunação, pensou o nosso amigo. Espreitava-lhe o rosto duro e
sério, o gesto com que pegava da pena para continuar o interminável libelo. Vinte
minutos mais de silêncio absoluto. No fim desse prazo, Rubião viu-o deixar a pena,
retesar o busto, esticar os braços e passar as mãos pelos olhos. Disse-lhe com interesse:
— Cansado, não?
Camacho fez um gesto afirmativo, e preparou-se para continuar; então o nosso
homem levantou-se e aproveitou o intervalo para dizer adeus.
— Voltarei, quando estiver menos atarefado.
Estendeu-lhe a mão; Camacho segurou-lha ao de leve, e tornou ao papel. Rubião
desceu a escada, aturdido, magoado com a frieza do seu ilustre amigo. Que lhe teria
feito?
CAPÍTULO CLXXX
DAQUELA vez, teve a fortuna de encontrar o major Siqueira.
— Ia agora mesmo à sua casa, disse-lhe; vai para lá?
— Vou; mas já não estamos na mesma casa; mudamo-nos para os Cajueiros,
Rua da Princesa...
— Seja onde for, vamos.
Rubião precisava de um pedaço de corda que o atasse à realidade, porque o
espírito sentia-se outra vez presa da vertigem. Entretanto, falou com tal acerto e
propriedade, que o major o achou em pleno juízo, e disse-lhe:
— Sabe que tenho uma grande notícia que lhe dar?
— Vamos a ela.
— Há de ser quando chegarmos.
Chegaram. Era uma casa assobradada; Dona Tonica veio abrir-lhes a cancela.
Trazia um vestido novo e brincos.
— Olhe bem para ela, disse o major pegando na filha pelo queixo.
Dona Tonica recuou envergonhada.
— Estou olhando, respondeu Rubião.
— Não se vê logo que é uma pessoa que vai casar?
— Ah! parabéns!
— É verdade, vai casar. Custou, mas acertou. Achou por aí um noivo, que a
adora, como todos eles; eu, quando fui noivo, adorei a minha defunta, que foi uma coisa
nunca vista... Vai casar. Arranjou um noivo. Custou, mas acertou. Pessoa séria, meiaidade; vem aqui passar as noites. De manhã, quando passa para a repartição, creio que
bate na janela, ou ela já o espera; eu finjo que não percebo.
Dona Tonica dizia com a cabeça que não, mas sorrindo de modo que parecia
dizer que sim. Estava tão buliçosa! Nem se lembrava já que reqüestara o Rubião, que
este fora uma das últimas, e por fim a última das suas esperanças. Tinham entrado na
sala; Dona Tonica foi à janela, voltou, cabeça alta, andando à toa, reconciliada com a
vida.
— Boa pessoa, repetiu o major, boa criatura... Tonica, vai buscar o retrato...
Anda, vai buscar o teu noivo...
Dona Tonica foi buscar o retrato. Era uma fotografia; representava um homem
de meia idade, cabelo curto, raro, olhando espantado para a gente, cara chupada,
pescoço fino e paletot abotoado.
— Que lhe parece?
— Muito bem.
Dona Tonica recebeu o retrato e fitou-o alguns instantes; mas, tirou logo os
olhos, e deixou-se estar sentada, enquanto a imaginação saiu a esperar o Rodrigues.
Chamava-se Rodrigues. Era mais baixo que ela, coisa que o retrato não dava, — e
empregado em uma repartição do ministério da guerra. Viúvo, com dois filhos, um que
estava no batalhão dos menores, outro que era tuberculoso, — doze anos, —condenado
à morte. Que importa? Era o noivo; todas as noites, ao recolher-se, Dona Tonica
ajoelhava-se ante a imagem de Nossa Senhora, sua madrinha, agradecia-lhe o favor e
pedia-lhe que a fizesse feliz. Sonhava já com um filho; havia de chamar-lhe Álvaro.
CAPÍTULO CLXXXI
RUBIÃO escutou calado um discurso do major. O casamento era dali a mês e meio; o
noivo tinha que perfazer os arranjos da casa, não era capitalista, vivia do ordenado e
recorrera a empréstimos. A casa era a mesma e não exigia trastes novos nem ricos; mas,
há sempre algumas necessidades... Em suma, dali a mês e meio, ou pelo menos, cinco
semanas, estariam unidos pelos santos laços do matrimônio.
— E fico eu livre do trambolho, concluiu o major.
— Oh! protestou Rubião.
A filha ria-se; estava acostumada às graças do pai, e tão disposta à alegria que
nada a vexava; ainda mesmo que o pai se referisse aos seus quarenta anos passados não
lhe daria grande golpe. Todas as noivas têm quinze anos.
— Verá como ele há de procurá-la depois, com saudades, disse Rubião a Dona
Tonica.
— Qual! Talvez eu me case também!
Rubião levantou-se repentino, e deu alguns passos; o major não viu a expressão
do rosto, não percebeu que o espírito do homem ia talvez descarrilhar, e que ele mesmo
o pressentia. Disse-lhe que se sentasse, e contou-lhe os seus tempos de casado e de
campanha. Quando chegou à narração da batalha de Monte-Caseros, com as marchas e
contramarchas próprias do seu discurso, tinha diante de si Napoleão III. Calado a princípio, Rubião proferiu algumas palavras de aplauso, citou Solferino e Magenta,
prometeu ao Siqueira uma condecoração. Pai e filha entreolharam-se; o major disse que
vinha muita chuva. Com efeito, escurecera um pouco. Era melhor que Rubião fosse,
antes de cair água; não trouxera guarda-chuva, o dele era velho e único...
— Aí vem o meu coche, redargüiu Rubião tranqüilamente.
— Não vem, foi esperá-lo no Campo. Não vês daí o coche, Tonica?
Dona Tonica fez um gesto vago e sem vontade. Não queria mentir, mas tinha
medo, e desejava que Rubião saísse. Da casa era impossível ver o Campo da
Aclamação. Já então o pai pegava no Rubião pelo braço e o encaminhava para a porta.
— Volte amanhã, depois, quando quiser.
— Mas por que não hei de esperar aqui até que venha o coche? perguntou
Rubião. A imperatriz não pode apanhar chuva...
— A imperatriz já foi.
— Fez mal. Eugênia fez muito mal. General... Para que há de o senhor ficar
sempre em major? General, vi o retrato do seu genro; quero dar-lhe o meu. Mande às
Tulherias. Onde está o coche?
— Está no Campo, esperando.
— Mande chamá-lo.
Dona Tonica, que estava à janela, disse para dentro:
— Lá vem Rodrigues.
E tornou a olhar para a rua, inclinando-se, sorrindo, enquanto na sala o pai
continuava a guiar o Rubião para a porta, sem violência, mas tenaz. Este parava,
repreendia:
— General, sou seu imperador!
— Decerto, mas acompanhe-me Vossa Majestade...
Tinham chegado à porta; o major abriu a cancela, justamente quando o
Rodrigues punha o pé na soleira. Dona Tonica entrou para receber o noivo, mas a porta
estava atravancada com o pai e Rubião. Rodrigues tirou o chapéu, mostrando o cabelo,
áspero e grisalho; tinha nas faces chupadas umas pintinhas de sarda, mas o riso era bom
e humilde, — mais humilde ainda que bom, — e, não obstante a trivialidade do gesto e
da pessoa, era agradável. Os olhos não mostravam o espanto da fotografia; este efeito
provinha da ênfase que ele pôs em todo o corpo, a fim de que o retrato saísse bonito.
— Este senhor é o meu futuro genro, disse o major a Rubião. Não é verdade que
viu no Campo um coche e um esquadrão de cavalaria? perguntou ao Rodrigues,
piscando um olho.
— Parece que sim, senhor.
— Pois então? continuou Siqueira, voltando-se para Rubião. Vá, vá, dobre a Rua
de S. Lourenço, e caminhe direito para o Campo. Adeus, até amanhã.
Rubião desceu três degraus, — eram cinco — e parou diante do recém-chegado,
fitou-o alguns instantes e declarou que estimava muito conhecê-lo, que fosse bom
esposo e bom genro. Como se chamava?
— João José Rodrigues.
— Rodrigues. Hei de mandar-lhe uma fitinha aqui para a casaca. É o meu
presente de núpcias. Lembre-me, Siqueira.
Siqueira pegou-lhe no braço para fazê-lo descer os dois últimos degraus e pô-lo
na rua.
— No Campo, dizes tu?
— No Campo.
— Adeus.
Da rua, ainda Rubião olhou para as janelas, com os dedos no chapéu, a fim de
cumprimentar Dona Tonica; mas Dona Tonica estava na sala, onde Rodrigues acabava
de entrar, fresco e delicioso, como a primeira rosa de verão.
CAPÍTULO CLXXXII
RUBIÃO não cuidou mais do coche nem do esquadrão de cavalaria. Foi dar consigo
abaixo, andou por várias ruas, até que subiu pela de São José. Desde o paço imperial,
vinha gesticulando e falando a alguém que supunha trazer pelo braço, e era a imperatriz.
Eugênia ou Sofia? Ambas em uma só criatura, — ou antes a segunda com o nome da
primeira. Homens que iam passando, paravam, do interior das lojas corria gente às
portas. Uns riam-se, outros ficavam indiferentes; alguns, depois de verem o que era,
desviavam os olhos para poupá-los à aflição que lhes dava o espetáculo do delírio. Uma
turba de moleques acompanhava o Rubião, alguns tão próximos, que lhe ouviam as
palavras. Crianças de toda a sorte vinham juntar-se ao grupo. Quando eles viram a
curiosidade geral, entenderam dar voz à multidão, e começou a surriada:
— Ó gira! ó gira!
Esse vozear chamou a atenção de outras pessoas, muitas janelas dos sobrados
começaram a abrir-se, apareceram curiosos de ambos os sexos e todas as idades, um
fotógrafo, um estofador, três e quatro figuras juntas, cabeças por cima de outras, todas
inclinadas, espiando, acompanhando o homem, que falava à parede, com o seu gesto
cheio de grandeza e de obséquio.
— Ó gira! ó gira! berravam os vadios.
Um deles, muito menor que todos, apegava-se às calças de outro, taludo. Era já
na Rua da Ajuda. Rubião continuava a não ouvir nada; mas, de uma vez que ouviu,
supôs que eram aclamações, e fez uma cortesia de agradecimento. A surriada
aumentava. No meio do rumor, distinguiu-se a voz de uma mulher à porta de uma
colchoaria:
— Deolindo! vem para casa, Deolindo!
Deolindo, a criança, que se agarrava às calças da outra mais velha, não
obedeceu; pode ser que nem ouvisse, tamanha era a grita, e tal a alegria do pequerrucho,
clamando com a vozinha miúda:
— Ó gira! ó gira!
— Deolindo!
Deolindo tratou de esconder-se entre os outros, para escapar às vistas da mãe
que o chamava; esta, porém, correu ao grupo, e arrancou-o de lá. Em verdade, era
pequeno demais para andar em tumultos de rua.
— Mamãe, deixa eu ver...
— Qual ver! anda!
Meteu-o em casa, e ficou à porta, a olhar para a rua. Rubião estacara o passo; ela
pôde vê-lo bem, com os seus gestos e palavras, o peito alto, e uma barretada que deu em
volta.
— Os malucos têm graça, às vezes, disse ela sorrindo a uma vizinha.
Os rapazes continuavam a. bradar e a rir, e Rubião foi andando, com o mesmo
coro atrás de si. Deolindo, à porta da loja, vendo o grupo alongar-se, pedia
chorosamente à mãe que o deixasse ir também, ou então que o levasse. Quando perdeu
as esperanças, enfeixou todas as energias em um só gritozinho esganiçado:
— Ó gira!
CAPÍTULO CLXXXIII
A vizinha riu-se. A mãe riu-se também. Confessou que o filho era uma pestezinha, um
endiabrado, que não sossegava; não podia perdê-lo de vista. Qualquer distração, estava
na rua. E isto desde pequenino; tinha ainda dois anos, quando escapou de morrer em
baixo de um carro, ali mesmo; esteve por um fio. Se não fosse um homem que passava,
um senhor bem vestido, que acudiu depressa, até com perigo de vida, estaria morto e
bem morto. Nisto o marido, que vinha pela calçada oposta, atravessou a rua, e
interrompeu a conversação. Trazia o cenho carregado, mal cumprimentou a vizinha, e
entrou; a mulher foi ter com ele. Que era? O marido contou a surriada.
— Passou por aqui, disse ela.
— Não conheceste o homem?
— Não.
O marido cruzou os braços e ficou a olhar, fixo, calado. A mulher perguntou-lhe
quem era.
— É aquele homem que nos salvou o Deolindo da morte.
A mulher estremeceu.
— Viste bem? perguntou.
— Perfeitamente. Se eu já o tinha encontrado outras vezes, mas então não estava
assim. Coitado! E a molecada berrava atrás dele. Qual! não há polícia nesta terra.
O que lhe doía à mulher não era tanto o mal do homem, nem ainda a surriada;
mas a parte que teve nesta o filho, — a mesma criança que o homem salvara da morte.
Realmente, como podia o menino reconhecê-lo, nem saber que lhe devia a vida? Doíalhe o encontro, a coincidência. Afinal, contentou-se de pôr todas as culpas em si. Se
tivesse tido mais cuidado, o pequeno não haveria saído, e não entraria na troça. Tremia
de quando em quando, e estava inquieta. O marido pegou na cabeça do filho, e deu-lhe
dois beijos.
— Você viu a cena toda? perguntou à mulher.
— Vi.
— Eu ainda quis dar o braço ao homem, e trazê-lo para aqui; mas, tive vergonha;
os moleques eram capazes de dar-me uma vaia. Desviei o rosto, porque ele podia
conhecer-me. Coitado! Nota que não parecia ouvir nada, e seguia satisfeito, creio que
até ria... Que triste coisa que é perder o juízo!
A mulher pensava na travessura do filho; não a referiu ao marido, pediu à
vizinha que não aludisse a ela, e, de noite, só pregou olho tarde. Metera-se-lhe em
cabeça que, anos depois, o filho endoidecia, era castigado pela mesma troça, e que ela
cuspia para o céu, indignada, blasfemando.
CAPÍTULO CLXXXIV
DUAS horas depois da cena da Rua da Ajuda chegou Rubião à casa de Dona Fernanda.
Os vadios foram-se dispersando, a pouco e pouco, e os claros não se preenchiam; os três
últimos juntaram os seus adeuses em um berro único e formidável. Rubião continuou
sozinho, mal percebido pelos moradores das casas, porque a gesticulação diminuía ou
mudava de feitio. Não se dirigia à parede, à suposta imperatriz; mas era ainda
imperador. Caminhava, parava, murmurava, sem grandes gestos, sonhando sempre,
sempre, sempre, envolvido naquele véu, através do qual todas as coisas eram outras,
contrárias e melhores; cada lampião tinha um aspecto de camarista, cada esquina uma
feição de reposteiro. Rubião seguia direito à sala do trono, para receber um embaixador
qualquer, mas o paço era interminável, cumpria atravessar muitas salas e galerias, verdade é que sobre tapetes, — e por entre alabardeiros, altos e robustos.
Das gentes que o viam e paravam na rua, ou se debruçavam das janelas, muitas
suspendiam por instantes os seus pensamentos tristes ou enfastiados, as preocupações
do dia, os tédios, os ressentimentos, este uma dívida, outro uma doença, desprezos de
amor, vilanias de amigo. Cada miséria esquecia-se, o que era melhor que consolar-se;
mas o esquecimento durava um relâmpago. Passado o enfermo, a realidade empolgavaos outra vez, as ruas eram ruas, porque os paços suntuosos iam com Rubião. E mais de
um tinha pena do pobre diabo; comparando as duas fortunas, mais de um agradecia ao
céu a parte que lhe coube, — amarga, mas consciente. Preferiam o seu casebre real ao
alcáçar fantasmagórico.
CAPÍTULO CLXXXV
RUBIÃO foi recolhido a uma casa de saúde. Palha esquecera a obrigação que Sofia lhe
impôs, e Sofia não se lembrou mais da promessa feita à rio-grandense. Cuidavam ambos
de outra casa, um palacete em Botafogo, cuja reconstrução estava prestes a acabar, e que
eles queriam inaugurar, no inverno, quando as câmaras trabalhassem, e toda a gente
houvesse descido de Petrópolis. Mas agora a promessa foi cumprida; Rubião deu
entrada no estabelecimento, onde ficou ocupando uma sala e um quarto especiais,
recomendado pelo Doutor Falcão e pelo Palha. Não resistiu a nada; acompanhou-os com
satisfação, e entrou nos seus aposentos, como se os conhecesse desde muito. Quando
eles se despediram, dizendo que já voltavam, Rubião convidou-os para uma revista
militar, no sábado.
— Pois sim, sábado, assentiu Falcão.
— Sábado é bom dia, continuou Rubião. Não faltes, duque de Palha.
— Não falto, disse o Palha andando.
— Olha, mandar-te-ei um dos meus coches, novo em folha; é preciso que tua
mulher pouse o seu lindo corpo, onde ninguém ainda ousou sentar-se. Almofadas de
damasco e veludo, arreios de prata e rodas de ouro; os cavalos descendem do próprio
cavalo que meu tio montava em Marengo. Adeus, duque de Palha.
CAPÍTULO CLXXXVI
PARA mim, é claro, saiu pensando o Doutor Falcão, aquele homem foi amante da
mulher deste sujeito.
CAPÍTULO CLXXXVII
LÁ ficou o homem. Quincas Borba tentara entrar na carruagem que levou o amigo, e
porfiou em acompanhá-la, correndo; foi necessária toda a força do criado para agarrá-lo,
contê-lo e trancá-lo em casa. Era a mesma situação de Barbacena; mas a vida, meu rico
senhor, compõe-se rigorosamente de quatro ou cinco situações, que as circunstâncias
variam e multiplicam aos olhos. Rubião pediu instantemente que lhe mandassem o cão.
Dona Fernanda, alcançado o consentimento do diretor, cuidou de satisfazer o desejo do
doente. Quis escrever a Sofia, mas foi ela própria ao Flamengo.
CAPÍTULO CLXXXVIII
MANDO ver, é aqui perto, propôs Sofia.
— Vamos nós mesmas. Que tem? Já pensei em uma coisa. Valerá a pena
conservar a casa pronta e alugada, quando a cura pode prolongar-se? Melhor é deixá-la,
vender os trastes e apurar o que houver.
Foram a pé do Flamengo à Rua do Príncipe, três a quatro minutos. Raimundo
estava na rua, mas viu gente à porta e veio abri-la. O interior da casa tinha a feição do
abandono, sem a fixidez e regularidade das coisas, que parecem conservar um resto da
vida interrompida; era o abandono do desmazelo. Mas, por outro lado, o transtorno dos
móveis da sala exprimia bem o delírio do morador, suas idéias tortas e confusas.
— Ele foi muito rico? perguntou Dona Fernanda a Sofia.
— Tinha alguma coisa, respondeu esta, quando chegou de Minas; mas parece
que estragou tudo. Olhe, levante o vestido que o chão parece que não se varre há um
século.
Não era só o chão; os trastes tinham a crosta da incúria. Nem por isso o criado
explicava nada; olhava, escutava, e, baixinho, assobiava uma polca do dia. Sofia não lhe
perguntou pelo asseio; estava morta por fugir “daquela imundície”, dizia a si mesma, e
tinha vontade de indagar do cão, que era o principal motivo da visita; mas, não queria
mostrar interesse por ele nem pelo resto. A trivialidade daquilo tudo não lhe dizia nada
ao espírito nem ao coração; a lembrança do alienado não a ajudava a suportar o tempo.
De si para si achava a companheira singularmente romântica ou afetada. “Que
bobagem!” ia pensando, sem desconcertar o sorriso aprovador com que acudia a todas
as observações de Dona Fernanda.
— Abra aquela janela, disse esta ao criado; tudo cheira a mofo.
— Oh! insuportável! acudiu Sofia, respirando com asco.
Mas, apesar da exclamação, Dona Fernanda não se resolveu a sair. Sem que
nenhuma recordação pessoal lhe viesse daquela miserável estância, sentia-se presa de
uma comoção particular e profunda, não a que dá a ruína das coisas. Aquele espetáculo
não lhe trazia um tema de reflexões gerais, não lhe ensinava a fragilidade dos tempos,
nem a tristeza do mundo; dizia-lhe tão-somente a moléstia de um homem, de um
homem que ela mal conhecia, a quem falara algumas vezes. E ia ficando e olhando, sem
pensar, sem deduzir, metida em si mesma, dolente e muda. Sofia não ousava articular
nada, com receio de ser desagradável a tão conspícua dama. Tinham ambas os vestidos
apanhados, para evitar a mácula da poeira; mas Sofia acrescentou a essa precaução a
agitação viva, contínua e impaciente da ventarola, como pessoa que sufocasse naquela
atmosfera. Chegou a tossir algumas vezes.
— E o cachorro? perguntou Dona Fernanda ao criado.
— Está preso no quarto, lá dentro.
— Vá buscá-lo.
Quincas Borba apareceu. Magro, abatido, parou à porta da sala, estranhando as
duas senhoras, mas sem latir; mal erguia os olhos apagados. Ia a dar meia volta ao corpo
na direção do interior da casa, quando Dona Fernanda fez uns estalinhos com os dedos;
ele parou, agitando a cauda.
— Como é mesmo que se chama? perguntou a Dona Fernanda.
— Quincas Borba, respondeu o criado, rindo, com a voz arrastada! Tem nome
de gente. Eh! Quincas Borba! vai lá! a senhora está chamando.
— Quincas Borba! vem cá! Quincas Borba! repetiu Dona Fernanda.
Quincas Borba acudiu ao chamado, não pulando, nem alegre. Dona Fernanda
inclinou-se, perguntou-lhe pelo amigo, se estava longe, se queria ir vê-lo. Assim mesmo
inclinada, interrogava o criado sobre o trato do cão.
— Agora come, sim, senhora; logo que meu amo foi embora, não queria comer
nem beber; — eu até pensei que estivesse danado. Come bem?
Come pouco.
Procura pelo senhor?
— Parece que procura, respondeu Raimundo tapando o riso com a mão; mas eu
tranquei ele no quarto, para não fugir. Já não chora; a princípio chorava muito, que até
me acordava... Era preciso eu bater com um cacete na porta e gritar, para ele sossegar.
Dona Fernanda coçava a cabeça do animal. Era o primeiro afago depois de
longos dias de solidão e desprezo. Quando Dona Fernanda cessou de acariciá-lo, e
levantou o corpo, ele ficou a olhar para ela, e ela para ele, tão fixos e tão profundos, que
pareciam penetrar no íntimo um do outro. A simpatia universal, que era a alma desta
senhora, esquecia toda a consideração humana diante daquela miséria obscura e
prosaica, e estendia ao animal uma parte de si mesma, que o envolvia, que o fascinava,
que o atava aos pés dela. Assim, a pena que lhe dava o delírio do senhor, dava-lhe agora
o próprio cão, como se ambos representassem a mesma espécie. E sentindo que a sua
presença levava ao animal uma sensação boa, não queria privá-lo do benefício.
— A senhora está-se enchendo de pulgas, observou Sofia.
Dona Fernanda não a ouviu. Continuou a mirar os olhos meigos e tristes do
animal, até que este deixou cair a cabeça e entrou a farejar a sala. Sentira o cheiro do
senhor. A porta da rua estava aberta; ele teria fugido por ela, se Raimundo não acudisse
a prendê-lo. Dona Fernanda deu algum dinheiro ao criado para que o fosse lavar e
conduzir à casa de saúde, recomendando-lhe o maior cuidado, que o levasse ao colo, ou
preso por um cordão. Nesta parte acudiu também Sofia, ordenando que a procurasse
antes, em casa.
CAPÍTULO CLXXXIX
SAÍRAM. Sofia, antes de pôr o pé na rua, olhou para um e outro lado, espreitando se
vinha alguém; felizmente, a rua estava deserta. Ao ver-se livre da pocilga, Sofia
readquiriu o uso das boas palavras, a arte maviosa e delicada de captar os outros, e
enfiou amorosamente o braço no de Dona Fernanda. Falou-lhe de Rubião e da grande
desgraça da loucura; assim também do palacete de Botafogo. Por que não ia com ela ver
as obras? Era só lanchar um pouco, e partiriam imediatamente.