POIS que se trata de cavalos, não fica mal dizer que a imaginação de Sofia era agoira
um corsel brioso e petulante, capaz de galgar morros e desbaratar matos. Outra seria a
comparação, se a ocasião fosse diferente; mas o corsel é que vai melhor. Traz a idéia do
ímpeto, do sangue, da disparada, ao mesmo tempo que a da serenidade com que torna ao
caminho reto, e por fim à cavalariça.
CAPÍTULO CXLI
— ESTÁ dito, vamos amanhã, repetiu Rubião, que espreitava o rosto aceso de Sofia.
Mas o corcel viera fatigado da carreira, e deixou-se estar sonolento na
cavalariça. Sofia era já outra; passara a vertigem da empresa, o ardor sonhado, o gosto
de subir com ele a estrada da Tijuca. Dizendo-lhe Rubião que pediria ao marido que a
deixasse ir ao passeio, redargüiu sem alma:
— Está tonto! Fica para o domingo que vem!
E fixou os olhos no trabalho de linha que fazia, — frioleira é o nome, —
enquanto Rubião voltava os seus para um trechozinho de jardim mofino, ao pé da saleta
de trabalho onde estavam. Sofia, sentada no ângulo da janela, ia meneando os dedos.
Rubião viu em duas rosas vulgares uma festa imperial, e esqueceu a sala, a mulher e a
si. Não se pode dizer, ao certo, que tempo estiveram assim calados, alheios e remotos
um do outro. Foi uma criada que os despertou, trazendo-lhes café. Bebido o café, Rubião concertou as barbas, tirou o relógio e despediu-se. Sofia, que espreitava a saída,
ficou satisfeita, mas encobriu o gosto com o espanto.
— Já.
— Devo estar com um sujeito antes das quatro horas, explicou Rubião. Estamos
entendidos; passeio de amanhã gorado. Vou mandar desavisar os cavalos. Mas será
certo no domingo que vem?
— Certo, certo não posso afirmar; mas resolvendo-se em tempo o Cristiano,
creio que sim. Sabe que meu marido é o homem dos impedimentos.
Sofia acompanhou-o até à porta, estendeu-lhe a mão indiferente, respondeu
sorrindo alguma coisa chocha, tornou à salinha em que estivera, — ao mesmo ângulo,
— da mesma janela. Não continuou logo o trabalho, pôs uma perna sobre outra, fazendo
descer, por hábito, a saia do vestido, e lançou uma olhada ao jardim, onde as duas rosas
tinham dado ao nosso amigo uma visão imperial. Sofia não viu mais que duas flores
mudas. Fitou-as, não obstante, algum tempo; em seguida, pegou da frioleira, trabalhou
um pouco, deteve-se outro pouco, deixando as mãos no regaço; e voltou à obra, outra
vez, para tornar a deixá-la. De repente, levantou-se e atirou as linhas e a navette à
cestinha de junco, onde guardava os seus pretechos de trabalho. A cesta era ainda uma
lembrar de Rubião!
— Que homem aborrecido!
Dali foi encostar-se à janela, que dava para o jardim mofino, onde iam
murchando as duas rosas vulgares. Rosas, quando recentes, importam-se pouco ou nada
com as cóleras dos outros; mas, se definham, tudo lhes serve para vexar a alma humana
quero crer que este costume nasce da brevidade da vida. “Para as rosas, escreveu
alguém, o jardineiro é eterno”. E que melhor maneira de ferir o eterno que mofar das
suas iras? Eu passo, tu ficas; mas eu não fiz mais que florir e aromar, servi a donas e a
donzelas, fui letra de amor, ornei a botoeira dos homens, ou expiro no próprio arbusto, e
todas as mãos, e todos os olhos me trataram e me viram com admiração e afeto. Tu não,
ó eterno; tu zangas-te, tu padeces, tu choras, tu afliges-te! a tua eternidade não vale um
só dos meus minutos.
Assim, quando Sofia chegou à janela que dava para o jardim, ambas as rosas
riram-se a pétalas despregadas. Uma delas disse que era bem feito! bem feito! bem
feito!
— Tens razão em te zangares, formosa criatura, acrescentou, mas há de ser
contigo, não com ele. Ele que vale? Um triste homem sem encantos, pode ser que bom
amigo, e talvez generoso, mas repugnante, não? E tu, requestada de outros, que demônio
te leva a dar ouvidos a esse intruso da vida? Humilha-te, ó soberba criatura, porque és tu
mesma a causa do teu mal. Tu juras esquecê-lo, e não o esqueces. E é preciso esquecêlo? Não te basta fitá-lo, escutá-lo, para desprezá-lo? Esse homem não diz coisa
nenhuma, ó singular criatura, e tu...
— Não é tanto assim, interrompeu a outra rosa, com a voz irônica e descansada;
ele diz alguma coisa, e di-la desde muito, sem desaprendê-la, nem trocá-la; é firme,
esquece a dor, crê na esperança. Toda a sua vida amorosa é como o passeio à Tijuca, de
que vocês conversavam há pouco: “Fica para o domingo que vem!” Eia, piedade ao
menos; sê piedosa, ó boníssima Sofia! Se hás de amar a alguém, fora do matrimônio,
ama-o a ele, que te ama e é discreto. Anda, arrepende-te do gesto de há pouco. Que mal
te fez ele, e que culpa lhe cabe se és bonita? E quando haja culpa, a cesta é que a não
tem, só porque ele a comprou, e menos ainda as linhas e a navette que tu mesma
mandaste comprar pela criada. Tu és má, Sofia, és injusta...
CAPÍTULO CXLII
SOFIA deixou-se estar ouvindo, ouvindo. Interrogou outras plantas, e não lhe disseram
coisa diferente. Há desses acertos maravilhosos. Quem conhece o solo e o subsolo da
vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva,
são ricos de idéias ou de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões
de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos
da terra. A expressão: “Conversar com os seus botões”, parecendo simples metáfora, é
frase de sentido real e direto. Os botões operam sincronicamente conosco; formam uma
espécie de senado, cômodo e barato, que vota sempre as nossas moções.
CAPÍTULO CXLIII
FEZ-SE o passeio à Tijuca, sem outro incidente mais que uma queda do cavalo, ao
descerem. Não foi Rubião que caiu, nem o Palha, mas a senhora deste, que vinha
pensando cm não sei quê, e chicoteou o animal com raiva; ele espantou-se e deitou-a em
terra. Sofia caiu com graça. Estava singularmente esbelta, vestida de amazona, corpinho
tentador de justeza. Otelo exclamaria, se a visse: “Oh! minha bela guerreira!” Rubião
limitara-se a isto, ao começar o passeio: “A senhora é um anjo!”
CAPÍTULO CXLIV
— FIQUEI com o joelho dolorido, disse ela entrando em casa e coxeando.
— Deixa ver,
No quarto de vestir, Sofia levantou o pé sobre um banquinho e mostrou ao
marido o joelho pisado; inchara um pouco, muito pouco, mas tocando-lhe, fazia-a
gemer. Palha, não querendo machucá-la, chegou-lhe a pontinha dos beiços apenas.
— Fiquei descomposta quando caí?
— Não. Pois com um vestido tão comprido... Mal se pode ver o bico do pé. Não
houve nada, acredita.
— Jura que não?
— Que desconfiada que você é, Sofia! Juro por tudo o que há mais sagrado, pela
luz que me alumia, por Deus Nosso Senhor. Estás satisfeita?
Sofia ia cobrindo o joelho.
— Deixa ver outra vez. Creio que não será nada maior; bota um pouco de
qualquer coisa. Manda perguntar à botica.
— Está bom, deixa-me ir despir, disse ela forcejando por descer o vestido.
Mas o Palha baixara os olhos do joelho até ao resto da perna, onde pegava com o
cano da bota. De feito, era um belo trecho da natureza. A meia de seda mostrava a
perfeição do contorno. Palha, por graça, ia perguntando à mulher se se machucara aqui,
e mais aqui, e mais aqui, indicando os lugares com a mão que ia descendo. Se
aparecesse um pedacinho desta obra-prima, o céu e as árvores ficariam assombrados,
concluiu ele enquanto a mulher descia o vestido e tirava o pé do banco.
— Pode ser, mas não havia só o céu e as árvores, disse ela; havia também os
olhos do Rubião.
— Ora, o Rubião! É verdade; ele nunca mais teve aquelas tolices de Santa
Teresa?
— Nunca; mas, enfim, não me agradaria... Jura de verdade, Cristiano?
— O que você quer é que eu vá subindo de sagrado em sagrado, até à coisa mais
sagrada. Jurei por Deus; não bastou. Juro por você; está satisfeita?
Pieguices de lascivo, Saiu finalmente do quarto da mulher e foi para o seu.
Aquele pudor medroso e incrédulo de Sofia fazia-lhe bem. Mostrava que ela era sua,
totalmente sua; mas, por isso mesmo que ele a possuía, considerava que era de grande
senhor não se afligir com a vista casual e instantânea de um pedaço oculto do seu reino.
E lastimava que o casual tivesse parado na ponta da bota. Era apenas a fronteira; as
primeiras vilas do território, antes da cidade machucada pela queda, dariam idéia de
uma civilização sublime e perfeita. E ensaboando-se, esfregando a cara, o colo e a
cabeça na vasta bacia de prata, escovando-se, enxugando-se, aromando-se, Palha
imaginava o pasmo e a inveja da única testemunha do desastre, se este fosse menos
incompleto.
CAPÍTULO CXLV
FOI por esse tempo que Rubião pôs em espanto a todos os seus amigos. Na terça-feira
seguinte ao domingo do passeio (era então Janeiro de 1870) avisou a um barbeiro e
cabeleireiro da Rua do Ouvidor que o mandasse barbear à casa, no outro dia, às nove
horas da manhã. Lá foi um oficial francês, chamado Lucien creio eu, que entrou para o
gabinete de Rubião, segundo as ordens dadas ao criado.
— Uhm! rosnou Quincas Borba, de cima dos joelhos do Rubião.
Lucien parou à porta do gabinete e cumprimentou o dono da casa; este, porém,
não viu a cortesia, como não ouvira o sinal do Quincas Borba. Estava em uma longa
cadeira de extensão, ermo do espírito, que rompera o teto e se perdera no ar. A quantas
léguas iria? Nem condor nem águia o poderia dizer. Em marcha para a lua, — não via cá
embaixo mais que as felicidades perenes, chovidas sobre ele, desde o berço, onde o
embalaram fadas, até à Praia de Botafogo, aonde elas o trouxeram, por um chão de rosas
e bogaris. Nenhum revés, nenhum malogro, nenhuma pobreza: — vida plácida, cosida
de gozo, com rendas de supérfluo. Em marcha para a lua!
O barbeiro relanceou os olhos pelo gabinete, onde fazia principal figura a
secretária, e sobre ela os dois bustos de Napoleão e Luís Napoleão. Relativamente a este
último, havia ainda, pendentes da parede, uma gravura ou litografia representando a
Batalha de Solferino, e um retrato da imperatriz Eugênia.
Rubião tinha nos pés um par de chinelas de damasco, bordadas a ouro; na
cabeça, um gorro com borla de seda preta. Na boca, um riso azul-claro.
CAPÍTULO CXLVI
SENHOR...
— Uhm! repetiu Quincas Borba, de pé nos joelhos do senhor.
Rubião voltou a si e deu com o barbeiro. Conhecia-o por tê-lo visto ultimamente
na loja; ergueu-se da cadeira, Quincas Borba latia, como a defendê-lo contra o intruso.
— Sossega! cala a boca! disse-lhe Rubião; e o cachorro foi, de orelha baixa,
meter-se por trás da cesta de papéis. Durante esse tempo, Lucien desembrulhava os seus
aparelhos.
— O senhor vai perder uma bela barba, dizia ele em francês. Conheço pessoas
que fizeram a mesma coisa, mas para servir a alguma dama. Tenho sido confidente de
homens respeitáveis...
— Justamente! interrompeu Rubião.
Não entendera nada; posto soubesse algum francês, mal o compreendia lido —
como sabemos, — e não o entendia falado. Mas, fenômeno curioso, não respondeu por impostura; ouviu as palavras, como se fossem cumprimento ou aclamação; e, ainda mais
curioso fenômeno, respondendo-lhe em português, cuidava falar francês.
— Justamente! repetiu. Quero restituir a cara ao tipo anterior; é aquele.
E, como apontasse para o busto de Napoleão III, respondeu-lhe o barbeiro pela
nossa língua:
— Ah! o imperador! Bonito busto, em verdade. Obra fina. O senhor comprou
isto aqui ou mandou vir de Paris? São magníficos. Lá está o primeiro, o grande; este era
um gênio. Se não fosse a traição, oh! os traidores, vê o senhor? os traidores são piores
que as bombas de Orsini.
— Orsini! um coitado!
— Pagou caro.
— Pagou o que devia. Mas não há bombas nem Orsini contra o destino de um
grande homem, continuou Rubião. Quando a fortuna de uma nação põe na cabeça de um
grande homem a coroa imperial, não há maldades que valham... Orsini! um bobo!
Em poucos minutos, começou o barbeiro a deitar abaixo as barbas de Rubião,
para lhe deixar somente a pêra e os bigodes de Napoleão III; encarecia-lhe o trabalho;
afirmava que era difícil compor exatamente uma coisa como a outra. E à medida que lhe
cortava as barbas, ia-as gabando. — Que lindos fios! Era um grande e honesto sacrifício
que fazia, em verdade...
— Seu barbeiro, você é pernóstico, interrompeu Rubião. Já lhe disse o que
quero; ponha-me a cara como estava. Ali tem o busto para guiá-lo.
— Sim, senhor, cumprirei as suas ordens, e verá que semelhança vai sair.
E zás, zás, deu os últimos golpes às barbas de Rubião, e começou a rapar-lhe as
faces e os queixos. Durou longo tempo a operação, o barbeiro ia tranqüilamente
rapando, comparando, dividindo os olhos entre o busto e o homem. Às vezes, para
melhor cotejá-los, recuava dois passos, olhava-os alternadamente, inclinava-se, pedia ao
homem que se virasse de um lado ou de outro, e ia ver o lado correspondente do busto.
— Vai bem? perguntava Rubião,
Lucien pedia-lhe com um gesto que se calasse, e prosseguia. Recortou a pêra,
deixou os bigodes, e escanhoou à vontade, lentamente, amigamente, aborrecidamente,
adivinhando com os dedos alguma pontinha imperceptível de cabelo no queixo ou na
face, para não o consentir, nem por suspeita. Às vezes, Rubião, cansado de estar a olhar
para o teto, enquanto o outro lhe aperfeiçoava os queixos, pedia para descansar.
Descansando, apalpava o rosto e sentia pelo tacto a mudança.
— Os bigodes é que não estão muito compridos, observava.
— Falta arranjar-lhe as guias; aqui trago os ferrinhos para encurvá-los bem sobre
o lábio, e depois faremos as guias. Ah! eu prefiro compor dez trabalhos originais a uma
só cópia.
Volveram ainda dez minutos, antes que os bigodes e a pêra fossem bem
retocados. Enfim, pronto. Rubião deu um salto, correu ao espelho, no quarto, que ficava
ao pé; era o outro, eram ambos, era ele mesmo, em suma.
— Justamente! exclamou tornando ao gabinete, onde o barbeiro, tendo
arrecadado os aparelhos, fazia festas ao Quincas Borba.
E indo à secretária, abriu uma gaveta, tirou uma nota de vinte mil-réis, e deu-lha.
— Não tenho troco, disse o outro.
— Não precisa dar troco, acudiu Rubião com um gesto soberano; tire o que
houver de pagar à casa, e o resto é seu.
CAPÍTULO CXLVII
FICANDO só, Rubião atirou-se a uma poltrona, e viu passar muitas coisas suntuosas.
Estava em Biarritz ou Compiègne, não se sabe bem; Compiègne, parece. Governou um
grande Estado, ouviu ministro e embaixadores, dançou, jantou, — e assim outras ações
narradas em correspondências de jornais, que ele lera e lhe ficaram de memória. Nem os
ganidos de Quincas Borba logravam espertá-lo. Estava longe e alto. Campiègne era no
caminho da lua. Em marcha para a lua!
CAPÍTULO CXLVIII
QUANDO desceu da lua, ouviu os ganidos do cachorro e sentiu frio nos queixos.
Correu ao espelho e verificou que a diferença entre a cara barbada e a cara lisa era
grande mas que, assim lisa, não lhe ficava mal. Os comensais chegaram à mesma
conclusão.
— Está perfeitamente bem! Há muito que devia ter feito isso. Não é que as
barbas grandes lhe tirassem a nobreza do rosto; mas, assim como está agora, tem o que
tinha, e mais um tom moderno...
— Moderno, repetiu o anfitrião.
Fora, igual espanto. Todos achavam sinceramente que este outro aspecto lhe ia
melhor que o anterior. Uma só pessoa, o Doutor Camacho, posto julgasse que os
bigodes e a pêra ficavam muito bem no amigo, ponderou que era de bom aviso não
alterar o rosto, verdadeiro espelho da alma, cuja firmeza e constância devia reproduzir.
— Não é por lhe falar de mim, concluiu; mas, nunca me há de ver a cara de
outro modo. É uma necessidade moral da minha pessoa. Minha vida, sacrificada aos
princípios, — porque eu nunca tentei conciliar princípios, mas homens, — minha vida,
digo, é uma imagem fiel da minha cara, e vice-versa.
Rubião ouvia com seriedade, e acenava de cabeça que sim, que devia ser assim
por força. Sentia-se então imperador dos franceses, incógnito, de passeio; descendo à
rua, voltou ao que era Dante, que viu tantas coisas extraordinárias, afirma ter assistido
no inferno ao castigo de um espírito florentino, que uma serpente de seis pés abraçou de
tal modo, e tão confundidos ficaram, que afinal já se não podia distinguir bem se era um
ente único, se dois. Rubião era ainda dois. Não se misturavam nele a própria pessoa com
o imperador dos franceses. Revezavam-se; chegavam a esquecer-se um do outro.
Quando era só Rubião, não passava do homem do costume. Quando subia a imperador,
era só imperador. Equilibravam-se, um sem outro, ambos integrais.
CAPÍTULO CXLIX
— QUE mudança é essa? perguntou Sofia, quando ele lhe apareceu no fim da semana.
—Vim saber do seu joelho; está bom?
— Obrigada.
Eram duas horas da tarde. Sofia acabava de vestir-se para sair, quando a criada
lhe fora dizer que estava ali Rubião, tão mudado de cara que parecia outro. Desceu a vêlo curiosa; achara-o na sala, de pé, lendo os cartões de visita.
— Mas que mudança é essa? repetiu ela.
Rubião, sem nenhum sentimento imperial, respondeu que supunha ficarem-lhe
melhor os bigodes e a pêra.
— Ou estou mais feio? concluiu.
— Está melhor, muito melhor.
E Sofia disse consigo que talvez fosse ela a causa da mudança. Sentou-se no
sofá, e começou a enfiar os dedos nas luvas.
— Vai sair?
— Vou, mas o carro ainda não veio.
Caiu-lhe uma das luvas. Rubião inclinou-se para apanhá-la, ela fez a mesma
coisa, ambos pegaram na luva, e teimando em levantá-la sucedeu que as caras
encontraram-se no ar, o nariz dela bateu no dele, e as bocas ficaram intactas para rir,
como riram.
— Machuquei-a?
— Não! eu é que lhe pergunto...
E riram outra vez. Sofia calçou a luva, Rubião fitou-lhe um pé que se mexia
disfarçadamente, até que o criado veio dizer que a carruagem chegara. Ergueram-se, e
ainda uma vez riram.
CAPÍTULO CL
TESO, descoberto, o lacaio abriu a portinhola do cupé quando Sofia assomou à porta.
Rubião ofereceu a mão para ajudá-la a entrar, ela aceitou o obséquio e entrou.
— Agora, até...
Não pôde acabar a frase; Rubião entrara após ela e sentara-se-lhe ao lado; o
lacaio fechou a portinhola, trepou à almofada, e o carro partiu.
CAPÍTULO CLI
TÃO rápido foi tudo, que Sofia perdeu a voz e o movimento; mas, ao cabo de alguns
segundos:
— Que é isto?... Senhor Rubião, mande parar o carro.
— Parar? Mas a senhora não me disse que ia sair e esperava por ele?
— Não ia sair com o senhor... Não vê que... Mande parar...
Desatinada, quis ordenar ao cocheiro que parasse; mas o receio de um possível
escândalo fê-la deter-se a meio caminho. O cupé entrara na Rua Bela da Princesa. Sofia
novamente pediu a Rubião que advertisse na inconveniência de irem assim, à vista de
Deus e de todo mundo. Rubião respeitou o escrúpulo, e propôs que descessem as
cortinas.
— Eu acho que não faz mal que nos vejam, explicou Rubião; mas, fechando as
cortinas, ninguém nos vê. Se quer?
Sem aguardar resposta, desceu as cortinas de um e outro lado, e ficaram os dois
a sós, porque, se de dentro podiam ver uma ou outra pessoa que passasse, de fora
ninguém os via. Sós, completamente sós, como naquele dia em que às mesmas duas
horas da tarde, em casa dele, Rubião lhe lançou em rosto os seus desesperos. Lá, ao
menos a moça estava livre; aqui, dentro do carro fechado, não podia calcular as
conseqüências.
Rubião, entretanto, acomodara as pernas e não dizia nada.
CAPÍTULO CLII
SOFIA encolhera-se muito ao canto. Podia ser estranheza da situação, podia ser medo;
mas era principalmente repugnância. Nunca esse homem lhe fez sentir tanta aversão,
asco, ou outra coisa menos dura, se querem, mas que se reduzia à incompatibilidade, —
como direi que não agrave os ouvidos? — à incompatibilidade da epiderme. Onde iam os sonhos de há poucos dias? Ao simples convite de um passeio, a sós, à Tijuca, subiu
com ele a montanha, a galope, desmontou, ouviu palavras de adoração, e sentiu um
beijo na nuca. Onde iam essas imaginações? Onde iam os olhos fixos e grandes, as mãos
amigas e longas, os pés inquietos, as palavras meigas e os ouvidos cheios de
misericórdia? Tudo esqueceu, tudo desapareceu, agora que ambos se achavam deveras
sós, insulados pelo carro e pelo escândalo.
E os cavalos continuavam a andar, sacudindo as patas, arrastando lentamente o
carro, pelas pedras da Rua Bela da Princesa. Que faria ela chegando ao Catete? iria à
cidade com ele? Pensou em seguir para a casa de alguma amiga; deixá-lo-ia dentro, diria
ao cocheiro que se fosse embora. Contaria tudo ao marido. No meio daquela agonia,
atravessaram-lhe o cérebro algumas memórias banais, ou estranhas à situação, como a
notícia de um roubo de jóias lida de manhã nos jornais, a ventania da véspera, um
chapéu. Afinal fixou-se em um só cuidado. Que lhe ia dizer o Rubião? Viu que ele
continuava a olhar para a frente, calado, com o castão da bengala no queixo. Não lhe
ficava mal a atitude, tranqüila, séria, quase indiferente; mas então para que se meteu no
carro? Sofia quis romper o silêncio, por duas vezes moveu nervosamente as mãos; quase
que a irritou a quietação do homem, cuja ação só podia ser explicada pela paixão antiga
e violenta. Depois, imaginou que ele próprio estaria arrependido, e disse-lho em bons
termos.
— Não vejo que me possa arrepender de coisa nenhuma, acudiu ele, voltando-se.
Quando a senhora disse que era mau irmos assim, a vista do público, abaixei as cortinas.
Não concordei, mas obedeci.
— Chegamos ao Catete, atalhou ela; quer que o leve a casa? Não podemos ir
juntos para a cidade.
— Podemos andar à toa.
— Como?
— À toa, os cavalos vão andando e nós vamos conversando, sem que nos ouçam
nem adivinhem...
— Pelo amor de Deus! não me fale assim; deixe-me, saia do carro, ou eu saio
aqui mesmo, e o senhor toma conta dele. Que é que quer dizer? Bastam poucos
minutos... Olhe, já dobramos para o lado da cidade; mande ir para Botafogo, vou deixálo à porta de casa...
— Mas eu saí há pouco de casa, vou para a cidade. Que mal há em levar-me até
lá. Se é para que não nos vejam, apeio-me em qualquer lugar, — na Praia de Santa
Luzia, por exemplo, — do lado do mar...
— O melhor é descer aqui mesmo.
— Mas por que não iremos até à cidade?
— Não, não pode ser. Peço-lhe por tudo que lhe for mais sagrado! Não faça
escândalo; vamos, diga-me o que é preciso para obter urna coisa tão simples? Quer que
me ajoelhe aqui mesmo?
Apesar da estreiteza do espaço, ia dobrando os joelhos; mas Rubião deu-se
pressa em fazê-la sentar-se outra vez.
— Não é preciso que se ajoelhe, disse com brandura.
— Obrigada: peço-lhe então por Deus, por sua mãe, que está no céu...
— Deve estar no céu, confirmou Rubião. Era uma santa senhora! As mães são
sempre boas; mas daquela, ninguém que a conheceu poderá dizer outra coisa senão que
era uma santa. E prendada, como poucas. Que dona de casa! Hóspedes, para ela, tanto
fazia cinco como cinqüenta, era a mesma coisa, cuidava de tudo a tempo e a hora, e
criou fama. Os escravos davam-lhe o nome de Sinhá Mãe, porque era, realmente, mãe
para todos. Deve estar no céu!
— Bem, bem, atalhou Sofia. Pois faça-me isto por amor de sua mãe; faz?
— Isto quê?
— Apeiar-se aqui mesmo?
— E ir a pé para a cidade? Não posso. É cisma sua; ninguém nos vê. E depois
estes seus cavalos são magníficos. Já reparou como atiram as patas, lentamente, plás...
plás... plás... plás...
Cansada de pedir, Sofia calou-se, cruzou os braços e coseu-se ainda mais, se era
possível, ao cantinho do carro.
— Agora me lembro, pensou ela; mando parar à porta do armazém do Cristiano;
digo-lhe o modo por que este homem se introduziu no cupé, os pedidos que lhe fiz e as
respostas que me deu. Antes isso que fazê-lo apear misteriosamente em qualquer rua.
Entretanto, Rubião estava quieto. De vez em quando volvia no dedo o anel de
brilhante — um solitário esplêndido. Não olhava para ela, não lhe dizia nem pedia nada.
Iam como um casal de aborrecidos. Sofia começara a não entender que razão o teria
levado a entrar no carro. Necessidade de transporte não podia ser. Vaidade, também
não; fechara as cortinas, à sua primeira queixa de publicidade. Nenhuma palavra
amorosa, uma alusão remota que fosse, a medo, cheia de veneração e súplica. Era um
inexplicável, um monstro.
CAPÍTULO CLIII
— SOFIA... disse de repente Rubião; e continuou com pausa: — Sofia, os dias passam,
mas nenhum homem esquece a mulher que verdadeiramente gostou dele ou então não
merece o nome de homem. Os nossos amores não serão esquecidos nunca, — por mim,
está claro, e estou certo que nem por ti. Tudo me deste, Sofia; a tua própria vida correu
perigo. Verdade é que eu te vingaria, minha bela. Se a vingança pode alegrar os mortos,
terias o maior prazer possível. Felizmente, o meu destino protegeu-nos, e pudemos amar
sem peias nem sangue..
A moça olhava espantada.
— Não te espantes, continuou ele; não nos vamos separar; não, não te falo de
separação. Não me digas que morrerias; sei que há de chorar muitas lágrimas. Eu não,
— que não vim ao mundo para chorar, — mas nem por isso a minha dor seria menor; ao
contrário as dores guardadas no coração doem mais que as outras. Lágrimas boas
porque a pessoa desabafa. Querida amiga, falo-te assim, porque é preciso termos
cautela; a nossa insaciável paixão pode esquecer esta necessidade. Temos facilitado
muito, Sofia; como nascemos um para o outro, parece-nos que estamos casados, e
facilitamos. Ouve, querida, ouve, alma da minha alma... A vida é bela! a vida é grande!
a vida é sublime! Contigo, porém, que nome haverá que lhe possa dar? Lembras-te da
nossa primeira entrevista?
Rubião disse esta última palavra, querendo pegar-lhe na mão. Sofia recuou a
tempo; estava desorientada, não entendia e tinha medo. A voz dele crescia, o cocheiro
podia ouvir algum coisa... E aqui uma suspeita a abalou: talvez o intento de Rubião
fosse justamente fazer-se ouvir, para obrigá-la pelo terror, — ou então para que a
abocanhassem. Teve ímpeto de atirar-se a ele, gritar que lhe acudissem, e salvar-se pelo
escândalo.
Ele, baixinho, depois de curta pausa:
— A mim lembra-me, como se fosse ontem. Tu chegaste de carro, não era este;
era um carro de praça, uma caleça. Desceste medrosa, com o véu pela cara; tremias
como varas verdes... Mas os meus braços te ampararam... O sol daquele dia devia ter
parado, como quando obedeceu a Josué... E contudo, minha flor, aquelas horas foram compridas como diabo, não sei por que; a rigor, deviam ser curtas. Era talvez porque a
nossa paixão não acabava mais, não acabou, nem há de acabar nunca... Em
compensação, não vimos mais o sol; ia caindo para o outro lado das montanhas quando
a minha Sofia, ainda medrosa, saiu para a rua, e pegou de outra caleça. Outra ou a
mesma? Creio que foi a mesma. Não imaginas como fiquei; parecia tonto, beijei tudo
em que havias tocado; cheguei a beijar a soleira da porta. Creio que já te contei isso. A
soleira da porta. E estive quase quase a ir de rastos, beijar os degraus da escada... Não o
fiz, recolhi-me, fechei-me para que se não perdesse o teu cheiro; violeta, se bem me
recordo...
Não, não era possível que o intuito de Rubião fosso fazer crer ao cocheiro uma
aventura mentirosa. A voz era tão sumida que Sofia mal podia escutá-la; mas, se lhe
custava a entender as palavras, não chegava a compreender o sentido delas. A que vinha
aquela história não sucedida? Quem quer que a ouvisse, aceitaria tudo por verdade, tal
era a nota sincera, a meiguice dos termos e a verossimilhança dos pormenores. E ele
continuou suspirando as belas reminiscências...
— Mas que caçoada é essa? atalhou finalmente Sofia.
Não lhe respondeu o nosso amigo; — tinha a imagem diante dos olhos, não
ouviu a pergunta, e foi andando. Citou-lhe um concerto de Gottschalk. O divino pianista
melodiava ao piano; eles ouviam, mas o demônio da música levou os olhos de um para
outro, e ambos esqueceram o resto. Quando a música cessou, as palmas romperam, e
eles acordaram. Aí tristes! acordaram com o olhar do Palha em cima deles, um olho de
onça brava. Nessa noite cuidou que ele a matasse.
— Senhor Rubião...
— Napoleão, não; chama-me Luís. Sou o teu Luís, não é verdade, galante
criatura? Teu, teu... Chama-me teu; o teu Luís, o teu querido Luís. Ai, se tu soubesses o
gosto que me dás quando te ouço essas duas palavras: “Meu Luís!” Tu és a minha Sofia,
— a doce, a mimosa Sofia da minha alma. Não percamos estes momentos; vamos dizer
nomes ternos; mas, baixo, baixinho, para que os malandros da almofada do carro não
escutem. Para que há de haver cocheiros neste mundo? Se o carro andasse por si, a
gente falava à vontade, e iria ao fim da terra.
Já então iam costeando o Passeio Público: Sofia não deu por isso. Olhava
fixamente para Rubião; não podia ser cálculo de perverso, nem lhe atribuía mofa...
Delírio, sim, é o que era; tinha a sinceridade da palavra, como pessoa que vê ou viu
realmente as coisas que relata.
É preciso pô-lo fora daqui, pensou a moça. E, aparelhando-se de coragem: —
Onde estaremos nós? perguntou-lhe. É ocasião de separar-nos. Veja do lado de lá: onde
estamos? Parece que é o convento; estamos no Largo da Ajuda. Diga ao cocheiro que
pare; ou, se quer, pode apear-se no Largo da Carioca. Meu marido...
— Vou nomeá-lo embaixador, disse Rubião. Ou senador, se quiser. Senador é
melhor; ficam os dois aqui. Embaixador que fosse, não consentiria que tu o
acompanhasses, e as más línguas... Tu sabes a oposição que sofro, as calúnias... Ah!
ruim gente! Convento da Ajuda, disseste? Que tens tu com ele? Queres ser freira?
— Não; digo que já passamos o Convento da Ajuda. Vou deixá-lo no Largo da
Carioca. Ou vamos até o armazém de meu marido?
Sofia tornou a apegar-se ao segundo alvitre; não se faria suspeita ao cocheiro,
provaria melhor a sua inocência ao Palha, narrando-lhe tudo, desde a entrada inesperada
no carro até o delírio. E que delírio era esse? Sofia pensou que o motivo podia ser ela
própria, e esta conjectura fê-la sorrir de piedade.
— Para quê? disse Rubião. Vou apear-me aqui mesmo, é mais seguro. Para que
há de ele desconfiar de nós e maltratar-te? Posso castigá-lo, mas sempre me ficaria o remorso do mal que ele te causaria. Não, linda flor amiga; o vento que se atrevesse a
tocar em tua pessoa, acredita que eu mandaria pôr fora do espaço, como um vento
indigno. Tu ainda não conheces bem o meu poder, Sofia: anda, confessa.
Como Sofia não confessasse nada, Rubião chamou-lhe de bonita, e ofereceu-lhe
o solitário que tinha no dedo; ela, porém, conquanto amasse as jóias e tivesse a intuição
dos solitários, recusou medrosamente a oferta.
— Compreendo o escrúpulo, disse ele; mas não perdes por isso, porque hás de
receber outra pedra ainda mais bela, e pela mão de teu marido. Far-te-ei duquesa.
Ouviste? O título é dado a ele, mas tu é que és a causa. Duque. . . Duque de quê? Vou
ver um título bonito; ou então escolhe tu mesma, porque é para ti, não é para ele, é para
ti, minha mimosa. Não é preciso escolher já, vai para casa e pensa. Não te vexes;
manda-me dizer o que achares mais bonito, e faço lavrar imediatamente o decreto.
Também podes fazer outra coisa: escolhe, e diz-me no nosso primeiro encontro, no
lugar do costume. Quero ser o primeiro que te chame duquesa. Querida duquesa... O
decreto virá depois. Duquesa de minha alma!
— Sim, sim, disse ela desvairadamente, mas avisemos o cocheiro que nos leve
até a casa de Cristiano.
— Não, apeio-me aqui... Pára! pára!
Rubião ergueu as cortinas, e o lacaio veio abrir a portinhola. Sofia, para tirar
toda a suspeita a este, pediu novamente ao Rubião que fosse com ela à casa do marido;
disse-lhe que este precisava falar-lhe, com urgência. Rubião olhou um pouco espantado
para ela, para o lacaio e para a rua; e respondeu que não, que iria depois.