SOBREVEIO um sucesso que distraiu Dona Fernanda do Rubião; foi o nascimento de
uma filha de Maria Benedita. Ela correu à Tijuca, encheu de beijos a mãe e a criança,
deu a mão a beijar a Carlos Maria.
— Sempre exuberante! exclamou o jovem pai, obedecendo.
— Sempre secarrão! retorquiu ela.
Apesar da resistência do primo, Dona Fernanda acompanhou a convalescença de
Maria Benedita, tão cordial, tão boa, tão alegre, que era um encanto conservá-la em
casa. A felicidade daqui fê-la esquecer a desgraça dacolá; mas, convalescida a recente
mãe, Dona Fernanda acudiu ao enfermo.
CAPÍTULO CXCI
“ CONTO restituí-lo à razão no fim de seis ou oito meses. Vai muito bem.”
Dona Fernanda mandou a Sofia esta resposta do diretor da casa de saúde, e
convidou-a a irem ver o enfermo, se achasse que não lhe ficava mal. Que mal pode
haver?” respondeu Sofia em um bilhete. “Mas eu é que não teria ânimo de vê-lo; foi tão nosso amigo que não sei se poderia suportar a vista e a conversação do pobre homem.
Mostrei a carta a Cristiano, que me declarou ter liquidado os bens do Senhor Rubião:
apurou três contos e duzentos”.
CAPÍTULO CXCII
SEIS meses, oito meses passam depressa, reflexionou Dona Fernanda.
E eles vieram vindo, com os sucessos às costas, — a queda do ministério, a
subida de outro em março, a volta do marido, a discussão da lei dos ingênuos, a morte
do noivo de Dona Tonica, três dias antes de casar. Dona Tonica espremeu as últimas
lágrimas, umas de amizade, outras de desesperança, e ficou com os olhos tão vermelhos,
que pareciam doentes...
Teófilo, que merecera do novo gabinete a mesma confiança do antigo, teve parte
copiosa nos debates da sessão parlamentar. Camacho declarou pela sua folha que a lei
dos ingênuos absolvia a esterilidade e os crimes da situação. Em outubro, Sofia
inaugurou os seus salões de Botafogo, com um baile, que foi o mais célebre do tempo.
Estava deslumbrante. Ostentava, sem orgulho, todos os seus braços e espáduas, ricas
jóias; o colar era ainda um dos primeiros presentes do Rubião, tão certo é que, neste
gênero de atavios, as modas conservam-se mais. Toda a gente admirava a gentileza
daquela trintona fresca e robusta; alguns homens falavam (com pena) das suas virtudes
conjugais, da profunda adoração que ela tinha ao marido.
CAPÍTULO CXCIII
NO dia seguinte ao baile, Dona Fernanda acordou tarde. Foi ao gabinete do marido, que
já devorara cinco ou seis jornais, escrevera dez cartas e retificava a posição de alguns
livros nas estantes.
— Recebi esta carta, há pouco, disse ele.
Dona Fernanda leu-a; era do diretor da casa de saúde; notificava que Rubião,
desde três dias, desaparecera, não tendo podido ser encontrado por mais esforços que
houvessem empregado a polícia e ele. “Tanto mais me espanta esta fuga”, concluía a
carta, “quanto que as melhoras eram grandes, e podia contar que, em dois meses, o poria
inteiramente bom.”
Dona Fernanda ficou consternada; alcançou do marido que escrevesse ao chefe
de polícia e ao ministro da justiça, pedindo-lhes que ordenassem as mais severas
pesquisas. Teófilo não tinha o menor interesse no achado nem na cura de Rubião; mas
quis servir à mulher, cuja bondade conhecia, e, porventura, gostava de cartear-se com os
homens da alta administração.
CAPÍTULO CXCIV
COMO achar, porém, o nosso Rubião nem o cachorro, se ambos haviam partido para
Barbacena? Oito dias antes, Rubião escrevera ao Palha que o procurasse; este acudiu à
casa de saúde, viu que ele raciocinava claramente, sem a menor sombra de delírio.
— Tive uma crise mental, disse-lhe Rubião; agora estou bom, perfeitamente
bom. Peço-lhe que me ponha fora daqui. Creio que o diretor não se oporá. Entretanto,
como quero deixar algumas lembranças à gente que me tem servido, e servido também
ao Quincas Borba, veja se me pode adiantar cem mil-réis.
Palha abriu a carteira sem hesitação, e deu-lhe o dinheiro.
— Vou tratar de o fazer sair, disse ele; mas, provavelmente são precisos alguns
dias (estava em vésperas do baile); não se aflija por isso; daqui a uma semana está na
rua.
Antes de sair, consultou o diretor, que lhe deu boas notícias do enfermo. Uma
semana é pouco, disse ele; para pô-lo bom, bom, preciso ainda uns dois meses. Palha
confessou que o achara são; em todo caso, mandava quem sabia, e se fossem
necessários seis ou sete meses mais, não precipitasse a alta.
CAPÍTULO CXCV
RUBIÃO, logo que chegou a Barbacena e começou a subir a rua que ora se chama de
Tiradentes, exclamou parando:
— Ao vencedor, as batatas!
Tinha-as esquecido de todo, a fórmula e a alegoria. De repente, como se as
sílabas houvessem ficado no ar, intactas, aguardando alguém que as pudesse entender,
uniu-as, recompôs a fórmula, e proferiu-a com a mesma ênfase daquele dia em que a
tomou por lei da vida e da verdade. Não se lembrava inteiramente da alegoria; mas, a
palavra deu-lhe o sentido vago da luta e da vitória.
Subiu, acompanhado do cão, e foi parar defronte da igreja. Ninguém lhe abriu a
porta; não viu sombra de sacristão. Quincas Borba, que não comia desde muitas horas,
colava-se-lhe às pernas, cabisbaixo, esperando. Rubião voltou-se, e do alto da rua
estendeu os olhos abaixo e ao longe. Era ela, era Barbacena; a velha cidade natal ia-selhe desentranhando das profundas camadas da memória. Era ela; aqui estava a igreja, ali
a cadeia, acolá a farmácia, donde vinham os medicamentos para o outro Quincas Borba.
Sabia que era ela, quando chegou; mas, à medida que os olhos se derramavam, as
reminiscências vinham vindo, mais numerosas, em bando. Não via ninguém; uma
janela, à esquerda, parecia ter alguém que espiava. Tudo o mais deserto.
— Talvez não saibam que cheguei, pensou Rubião.
CAPÍTULO CXCVI
SÚBITO, relampejou; as nuvens amontoavam-se às pressas. Relampejou mais forte, e
estalou um trovão. Começou a chuviscar grosso, mais grosso, até que desabou a
tempestade. Rubião, que aos primeiros pingos, deixara a igreja, foi andando rua abaixo,
seguido sempre do cão, faminto e fiel, ambos tontos, debaixo do aguaceiro, sem destino,
sem esperança de pouso ou de comida... A chuva batia-lhes sem misericórdia. Não
podiam correr, porque Rubião temia escorregar e cair, e o cão não queria perdê-lo. A
meia rua, acudiu à memória do Rubião a farmácia, voltou para trás, subindo contra o
vento, que lhe dava de cara; mas ao fim de vinte passos, varreu-se-lhe a idéia da cabeça;
adeus, farmácia! adeus, pouso! Já se não lembrava do motivo que o fizera mudar de
rumo, e desceu outra vez, e o cão atrás, sem entender nem fugir, um e outro alagados,
confusos, ao som da trovoada rija e contínua.
CAPÍTULO CXCVII
VAGARAM sem destino. O estômago de Rubião interrogava, exclamava, intimava; por
fortuna, o delírio vinha enganar a necessidade com os seus banquetes das Tulherias.
Quincas Borba é que não tinha igual recurso. E toca a andar acima e abaixo. Rubião, de
quando em quando, sentava-se no lajedo, e o cão trepava-lhe às pernas, para dormir a
fome; achava as calças molhadas, e descia; mas tornava logo a subir, tão frio era o ar da noite, já noite alta, já noite morta. Rubião passava-lhe as mãos por cima, resmungando
algumas palavras magras.
Se, apesar de tudo, Quincas Borba conseguia adormecer, acordava logo, porque
Rubião levantava-se e punha-se outra vez a descer e subir ladeiras. Soprava um triste
vento, que parecia faca, e dava arrepios aos dois vagabundos. Rubião andava devagar; o
próprio cansaço não lhe permitia as grandes pernadas do princípio, quando a chuva caía
em bátegas. As paradas eram agora mais freqüentes. O cão, morto de fome e de fadiga,
não entendia aquela odisséia, ignorava o motivo, esquecera o lugar, não ouvia nada,
senão as vozes surdas do senhor. Não podia ver as estrelas, que já então rutilavam,
livres de nuvens. Rubião descobriu-as; chegara à porta da igreja, como quando entrou na
cidade; acabava de sentar-se e deu com elas. Estavam tão bonitas, reconheceu que eram
os lustres do grande salão e ordenou que os apagassem. Não pôde ver a execução da
ordem; adormeceu ali mesmo, com o cão ao pé de si. Quando acordaram de manhã,
estavam tão juntinhos que pareciam pegados.
CAPÍTULO CXCVIII
— AO vencedor, as batatas! exclamou Rubião quando deu com os olhos na rua, sem
noite, sem água, beijada do sol.
CAPÍTULO CXCIX
FOI a comadre de Rubião que o agasalhou e mais ao cachorro, vendo-os passar defronte
da porta. Rubião conheceu-a, aceitou o abrigo e o almoço.
— Mas que é isso, seu compadre? Como foi que chegou assim? Sua roupa está
toda molhada. Vou dar-lhe umas calças de meu sobrinho.
Rubião tinha febre. Comeu pouco e sem vontade. A comadre pediu-lhe contas da
vida que passara na Corte, ao que ele respondeu que levaria muito tempo, e só a
posteridade a acabaria. Os sobrinhos de seu sobrinho, concluiu ele magnificamente, é
que hão de ver-me em toda a minha glória. Começou, porém, um resumo. No fim de dez
minutos, a comadre não entendia nada, tão desconcertados eram os fatos e os conceitos;
mais cinco minutos, entrou a sentir medo. Quando os minutos chegaram a vinte, pediu
licença e foi a uma vizinha dizer que Rubião parecia ter virado o juízo. Voltou com ela e
um irmão, que se demorou pouco tempo e saiu a espalhar a nova. Vieram vindo outras
pessoas, às duas e às quatro, e, antes de uma hora, muita gente espiava da rua.
— Ao vencedor, as batatas! bradava Rubião aos curiosos. Aqui estou imperador!
Ao vencedor, as batatas!
Esta palavra obscura e incompleta era repetida na rua, examinada, sem que lhe
dessem com o sentido. Alguns antigos desafetos do Rubião iam entrando, sem
cerimônia, para gozá-lo melhor; e diziam à comadre que não lhe convinha ficar com um
doido em casa, era perigoso; devia mandá-lo para a cadeia, até que a autoridade o
remetesse para outra parte. Pessoa mais compassiva lembrou a conveniência de chamar
o doutor.
— Doutor para quê? acudiu um dos primeiros. Este homem está maluco.
— Talvez seja delírio de febre; já viu como está quente?
Angélica, animada por tantas pessoas, tomou-lhe o pulso, e achou-o febril.
Mandou vir o médico, — o mesmo que tratara o finado Quincas Borba. Rubião
conheceu-o também, e respondeu-lhe que não era nada. Capturara o rei da Prússia, não
sabendo ainda se o mandaria fuzilar ou não; era certo, porém, que exigiria uma
indenização pecuniária enorme, — cinco bilhões de francos.
— Ao vencedor, as batatas! concluiu rindo.
CAPÍTULO CC
POUCOS dias depois morreu... Não morreu súdito nem vencido. Antes de principiar a
agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, a coroa que não era, ao menos, um chapéu
velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou
em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro,
rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço que fizera para erguer meio
corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto conservou porventura uma
expressão gloriosa.
— Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...
A cara ficou séria, porque a morte é séria; dois minutos de agonia, um trejeito
horrível, e estava assinada a abdicação.
CAPÍTULO CCI
QUERIA dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente,
fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas,
vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele,
se o seu defunto homônimo é que dá o titulo ao livro, e por que antes um que outro, —
questão prenhe de questões, que nos levariam longe. Eia! chora os dois recentes mortos,
se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia
não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as
lágrimas dos homens.