CAPÍTULO LXX
CAPÍTULO LXXI
EM casa, ao despentear-se, Sofia falou daquele sarau como de uma coisa enfadonha.
Bocejava, doíam-lhe as pernas. Palha discordava; era má disposição dela. Se lhe doíam
as pernas é porque dançara muito. Ao que retorquiu a mulher que, se não dançasse, teria
morrido de tédio. E ia tirando os grampos, deitando-os num vaso de cristal; os cabelos
caíam-lhe aos poucos sobre os ombros, mal cobertos pela camisola de cambraia. Palha,
por trás dela, disse-lhe que o Carlos Maria valsava muito bem. Sofia estremeceu; fitou-o
no espelho, o rosto era plácido. Concordou que não valsava mal.
— Não, senhora, valsa muito bem.
— Você louva os outros porque sabe que ninguém é capaz de o desbancar.
Anda, meu vaidoso, já te conheço.
Palha, estendendo a mão e pegando-lhe no queixo, obrigou-a a olhar para ele.
Vaidoso por quê? por que é que ele era vaidoso?
— Ai, gemeu Sofia; não me machuques.
Palha beijou-lhe a espádua; ela sorriu, sem tédio, sem dor de cabeça, ao
contrário daquela noite de Santa Teresa, em que relatou ao marido os atrevimentos do
Rubião. É que os morros serão doentios, e as praias saudáveis.
No dia seguinte, Sofia acordou cedo, ao som dos trilos da passarada de casa, que
parecia dar-lhe um recado de alguém. Deixou-se estar na cama, e fechou os olhos para
ver melhor.
Ver melhor o quê? Não, seguramente, os morros doentios. A praia era outra
coisa. Posta à janela, dali a meia hora, Sofia contemplava as ondas que vinham morrer
defronte, e, ao longe, as que se levantavam e desfaziam à entrada da barra. A imaginosa
dama perguntava a si mesma se aquilo era a valsa das águas, e deixava-se ir por essa
torrente de idéias abaixo, sem velas nem remos. Deu consigo olhando para a rua, ao pé
do mar, como procurando os sinais do homem que ali estivera, na antevéspera, alta
noite... Não juro, mas cuido que achou os sinais. Ao menos, é certo que cotejou o
achado com o texto da conversação:
“A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora
aposto que nem sonhava comigo? Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração. O
mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; com esta
diferença que o mar é estúpido, bate sem saber por quê, e o meu coração sabe que batia
pela senhora.”
Sofia teve um calafrio, procurou esquecer o texto, mas o texto ia-se repetindo:
“A noite era clara...”
CAPÍTULO LXXII
ENTRE duas frases, sentiu que alguém lhe punha a mão no ombro; era o marido, que
acabava de tomar café e ia para a cidade. Despediram-se afetuosamente; Cristiano
recomendou-lhe Maria Benedita, que acordara muito aborrecida.
— Já de pé! exclamou Sofia.
— Quando eu desci, já a achei na sala de jantar. Acordou com a mania de ir para
a roça; teve um sonho... não sei quê...
— Calundus! concluiu Sofia
E com os dedos hábeis e leves concertou a gravata ao marido, puxou-lhe a gola
do fraque para diante, e despediram-se outra vez. Palha desceu e saiu; Sofia deixou-se
estar à janela. Antes de dobrar a esquina, ele voltou a cabeça, e, na forma do costume,
disseram adeus com a mão.
CAPÍTULO LXXIII
‘‘A NOITE era clara; fiquei cerca de uma hora entre o mar e a sua casa. A senhora
aposto que...”
Quando Sofia pôde arrancar-se de todo à janela, o relógio de baixo batia nove
horas. Zangada, arrependida, jurou a si mesma, pela alma da mãe, não pensar mais em
semelhante episódio. Considerou que não valia nada; o erro foi deixar que o rapaz
chegasse ao fim dos seus atrevimentos. Verdade é que, procedendo assim, evitou algum
grande escândalo, porque ele era capaz de a acompanhar até a cadeira e dizer-lhe o resto
ao pé de outras pessoas. E o resto repetia-se ainda uma vez na memória dela, como um
trecho musical teimoso, as mesmas palavras, e a mesma voz: “A noite era clara; fiquei
cerca de uma hora...”
CAPÍTULO LXXIV
ENQUANTO ela repetia a declaração da véspera, Carlos Maria abria os olhos, estirava
os membros, e, antes de ir para o banho, vestir-se e dar um passeio a cavalo, reconstruiu
a véspera. Tinha esse costume; achava sempre nos sucessos do dia anterior algum fato,
algum dito, alguma coisa que lhe fazia bem. Aí é que o espírito se demorava; aí eram as
estalagens do caminho, onde ele descavalgava o corpo, para beber vagarosamente um
gole d’água fresca. Se não havia sucesso nenhum desses, — ou se os havia só
contrários, nem por isso as sensações eram desconfortativas; bastava-lhe o sabor de
alguma palavra que ele mesmo houvesse dito, de algum gesto que fizesse, a
contemplação subjetiva, o gosto de ter sentido viver, — para que a véspera não fosse um
dia perdido.
Na véspera figurava Sofia. Parece até que foi o principal da reconstrução, a
fachada do edifício, larga e magnífica. Carlos Maria saboreou de memória toda a
conversação da noite, mas, quando se lembrou da confissão de amor, sentiu-se bem e
mal. Era um compromisso, um estorvo, uma obrigação; e, posto que o benefício
corrigisse o tédio, o rapaz ficou entre uma e outra sensação, sem plano. Ao recordar-se
da notícia que lhe deu de haver ido à Praia do Flamengo, na outra noite, não pôde suster
o riso, porque não era verdade. Nascera-lhe a idéia da própria conversação; mas nem lá
foi nem pensara nisso. Afinal susteve o riso, e até arrependeu-se dele; o fato de haver
mentido trouxe-lhe uma sensação de inferioridade, que o abateu. Chegou a pensar em
retificar o que dissera, logo que estivesse com Sofia, mas reconheceu que a emenda era
pior que o soneto, e que há bonitos sonetos mentirosos.
Depressa ergueu a alma. Viu de memória a sala, os homens, as mulheres, os
leques impacientes, os bigodes despeitados, e estirou-se todo num banho de inveja e
admiração. De inveja alheia, note-se bem; ele carecia desse sentimento ruim. A inveja e
a admiração dos outros é que lhe davam ainda agora uma delícia íntima. A princesa de
baile entregava-se-lhe. Definia assim a superioridade de Sofia, posto lhe conhecesse um
defeito capital, — a educação. Achava que as maneiras polidas da moça vinham da imitação adulta, após o casamento, ou pouco antes, que ainda assim não subiam muito
do meio em que vivia.