CURTA foi a visita de Rubião. Às nove horas levantou-se ele discretamente, esperando
qualquer palavra de Sofia, um pedido para que ficasse ainda algum tempo, que
esperasse o marido que já vinha, um espanto que fosse: Já! mas nem isso. Sofia
estendeu-lhe a mão, em que ele mal pôde tocar. Contudo, a moça, durante a visita,
mostrou-se tão natural, tão sem azedume... Não teve seguramente os olhos longos e
loquazes, como dantes; parecia até que não houvera nada, nem bem nem mal, nem
morangos, nem lua. Rubião tremia, não achava palavras; ela achava todas as que queria,
e, se era preciso olhar para ele, fazia-o diretamente, tranqüilamente.
— Lembranças ao nosso Palha, murmurou ele de chapéu e bengala na mão.
— Obrigada! Foi fazer uma visita; parece que ouço passos; há de ser ele.
Não era ele; era Carlos Maria. Rubião ficou espantado de o ver ali, mas achou
logo que a presença da fazendeira e da filha explicaria tudo; podia ser até que fossem
aparentados.
— Ia saindo, quando o senhor entrou, disse-lhe Rubião depois de o ver sentado
ao pé de Dona Maria Augusta.
— Ah! respondeu o outro, olhando para o retrato de Sofia.
Sofia foi até à porta despedir-se do Rubião; disse-lhe que o marido ficaria com
pena de não estar em casa; mas que a visita era imperiosa. Negócios... Iria pedir-lhe
desculpa.
— Que desculpa? acudiu Rubião.
Parece que quis dizer ainda alguma coisa; mas o aperto de mão de Sofia e a
reverência que esta lhe fez, deram-lhe o sinal de despedida. Rubião inclinou-se,
atravessou o jardim, ouvindo a voz de Carlos Maria, na sala:
— Vou denunciar seu marido, minha senhora; é homem de muito mau gosto.
Rubião parou.
— Por quê? disse Sofia.
— Tem este seu retrato na sala, continuou Carlos Maria: a senhora é muito mais
bela, infinitamente mais bela que a pintura... Comparem, minhas senhoras.
CAPÍTULO LXVI
— COMO ele diz aquelas coisas tão naturalmente! pensou Rubião, em casa,
relembrando as palavras de Carlos Maria. Desfazer no retrato só para elogiar a pessoa!
Note-se que o retrato é muito parecido.
CAPÍTULO LXVII
— DE manhã, na cama, teve um sobressalto. O primeiro jornal que abriu foi a Atalaia.
Leu o artigo editorial, uma correspondência, e algumas notícias. De repente, deu com o
seu nome.
— Que é isto?
Era o seu próprio nome impresso, rutilante, multiplicado, nada menos que uma
notícia do caso da Rua da Ajuda. Depois do sobressalto, aborrecimento. Que diacho de
idéia aquela de imprimir um fato particular, contado em confiança? Não quis ler nada;
desde que percebeu o que era, deitou a folha ao chão, e pegou em outra. Infelizmente,
perdera a serenidade, lia por alto, pulava algumas linhas, não entendia outras, ou dava
por si no fim de vinte linhas sem saber como viera escorregando até ali.
Ao levantar-se, sentou-se na poltrona, ao pé da cama, e pegou da Atalaia.
Lançou os olhos pela notícia: era mais de uma coluna. Coluna e tanto para coisa tão
diminuta! pensou consigo. E a fim de ver como é que Camacho enchera o papel, leu
tudo, um pouco às pressas, vexado dos adjetivos e da descrição dramática do caso.
— Foi bem feito! disse em voz alta. Quem me mandou ser linguarudo?
Passou ao banho, vestiu-se, penteou-se, sem esquecer a bisbilhotice da folha,
acanhado com a publicação de um negócio, que ele reputava mínimo, e ainda mais pelo
encarecimento que lhe dera o escritor, como se tratasse de dizer bem ou mal em política.
Ao café, pegou novamente na folha, para ler outras coisas, nomeações do governo, um
assassinato em Garanhuns, meteorologia, até que a vista desastrada foi cair na notícia, e
leu-a então com pausa. Aqui confessou Rubião que bem podia crer na sinceridade do
escritor. O entusiasmo da linguagem explicava-se pela impressão que lhe ficou do fato;
tal foi ela que lhe não permitiu ser mais sóbrio. Naturalmente é o que foi. Rubião
recordou a sua entrada no escritório do Camacho, o modo por que falou; e daí tornou
atrás, ao próprio ato. Estirado no gabinete, evocou a cena: o menino, o carro, os cavalos,
o grito, o salto que deu, levado de um ímpeto, irresistível: — Agora mesmo não podia
explicar o negócio; foi como se lhe tivesse passado uma coisa pelos olhos... Atirou-se à
criança, e aos cavalos, cego e surdo, sem atender ao próprio risco... E podia ficar ali,
embaixo dos animais, esmagado pelas rodas, morto ou ferido; ferido que fosse... Podia
ou não podia? Era impossível negar que a situação foi grave... A prova é que os pais e a
vizinhança...
Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda a notícia. Que era bem escrita,
era. Trechos havia que releu com muita satisfação. O diabo do homem parecia ter
assistido à cena. Que narração! que viveza de estilo! Alguns pontos estavam
acrescentados, — confusão de memória, — mas o acréscimo não ficava mal. E certo
orgulho que lhe notou ao repetir-lhe o nome? “O nosso amigo, o nosso distintíssimo
amigo, o nosso valente amigo...”
Ao almoço, riu-se de si mesmo; achou-se mortificado em demasia. Afinal, que
tinha que o outro desse aos seus leitores uma notícia que era verdadeira, que era
interessante, dramática, — e seguramente, — não vulgar? Saindo, recebeu alguns
cumprimentos; Freitas chamou-lhe S. Vicente de Paula. E o nosso amigo sorria,
agradecia, diminuía-se, não era nada...
— Nada? replicou alguém. Dê-me muitos desses nadas. Salvar uma criança com
risco da própria vida.
Rubião ia concordando, ouvindo, sorrindo; contava a cena a alguns curiosos, que
a queriam da própria boca do autor. Certos ouvintes respondiam com proezas suas —
um que salvara uma vez um homem, outro uma menina, prestes a afogar-se no
boqueirão do Passeio, estando a tomar banho. Vinham também suicídios malogrados,
por intervenção do ouvinte, que tomou a pistola ao infeliz, e fê-lo jurar...Cada
gloriazinha oculta picava o ovo, e punha a cabeça de fora, olho aberto, sem penas, em
volta da glória máxima do Rubião. Também teve invejosos, alguns que nem o
conheciam, só por ouvi-lo louvar em voz alta. Rubião foi agradecer a notícia ao
Camacho, não sem alguma censura pelo abuso de confiança, mas uma censura mole, ao
canto da boca... Dali foi comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de
Barbacena. Nenhuma outra transcreveu a notícia; ele, a conselho do Freitas, fê-la
reimprimir nos a pedidos do Jornal do Commercio, interlinhada.
CAPÍTULO LXVIII
MARIA BENEDITA consentiu finalmente em aprender francês e piano. Durante quatro
dias a prima teimou com ela, a todas as horas, de tal arte e maneira, que a mãe da moça resolveu apressar a volta à fazenda, para evitar que ela acabasse aceitando. A filha
resistiu muito; respondia que eram coisas supérfluas, que moça de roça não precisa de
prendas da cidade. Uma noite, porém, estando ali Carlos Maria, pediu-lhe este que
tocasse alguma coisa; Maria Benedita fez-se vermelha. Sofia acudiu com uma mentira:
— Não lhe peça isso; ainda não tocou depois que veio. Diz que agora só toca
para os roceiros.
— Pois faça de conta que somos roceiros, insistiu o moço.
Felizmente, falou logo de outra coisa, do baile da baronesa do Piauí
(casualmente:a mesma que o nosso amigo Rubião encontrou no escritório de Camacho),
um baile esplêndido, oh! esplêndido! A baronesa prezava-o muito. No dia seguinte,
Maria Benedita declarou à prima que estava pronta a aprender piano e francês, rabeca e
até russo, se quisesse. A dificuldade era vencer a mãe. Esta, quando soube da resolução
da filha, pôs as mãos na cabeça. Que francês? que piano? Bradou que não, ou então que
deixasse de ser sua filha; podia ficar, tocar, cantar, falar cabinda ou a língua de diabo
que os levasse a todos. Palha é que a persuadiu finalmente; disse-lhe que, por mais
supérfluas que lhe parecessem aquelas prendas, eram o mínimo dos adornos de uma
educação de sala.
— Mas eu criei minha filha na roça e para a roça, interrompeu a tia.
— Para a roça? Quem sabe lá para que cria os filhos? Meu pai destinava-me a
padre; é por isso que arranho algum latim. A senhora não há de viver sempre; os seus
negócios andam atrapalhados. Pode acontecer, que Maria Benedita fique ao
desamparo... Ao desamparo, não digo; enquanto vivermos somos todos uma só pessoa.
Mas não é melhor prevenir? Podia ser até que, se faltássemos todos, ela vivesse à larga,
só com ensinar francês e piano. Basta que os saiba para estar em condições melhores. É
bonita, como a senhora foi no seu tempo; e possui raras qualidades morais. Pode achar
marido rico. Sabe a senhora se já tenho alguém em vista, pessoa séria?
— Sim? Então ela vai aprender francês, piano e namoro?
— Que namoro? Falo-lhe de pensamentos íntimos, de um plano que me parece
adequado à felicidade dela e de sua mãe... Pois eu havia... Ora, tia Augusta!
Palha mostrou-se tão mortificado, que a tia deixou o tom áspero pelo tom seco.
Resistiu ainda; mas a noite deu-lhe bons conselhos. O estado dos seus negócios, e a
possibilidade de um genro abastado fizeram mais que outras razões. Os melhores genros
da roça aliavam-se a outras fazendas, a famílias de representação e riqueza segura. Dois
dias depois acharam um modus vivendi. Maria Benedita ficaria com a prima; iriam de
quando em quando à roça, e a tia também iria à capital, para vê-los. Palha chegou a
dizer que logo que o estado da praça o permitisse, arranjaria meio de liquidar-lhe os
negócios e transportá-la para aqui. Mas a isto a boa senhora abanou a cabeça.
Não se pense que tudo isso foi tão fácil como aí fica escrito. Na prática, vieram
os óbices, amofinações, saudades, rebeliões de Maria Benedita. Dezoito dias depois da
volta da mãe à fazenda, quis ir visitá-la, e a prima acompanhou-a; estiveram lá uma
semana. A mãe, dois meses depois, veio passar uns dias aqui. Sofia acostumava
habilmente a prima às distrações da cidade; teatros, visitas, passeios, reuniões em casa,
vestidos novos, chapéus lindos, jóias. Maria Benedita era mulher, posto que mulher
esquisita; gostou de tais coisas, mas tinha para si que, logo que quisesse, podia
arrebentar todos esses liames, e andar para a roça. A roça vinha ter com ela, às vezes,
em sonho ou simples devaneio. Depois dos primeiros saraus, quando voltava para casa,
não eram as sensações da noite que lhe enchiam a alma, eram saudades de Iguaçu.
Cresciam-lhe mais a certas horas do dia, quando a quietação da casa e da rua era
completa. Então batia as asas para a varanda da velha casa, onde bebia café, ao pé da
mãe; pensava na escravaria, nos móveis antigos, nas bonitas chinelas que lhe mandara o padrinho, um fazendeiro rico de São João d´El-Rei, — e que lá ficaram em casa. Sofia
não consentiu que ela as trouxesse.
Os mestres de francês e piano eram homens sabedores do oficio. Sofia teve
medo de dizer-lhes em particular que a prima vexava-se de aprender tão tarde, e pediulhes que não falassem nunca de tal discípula. Prometeram que sim; o de piano apenas
referiu o pedido a alguns colegas d’arte, que lhe acharam graça, e contaram outras
anedotas da clientela. O certo é que Maria Benedita aprendia com singular facilidade,
estudava com afinco, quase todas as horas, a tal ponto que a mesma prima julgava
acertado interrompê-la.
— Descansa, filha de Deus!
— Deixa recobrar o tempo perdido, respondia ela rindo.
Então Sofia inventava passeios, à toa, para fazê-la descansar. Ora um bairro, ora
outro. Em certas ruas, Maria Benedita não perdia tempo; lia as tabuletas francesas, e
perguntava pelos substantivos novos, que a prima, algumas vezes, não sabia dizer o que
eram, tão estritamente adequado era o seu vocabulário às coisas do vestido, da sala e do
galanteio.
Mas não era só nessas disciplinas que Maria Benedita fazia progressos rápidos.
A pessoa ajustara-se ao meio, mais depressa do que fariam crer o gosto natural e a vida
da roça. Já competia com a outra, embora houvesse nesta um desgarre, e não sei que
expressão particular que, para assim dizer, dava cor a todas as linhas e gestos da figura.
Não obstante essa diferença, é certo que a outra era vista e notada ao pé dela, de tal jeito
que Sofia, que começara por louvá-la em toda a parte, não a deslouvava agora, mas
ouvia calada as admirações. Falava bem; mas, quando calava, era por muito tempo;
dizia que eram os seus “calundus”. Contradançava sem vida, que é a perfeição desse
gênero de recreio; gostava muito de ver polcar e valsar Sofia, _ imaginando que era por
medo que a prima não valsava nem polcava, quis dar-lhe algumas lições em casa,
sozinhas, com o marido ao piano; mas a prima recusava sempre.
— Isso é ainda um bocadinho de casca da roça, disse-lhe uma vez Sofia.
Maria Benedita sorriu de um modo tão particular, que a outra não insistiu. Não
foi riso de vexame, nem de despeito, nem de desdém. Desdém, por quê? Contudo, é
certo que o riso parecia vir de cima. Não menos o é que Sofia polcava e valsava com
ardor, e ninguém se pendurava melhor do ombro do parceiro; Carlos Maria, que era raro
dançar, só valsava com Sofia, dois ou três giros, dizia ele; — Maria Benedita contou
uma noite quinze minutos.
CAPÍTULO LXIX
OS quinze minutos foram contados no relógio do Rubião, que estava ao pé da Maria
Benedita, e a quem ela perguntou duas vezes que horas eram, no princípio e no fim da
valsa. A própria moça inclinou-se para ver bem o ponteiro dos minutos.
— Está com sono? perguntou Rubião.
Maria Benedita olhou para ele de soslaio. Viu-lhe o rosto plácido, sem intenção
nem riso.
— Não, respondeu; digo-lhe até que estou com medo que prima Sofia se lembre
de ir cedo para casa.
— Não vai cedo. Já acabou a desculpa de Santa Teresa, por causa da subida. A
casa fica perto daqui.
De fato, as duas moravam agora na Praia do Flamengo, e o baile era na Rua dos
Arcos.
É de saber que tinham decorrido oito meses desde o princípio do capítulo anterior, e muita coisa estava mudada. Rubião é sócio do marido de Sofia, em uma casa
de importação, à Rua da Alfândega, sob a firma Palha e Companhia. Era o negócio que
este ia propor-lhe, naquela noite, em que achou o Doutor Camacho na casa de Botafogo.
Apesar de fácil, Rubião recuou algum tempo. Pediam-lhe uns bons pares de contos de
réis, não entendia de comércio, não lhe tinha inclinação. Demais, os gastos particulares
eram já grandes; o capital precisava do regímen do bom juro e alguma poupança, a ver
se recobrava as cores e as carnes primitivas. O regímen que lhe indicavam não era claro;
Rubião não podia compreender os algarismos do Palha, cálculos de lucros, tabelas de
preço, direitos da alfândega, nada; mas, a linguagem falada supria a escrita. Palha dizia
coisas extraordinárias, aconselhava ao amigo que aproveitasse a ocasião para pôr o
dinheiro a caminho, multiplicá-lo. Se tinha medo, era outra coisa; ele, Palha, faria o
negócio com John Roberts, sócio que foi da casa Wilkinson, fundada em 1844, cujo
chefe voltou para a Inglaterra, e era agora membro do parlamento.
Rubião não cedeu logo, pediu prazo, cinco dias. Consigo era mais livre; mas
desta vez a liberdade só servia para atordoá-lo. Computou os dinheiros despendidos,
avaliou os rombos feitos no cabedal, que lhe deixara o filósofo. Quincas Borba, que
estava com ele no gabinete, deitado, levantou casualmente a cabeça e fitou-o. Rubião
estremeceu; a suposição de que naquele Quincas Borba podia estar a alma do outro
nunca se lhe varreu inteiramente do cérebro. Desta vez chegou a ver-lhe um tom de
censura nos olhos; riu-se, era tolice; cachorro não podia ser homem. Insensivelmente,
porém, abaixou a mão e coçou as orelhas ao animal, para captá-lo.
Atrás dos motivos de recusa, vieram outros contrários. E se o negócio rendesse?
Se realmente lhe multiplicasse o que tinha? Acrescia que a posição era respeitável, e
podia trazer-lhe vantagens na eleição, quando houvesse de propor-se ao parlamento,
como o velho chefe da casa Wilkinson. Outra razão mais forte ainda era o receio de
magoar o Palha, de parecer que lhe não confiava dinheiros, quando era certo que, dias
antes, recebera parte da divida antiga, e a outra parte restante devia ser-lhe restituída
dentro de dois meses.
Nenhum desses motivos era pretexto de outro; vinham de si mesmos. Sofia só
apareceu no fim, sem deixar de estar nele, desde o princípio, idéia latente, inconsciente,
uma das causas últimas do ato, e a única dissimulada. Rubião abanou a cabeça para
expeli-la, e levantou-se. Sofia (dona astuta!) recolheu-se à inconsciência do homem,
respeitosa da liberdade moral, e deixou-o resolver por si mesmo que entraria de sócio
com o marido, mediante certas cláusulas de segurança. Foi assim que se fez a sociedade
comercial; assim é que Rubião legalizou a assiduidade das suas visitas.
— Senhor Rubião, disse Maria Benedita depois de alguns segundos de silêncio,
não lhe parece que minha prima é bem bonita?
— Não desfazendo na senhora, acho.
— Bonita e bem feita.
Rubião aceitou o complemento. Um e outro acompanharam com os olhos o par
de valsistas, que passeava ao longo do salão. Sofia estava magnífica. Trajava de azul
escuro, mui decotada,— pelas razões ditas no capítulo XXXV; os braços nus, cheios,
com uns tons de ouro claro, ajustavam-se às espáduas e aos seios, tão acostumados ao
gás do salão. Diadema de pérolas feitiças, tão bem acabadas, que iam de par com as
duas pérolas naturais, que lhe ornavam as orelhas, e que Rubião lhe dera um dia.
Ao lado dela, Carlos Maria não ficava mal. Era um rapaz galhardo, como
sabemos, e trazia os mesmos olhos plácidos do almoço do Rubião. Não tinha as
maneiras súditas, nem as curvas reverentes dos outros rapazes; exprimia-se com a graça
de um rei benévolo. Entretanto, se, à primeira vista, parecia fazer apenas um obséquio
àquela senhora, não é menos certo que ia desvanecido, por trazer ao lado a mais esbelta mulher da noite. Os dois sentimentos não se contradiziam; fundiam-se ambos na
adoração que este moço tinha de si mesmo. Assim, o contato de Sofia era para ele como
a prosternação de uma devota. Não se admirava de nada. Se um dia acordasse
imperador, só se admiraria da demora do ministério em vir cumprimentá-lo.
— Vou descansar um pouco, disse Sofia.
— Está cansada ou ...aborrecida? perguntou-lhe o braceiro.
— Oh! cansada apenas!
Carlos Maria, arrependido de haver suposto a outra hipótese, deu-se pressa em
eliminá-la.
— Sim, creio; por que é que estaria aborrecida? Mas eu afirmo que é capaz de
fazer-me o sacrifício de passear ainda algum tempo. Cinco minutos?
— Cinco minutos.
— Nem mais um que seja? Pela minha parte, passearia a eternidade.
Sofia abaixou a cabeça.
— Com a senhora, note bem.
Sofia deixou-se ir com os olhos no chão, sem contestar, sem concordar, sem
agradecer, ao menos. Podia não ser mais que uma galanteria, e as galanterias é de uso
que se agradeçam. Já lhe tinha ouvido outrora palavras análogas, dando-lhe a primazia
entre as mulheres deste mundo. Deixou de as ouvir durante seis meses, — quatro que
ele gastou em Petrópolis, — dois em que lhe não apareceu. Ultimamente é que tornou a
freqüentar a casa, a dizer-lhe finezas daquelas, ora em particular, ora à vista de toda a
gente. Deixou-se ir; e ambos foram andando calados, calados, calados, — até que ele
rompeu o silêncio, notando-lhe que o mar defronte da casa dela batia com muita força,
na noite anterior.
— Passou lá? perguntou Sofia.
— Estive lá; ia pelo Catete, já tarde, e lembrou-me descer à Praia do Flamengo.
A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto
que nem sonhava comigo? Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração.
Sofia tentou sorrir; ele continuou:
— O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos
rijamente; — com esta diferença que o mar é estúpido, bate sem saber por que, e o meu
coração sabe que batia pela senhora.
— Oh! murmurou Sofia.
Com espanto? Com indignação? Com medo? São muitas perguntas a um tempo.
Estou que a própria dama não poderia responder exatamente, tal foi o abalo que lhe
trouxe a declaração do moço. Em todo caso, não foi com incredulidade. Não posso dizer
mais senão que a exclamação saiu tão frouxa, tão abafada que ele mal pôde ouvi-la. Pela
sua parte, Carlos Maria disfarçou bem, ante os olhos de toda a sala; nem antes, nem
durante, nem depois das palavras, mostrou no rosto a menor comoção; tinha até umas
sombras de riso cáustico, um riso de seu uso, quando mofava de alguém; parecia ter dito
um epigrama. Contudo, mais de um olho de mulher espreitava a alma de Sofia, estudava
o gesto da moça, tal ou qual acanhado, e as pálpebras teimosamente caídas.
— A senhora está perturbada, disse ele; disfarce com o leque.
Sofia maquinalmente entrou a abanar-se e levantou os olhos. Viu que muitos
outros a fitavam, e empalideceu. Os minutos iam correndo, com a mesma brevidade dos
anos; os primeiros cinco e os segundos iam longe; estavam no décimo terceiro, atrás
deste iam apontando as asas de outro, e mais outro. Sofia disse ao braceiro que queria
sentar-se.
— Vou deixá-la e retiro-me.
— Não, disse ela precipitadamente.
Depois, emendou-se:
— O baile está bonito.
— Está, mas eu quero levar comigo a melhor recordação da noite. Qualquer
outra palavra que ouça agora será como o coaxar das rãs, depois do canto de um lindo
pássaro, um dos seus pássaros lá de casa. Onde quer que a deixe?
— Ao lado de minha prima.