Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulos 75 a 79

CAPÍTULO LXXV 

OUTRAS mulheres vieram ali, — as que o preferiam aos demais homens no trato e na contemplação da pessoa. Se as requestava ou requestara todas? Não se sabe. Algumas, vá, é certo, porém, que se deleitava com todas elas. Tais havia de provada honestidade que folgavam de o trazer ao pé de si, para gostar o contato de um belo homem, sem a realidade nem o perigo da culpa, — como o espectador que se regala das paixões de Otelo, e sai do teatro com as mãos limpas da morte de Desdêmona. Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria, tecendo-lhe a mesma grinalda. Nem todas seriam moças em flor; mas a distinção supria a juvenilidade. Carlos Maria recebia-as, como um deus antigo devia receber, quieto no mármore, as lindas devotas e suas oferendas. No burburinho geral distinguia as vozes de todas, — não todas a um tempo, — mas às três e às quatro. A derradeira delas foi a da recente Sofia; escutou-a ainda namorado, mas sem o alvoroço do princípio, porque a lembrança das outras donas, pessoas de qualidade, diminuía agora a importância desta. Contudo, não podia negar que era mui atrativa e que valsava perfeitamente. Chegaria a amar com força? Nisto apareceu-lhe outra vez a mentira da praia. Levantou-se aborrecido da cama. — Quem diabo me mandou dizer semelhante coisa? Tornou a sentir o desejo de restabelecer a verdade; e desta vez mais seriamente que da outra. Mentir, pensava ele, era para os lacaios e seus congêneres. Daí a meia hora, trepava ao cavalo e saía de casa, que era na Rua dos Inválidos. Catete adiante, lembrou-se que a casa de Sofia era na Praia do Flamengo; nada mais natural que torcer a rédea, descer uma das ruas perpendiculares ao mar, e passar pela porta da valsista. Achá-la-ia, talvez à janela; vê-la-ia corar, cumprimentá-lo. Tudo isto passou pela cabeça ao rapaz, em poucos segundos; chegou a dar um jeito à rédea, mas a alma, — não o cavalo, — a alma empinou — era ir muito depressa atrás dela. Deu outro jeito à rédea, e continuou o passeio. 

CAPÍTULO LXXVI 

MONTAVA bem. Toda a gente que passava, ou estava às portas não se fartava de mirar a postura do moço, o garbo, a tranqüilidade régia com que se deixava ir. Carlos Maria, — e este era o ponto em que cedia à multidão, — recolhia as admirações todas, por ínfimas que fossem. Para adorá-lo, todos os homens faziam parte da humanidade. 

CAPÍTULO LXXVII 

— JÁ de pé! repetiu Sofia, ao ver a prima lendo os jornais. Maria Benedita teve um sobressalto, mas aquietou-se logo; dormira mal, e acordou cedo. Não estava para aquelas folias até tão tarde, disse ela; mas a outra replicou logo que era preciso acostumar-se, a vida do Rio de Janeiro não era a mesma da roça, dormir com as galinhas e acordar com os galos. Depois perguntou-lhe que impressões trouxera do baile; Maria Benedita levantou os ombros com indiferença, mas verbalmente respondeu que boas. As palavras saíam-lhe poucas e moles. Sofia, entretanto, ponderou-lhe que dançara muito, salvo polcas e valsas. E por que não havia de polcar e valsar também? A prima lançou-lhe uns olhos maus.
— Não gosto. — Qual não gosta! É medo. — Medo? — Falta de costume, explicou Sofia. — Não gosto que um homem me aperte o corpo ao seu corpo, e ande comigo, assim, à vista dos outros. Tenho vexame. Sofia tornou-se séria; não se defendeu nem continuou, falou da roça, perguntou se era certo o que lhe dissera Cristiano, que ela queria ir para casa. Então a prima, que folheava os jornais, à toa, respondeu animadamente que sim; não podia viver sem a mãe. — Mas por quê? Você não estava tão contente conosco? Maria Benedita não disse nada; passeou os olhos em um dos jornais, como se procurasse alguma notícia, trincando o beiço, trêmula, inquieta. Sofia teimou em querer saber a causa daquela mudança repentina: pegou-lhe nas mãos, achou-as frias. — Você precisa casar, disse finalmente. Tenho já um noivo. Era Rubião; o Palha queria acabar por aí, casando o sócio com a prima; tudo ficava em casa, dizia ele à mulher. Esta tomou a si guiar o negócio. Acudia-lhe agora a promessa; tinha um noivo pronto. — Quem? perguntou Maria Benedita. — Uma pessoa. Crê-lo-eis, pósteros? Sofia não pôde soltar o nome de Rubião. Já uma vez, dissera ao marido havê-lo proposto, e era mentira. Agora, indo a propô-lo deveras, o nome não lhe saiu da boca. Ciúmes? Seria singular que esta mulher, que não tinha amor àquele homem, não quisesse dá-lo de noivo à prima, mas a natureza é capaz de tudo, amigo e senhor. Inventou o ciúme de Otelo e o do cavaleiro Desgrieux, podia inventar este outro de uma pessoa que não quer ceder o que não quer possuir. — Mas quem? repetiu Maria Benedita. — Direi depois, deixe-me arranjar as coisas, respondeu Sofia, e mudou de conversa. Maria Benedita trocou de rosto; a boca encheu-se-lhe de riso, um riso de alegria e de esperança. Os olhos agradeceram a promessa e o trabalho, e disseram palavras que ninguém podia ouvir nem entender, palavras obscuras: — Gosta de valsar; é o que é. Gosta de valsar quem? Provavelmente a outra. Tinha valsado tanto na véspera, com o mesmo Carlos Maria, que bem se poderia achar na dança um pretexto; Maria Benedita concluía agora que era o próprio e único motivo. Conversaram muito nos intervalos, é certo, mas naturalmente era dela que falavam, uma vez que a prima tinha a peito casá-la, e só lhe pedia que deixasse arranjar as coisas. Talvez ele a achasse feia, ou sem graça. Uma vez, porém, que a prima queria arranjar as coisas... Tudo isso diziam os olhos gaios da menina. 

CAPÍTULO LXXVIII 

RUBIÃO é que não perdeu a suspeita assim tão facilmente. Pensou em falar a Carlos Maria, interrogá-lo, e chegou a ir à Rua dos Inválidos, no dia seguinte, três vezes; não o encontrando, mudou de parecer. Encerrou-se por alguns dias; o major Siqueira arrancou-o à solidão. Ia participar-lhe que se mudara para a Rua Dois de Dezembro. Gostou muito da casa do nosso amigo, das alfaias, do luxo, de todas as minúcias, ouros e bambinelas. Sobre este assunto discorreu longamente, relembrando alguns móveis antigos. Como só ele falasse, parou de repente, para dizer que o achava aborrecido; era natural, faltava-lhe ali um complemento. O senhor é feliz, mas falta-lhe aqui uma coisa; falta-lhe mulher. O senhor precisa casar. Case-se, e diga que eu o engano. Rubião lembrou-se de Santa Teresa, — daquela famosa noite da conversação com Sofia, — e sentiu correr-lhe um frio pelas costas; mas a voz do major não tinha nenhum sarcasmo. Tampouco era animada de interesse. A filha estava ainda qual a deixamos no capítulo XLIII, com a diferença que os quarenta anos vieram. Quarentona, solteirona. Gemeu-os consigo, logo de manhã, no dia em que os completou; não pôs fita nem rosa no cabelo. Nenhuma festa; tão-somente um discurso do pai, ao almoço, lembrando-lhe a vida de criança, anedotas da mãe e da avó, um dominó de baile de máscaras, um batizado de 1848, a solitária de um coronel Clodomiro, várias coisas assim de mistura, para entreter as horas. Dona Tonica mal podia ouvi-lo; metida em si mesma, ia roendo o pão da solitude moral, ao passo que se arrependia dos últimos esforços empregados na busca de um marido. Quarenta anos; era tempo de parar. Nada disso lembrava agora ao major. Era sincero; achou que a casa de Rubião não tinha alma. E repetiu, ao despedir-se: — Case-se, e diga que eu o engano. 

CAPÍTULO LXXIX 

E por que não? perguntou uma voz, depois que o major saiu. Rubião, apavorado, olhou em volta de si; viu apenas o cachorro, parado, olhando para ele. Era tão absurdo crer que a pergunta viria do próprio Quincas Borba, — ou antes do outro Quincas Borba, cujo espírito estivesse no corpo deste, que o nosso amigo sorriu com desdém; mas, ao mesmo tempo, executando o gesto do capítulo XLIX, estendeu a mão, e coçou amorosamente as orelhas e a nuca do cachorro, — ato próprio a dar satisfação ao possível espírito do finado. Era assim que o nosso amigo se desdobrava, sem público, diante de si mesmo.  

Agora é Lei: Toda mulher tem direito a acompanhante maior de idade em consultas, exames e cirurgias

  No dia 27/11/2023 foi promulgada a Lei 14.737 que altera a Lei 8.080, de 19/09/1990 - Lei Orgânica da Saúde, para ampliar o direito da mul...