OUTRAS mulheres vieram ali, — as que o preferiam aos demais homens no trato e na
contemplação da pessoa. Se as requestava ou requestara todas? Não se sabe. Algumas,
vá, é certo, porém, que se deleitava com todas elas. Tais havia de provada honestidade
que folgavam de o trazer ao pé de si, para gostar o contato de um belo homem, sem a
realidade nem o perigo da culpa, — como o espectador que se regala das paixões de
Otelo, e sai do teatro com as mãos limpas da morte de Desdêmona.
Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria, tecendo-lhe a mesma grinalda.
Nem todas seriam moças em flor; mas a distinção supria a juvenilidade. Carlos Maria
recebia-as, como um deus antigo devia receber, quieto no mármore, as lindas devotas e
suas oferendas. No burburinho geral distinguia as vozes de todas, — não todas a um
tempo, — mas às três e às quatro.
A derradeira delas foi a da recente Sofia; escutou-a ainda namorado, mas sem o
alvoroço do princípio, porque a lembrança das outras donas, pessoas de qualidade,
diminuía agora a importância desta. Contudo, não podia negar que era mui atrativa e
que valsava perfeitamente. Chegaria a amar com força? Nisto apareceu-lhe outra vez a
mentira da praia. Levantou-se aborrecido da cama.
— Quem diabo me mandou dizer semelhante coisa?
Tornou a sentir o desejo de restabelecer a verdade; e desta vez mais seriamente
que da outra. Mentir, pensava ele, era para os lacaios e seus congêneres.
Daí a meia hora, trepava ao cavalo e saía de casa, que era na Rua dos Inválidos.
Catete adiante, lembrou-se que a casa de Sofia era na Praia do Flamengo; nada mais
natural que torcer a rédea, descer uma das ruas perpendiculares ao mar, e passar pela
porta da valsista. Achá-la-ia, talvez à janela; vê-la-ia corar, cumprimentá-lo. Tudo isto
passou pela cabeça ao rapaz, em poucos segundos; chegou a dar um jeito à rédea, mas a
alma, — não o cavalo, — a alma empinou — era ir muito depressa atrás dela. Deu outro
jeito à rédea, e continuou o passeio.
CAPÍTULO LXXVI
MONTAVA bem. Toda a gente que passava, ou estava às portas não se fartava de mirar
a postura do moço, o garbo, a tranqüilidade régia com que se deixava ir. Carlos Maria,
— e este era o ponto em que cedia à multidão, — recolhia as admirações todas, por
ínfimas que fossem. Para adorá-lo, todos os homens faziam parte da humanidade.
CAPÍTULO LXXVII
— JÁ de pé! repetiu Sofia, ao ver a prima lendo os jornais.
Maria Benedita teve um sobressalto, mas aquietou-se logo; dormira mal, e
acordou cedo. Não estava para aquelas folias até tão tarde, disse ela; mas a outra
replicou logo que era preciso acostumar-se, a vida do Rio de Janeiro não era a mesma da
roça, dormir com as galinhas e acordar com os galos. Depois perguntou-lhe que
impressões trouxera do baile; Maria Benedita levantou os ombros com indiferença, mas
verbalmente respondeu que boas. As palavras saíam-lhe poucas e moles. Sofia,
entretanto, ponderou-lhe que dançara muito, salvo polcas e valsas. E por que não havia
de polcar e valsar também? A prima lançou-lhe uns olhos maus.
— Não gosto.
— Qual não gosta! É medo.
— Medo?
— Falta de costume, explicou Sofia.
— Não gosto que um homem me aperte o corpo ao seu corpo, e ande comigo,
assim, à vista dos outros. Tenho vexame.
Sofia tornou-se séria; não se defendeu nem continuou, falou da roça, perguntou
se era certo o que lhe dissera Cristiano, que ela queria ir para casa. Então a prima, que
folheava os jornais, à toa, respondeu animadamente que sim; não podia viver sem a
mãe.
— Mas por quê? Você não estava tão contente conosco?
Maria Benedita não disse nada; passeou os olhos em um dos jornais, como se
procurasse alguma notícia, trincando o beiço, trêmula, inquieta. Sofia teimou em querer
saber a causa daquela mudança repentina: pegou-lhe nas mãos, achou-as frias.
— Você precisa casar, disse finalmente. Tenho já um noivo.
Era Rubião; o Palha queria acabar por aí, casando o sócio com a prima; tudo
ficava em casa, dizia ele à mulher. Esta tomou a si guiar o negócio. Acudia-lhe agora a
promessa; tinha um noivo pronto.
— Quem? perguntou Maria Benedita.
— Uma pessoa.
Crê-lo-eis, pósteros? Sofia não pôde soltar o nome de Rubião. Já uma vez,
dissera ao marido havê-lo proposto, e era mentira. Agora, indo a propô-lo deveras, o
nome não lhe saiu da boca. Ciúmes? Seria singular que esta mulher, que não tinha amor
àquele homem, não quisesse dá-lo de noivo à prima, mas a natureza é capaz de tudo,
amigo e senhor. Inventou o ciúme de Otelo e o do cavaleiro Desgrieux, podia inventar
este outro de uma pessoa que não quer ceder o que não quer possuir.
— Mas quem? repetiu Maria Benedita.
— Direi depois, deixe-me arranjar as coisas, respondeu Sofia, e mudou de
conversa.
Maria Benedita trocou de rosto; a boca encheu-se-lhe de riso, um riso de alegria
e de esperança. Os olhos agradeceram a promessa e o trabalho, e disseram palavras que
ninguém podia ouvir nem entender, palavras obscuras:
— Gosta de valsar; é o que é.
Gosta de valsar quem? Provavelmente a outra. Tinha valsado tanto na véspera,
com o mesmo Carlos Maria, que bem se poderia achar na dança um pretexto; Maria
Benedita concluía agora que era o próprio e único motivo. Conversaram muito nos
intervalos, é certo, mas naturalmente era dela que falavam, uma vez que a prima tinha a
peito casá-la, e só lhe pedia que deixasse arranjar as coisas. Talvez ele a achasse feia, ou
sem graça. Uma vez, porém, que a prima queria arranjar as coisas... Tudo isso diziam os
olhos gaios da menina.
CAPÍTULO LXXVIII
RUBIÃO é que não perdeu a suspeita assim tão facilmente. Pensou em falar a Carlos
Maria, interrogá-lo, e chegou a ir à Rua dos Inválidos, no dia seguinte, três vezes; não o
encontrando, mudou de parecer. Encerrou-se por alguns dias; o major Siqueira
arrancou-o à solidão. Ia participar-lhe que se mudara para a Rua Dois de Dezembro.
Gostou muito da casa do nosso amigo, das alfaias, do luxo, de todas as minúcias, ouros
e bambinelas. Sobre este assunto discorreu longamente, relembrando alguns móveis
antigos. Como só ele falasse, parou de repente, para dizer que o achava aborrecido; era natural, faltava-lhe ali um complemento.
O senhor é feliz, mas falta-lhe aqui uma coisa; falta-lhe mulher. O senhor
precisa casar. Case-se, e diga que eu o engano.
Rubião lembrou-se de Santa Teresa, — daquela famosa noite da conversação
com Sofia, — e sentiu correr-lhe um frio pelas costas; mas a voz do major não tinha
nenhum sarcasmo. Tampouco era animada de interesse. A filha estava ainda qual a
deixamos no capítulo XLIII, com a diferença que os quarenta anos vieram. Quarentona,
solteirona. Gemeu-os consigo, logo de manhã, no dia em que os completou; não pôs fita
nem rosa no cabelo. Nenhuma festa; tão-somente um discurso do pai, ao almoço,
lembrando-lhe a vida de criança, anedotas da mãe e da avó, um dominó de baile de
máscaras, um batizado de 1848, a solitária de um coronel Clodomiro, várias coisas
assim de mistura, para entreter as horas. Dona Tonica mal podia ouvi-lo; metida em si
mesma, ia roendo o pão da solitude moral, ao passo que se arrependia dos últimos
esforços empregados na busca de um marido. Quarenta anos; era tempo de parar.
Nada disso lembrava agora ao major. Era sincero; achou que a casa de Rubião
não tinha alma. E repetiu, ao despedir-se:
— Case-se, e diga que eu o engano.
CAPÍTULO LXXIX
E por que não? perguntou uma voz, depois que o major saiu.
Rubião, apavorado, olhou em volta de si; viu apenas o cachorro, parado, olhando
para ele. Era tão absurdo crer que a pergunta viria do próprio Quincas Borba, — ou
antes do outro Quincas Borba, cujo espírito estivesse no corpo deste, que o nosso amigo
sorriu com desdém; mas, ao mesmo tempo, executando o gesto do capítulo XLIX,
estendeu a mão, e coçou amorosamente as orelhas e a nuca do cachorro, — ato próprio a
dar satisfação ao possível espírito do finado.
Era assim que o nosso amigo se desdobrava, sem público, diante de si mesmo.