QUE é que tem aí na mão? inquiriu Camacho, logo que Rubião entrou no escritório.
Rubião narrou o incidente da Rua da Ajuda. O advogado fez-lhe muitas
perguntas sobre a criança, os pais, o número da casa; mas, o próprio Rubião pôs termo
às respostas.
— Não sabe, ao menos, o nome do pequeno?
— Ouvi chamar Deolindo. Vamos ao que importa. Venho assinar a sua folha;
recebi um número, e quero contribuir para...
Camacho acudiu que não precisava de assinaturas. Em assinaturas, a folha ia
bem. O que ela precisava era de material tipográfico e desenvolvimento no texto;
ampliar a matéria, pôr-lhe mais noticiário, variedades, tradução de algum romance para
o folhetim1
, movimento do porto, da praça, etc. Tinha anúncios, como viu!
— Sim, senhor.
— Estou com o capital quase subscrito. Bastam dez pessoas, e já somos oito; eu
e mais sete. Faltam dois. Com mais duas pessoas está completo o capital.
— Quanto será? pensou Rubião.
Camacho batia com um canivete na beira da escrivaninha, calado, olhando às
furtadelas para o outro. Rubião passou uma vista à sala, poucos móveis, alguns autos
sobre um tamborete ao pé do advogado, estante com livros, Lobão, Pereira e Sousa,
Dalloz, Ordenaçães do Reino, um retrato na parede, diante da escrivaninha.
— Conhece? disse Camacho apontando para o retrato.
— Não, senhor.
— Veja se conhece.
— Não posso saber. Nunes Machado?
— Não, acudiu o ex-deputado dando à cara um ar pesaroso. Não pude obter um
bom retrato dele. Vendem-se aí umas litografias que me não parecem boas. Não; aquele
é o marquês.
— De Barbacena?
— Não, de Paraná; é o grande marquês, meu particular amigo. Tentou conciliar
os partidos, e foi por isso que me achei com ele. Morreu cedo; a obra não pôde ir
adiante. Hoje, se ele a quisesse, ter-me-ia contra si. Não! nada de conciliações; guerra
de morte. Havemos de destruí-los; leia a Atalaia, meu bom companheiro de lutas;
recebê-la-á em casa...
— Não, senhor.
— Por que não?
Rubião baixou os olhos diante do nariz interrogativo do Camacho.
— Não, senhor; sou firme, desejo ajudar os amigos. Receber a folha de graça...
— Mas, se já lhe disse que de assinaturas vamos bem, retorquiu Camacho.
— Sim, senhor, mas não disse também que faltam duas pessoas para o capital?
— Duas, sim; temos oito.
— Quanto é o capital?
— O capital é de cinqüenta contos; cinco por pessoa.
— Pois entro com cinco.
Camacho agradeceu-lho em nome das idéias. Tinha intenção de convidá-lo para
entrar com eles; era um direito adquirido pela convicção, pela fidelidade, pelo amor aos
negócios públicos do seu recente amigo. Uma vez que espontaneamente se alistou,
pedia-lhe que o desculpasse... Mostrou-lhe a lista dos outros; Camacho era o primeiro;
entrava com a folha, o material existente, as assinaturas, e o trabalho hercúleo... Ia a
emendar-se, mas repetiu corajosamente: trabalho hercúleo. Podia dizer que o era, sem
deslustre, nem mentira; esganou cobras, em criança. Já agora era um vício; gostava da
luta, morreria nela, envolvido na bandeira...
CAPÍTULO LXII
RUBIÃO despediu-se. No corredor passou por ele uma senhora alta, vestida de preto,
com um arruído de seda e vidrilhos. Indo a descer a escada, ouviu a voz do Camacho,
mais alta do que até então:
— Oh! senhora baronesa!
No primeiro degrau parou. A voz argentina da senhora começou a dizer as
primeiras palavras; era uma demanda. Baronesa! E o nosso Rubião ia descendo a custo,
de manso, para não parecer que ficara ouvindo. O ar metia-lhe pelo nariz acima um
aroma fino e raro, coisa de tontear, o aroma deixado por ela. Baronesa! Chegou à porta
da rua; viu parado um cupé2
: o lacaio, em pé, na calçada, o cocheiro na almofada,
olhando; fardados ambos... Que novidade podia haver em tudo isso? Nenhuma. Uma
senhora titular, cheirosa e rica, talvez demandista para matar o tédio. Mas o caso
particular é que ele, Rubião, sem saber por que, e apesar do seu próprio luxo, sentia-se o
mesmo antigo professor de Barbacena.
CAPÍTULO LXIII
NA rua, encontrou Sofia com uma senhora idosa e outra moça. Não teve olhos para ver
bem as feições desta; todo ele foi pouco para Sofia. Falaram-se acanhadamente, dois
minutos apenas, e seguiram o seu caminho. Rubião parou adiante, e olhou para trás; mas
as três senhoras iam andando sem voltar a cabeça. Depois do jantar, consigo:
— Irei lá hoje?
Reflexionou muito sem adiantar nada. Ora que sim, ora que não. Achara-lhe um
modo esquisito; mas lembrava-se que sorriu, — pouco, mas sorriu. Pôs o caso à sorte.
Se o primeiro carro que passasse viesse da direita, iria; se viesse da esquerda, não. E
deixou-se estar na sala, no pufe central, olhando. Veio logo um tílburi3
da esquerda.
Estava dito; não ia a Santa Teresa. Mas aqui a consciência reagiu; queria os próprios
termos da proposta: um carro. Tílburi não era carro. Devia ser o que vulgarmente se
chama carro, uma caleça inteira ou meia, ou ainda uma vitória. Daí a pouco vieram
chegando da direita muitas caleças, que voltavam de um enterro.Foi.
CAPÍTULO LXIV
SOFIA deu-lhe a mão gentilmente, sem sombra de rancor. As duas senhoras do passeio
estavam com ela, em trajes caseiros; apresentou-as. A moça era prima, a velha era tia,
— aquela tia da roça, autora da carta que Sofia recebeu no jardim das mãos do carteiro,
que logo depois deu uma queda. A tia chamava-se Dona Maria Augusta; tinha uma
fazendola, alguns escravos e dívidas, que lhe deixara o marido, além das saudades. A
filha era Maria Benedita, — nome que a vexava, por ser de velha, dizia ela; mas a mãe
retorquia-lhe que as velhas foram algum dia moças e meninas, e que os nomes
adequados às pessoas eram imaginações de poetas e contadores de histórias. Maria
Benedita era o nome da avó dela, afilhada de Luís de Vasconcelos, o vice-rei. Que
queria mais?
Contaram isto ao Rubião, sem que ela se vexasse. Sofia, ou por atenuar o caso,
ou por outro motivo, acrescentou que os mais feios nomes eram lindos, segundo a
pessoa. Maria Benedita era lindíssimo.
— Não lhe parece? concluiu voltando-se para Rubião.
— Deixa de caçoada, prima! acudiu Maria Benedita, rindo.
Podemos crer que a velha nem Rubião entenderam o dito, — a velha, porque
começava a cochilar, — Rubião porque afagava um cãozinho que tinham dado a Sofia,
pequeno, delgado, leve, buliçoso, olhos negros, com um guizo ao pescoço. Mas,
insistindo a dona da casa, ele respondeu que sim, sem saber o que era. Maria Benedita
deu um muxoxo. Em verdade, não era bonita; não lhe pedissem olhos que fascinam,
nem dessas bocas que segredam alguma coisa, ainda caladas; era natural, sem acanho de
roceira; e tinha um donaire particular, que corrigia as incoerências do vestido.
Nascera na roça e gostava da roça. A roça era perto, Iguaçu. De longe em longe
vinha à cidade, passar alguns dias; mas, ao cabo dos dois primeiros, já estava ansiosa
por tornar a casa. A educação foi sumária: ler, escrever, doutrina e algumas obras de
agulha. Nos últimos tempos (ia em dezenove anos), Sofia apertou com ela para aprender
piano; a tia consentiu; Maria Benedita veio para a casa da prima, e ali esteve uns dezoito
dias. Não pôde mais; doeram-lhe as saudades da mãe e voltou para a roça, deixando
consternado o professor, que anunciou nela, desde os primeiros dias, um grande talento
musica1.
— Oh! sem dúvida, um grande talento!
Maria Benedita riu-se quando a prima lhe contou isto, e nunca mais pôde ver a
sério o homem. Às vezes, no meio de uma lição, deitava a rir; Sofia contraía as
sobrancelhas, a modo de ralho, e o pobre homem perguntava o que era, e de si mesmo
explicava que havia de ser alguma lembrança de moça, e continuava a lição. Nem piano
nem francês, — outra lacuna, que Sofia mal podia desculpar. Dona Maria Augusta não
compreendia a consternação da sobrinha. Para que francês? A sobrinha dizia-lhe que era
indispensável para conversar, para ir às lojas, para ler um romance...
— Sempre fui feliz sem francês, respondia a velha; e os meia-línguas da roça são
a mesma coisa; não vivem pior que os crioulos.
Um dia acrescentou:
— Nem por isso lhe hão de faltar noivos. Pode casar, já lhe disse que pode casar
quando quiser, que eu também casei; e até deixar-me na roça, sozinha, morrer como
uma besta velha.
— Mamãe!
— Não tenha pena; é só aparecer o noivo. Em aparecendo, vá com ele, e deixeme ficar. Olha Maria José o que fez comigo? Vive lá pelo Ceará.
— Mas se o marido é juiz de direito, ponderava Sofia.
— Torto que seja! Para mim é a mesma coisa. Cá fica o frangalho da velha.
Casa, Maria Benedita, casa depressa; eu morrerei com Deus... Não terei filhos, mas terei
Nossa Senhora, que é mãe de todos. Casa, anda, casa!
Toda essa rabugem era cálculo; tinha em mira arredar a filha do matrimônio,
excitando-lhe o terror e a piedade. Quando menos, retardar-lho. Não creio que revelasse
esse pecado ao confessor, nem que chegasse a entende-lo: era obra de um egoísmo idoso
e melindroso. Dona Maria Augusta fora longamente querida; a mãe era doida por ela, o
marido amou-a até o último dia com a mesma intensidade. Mortos ambos, todas as suas
saudades filiais e matrimoniais foram postas na cabeça das duas filhas. Uma fugira-lhe,
casando. Ameaçada da solidão, se a outra casasse também, Dona Maria Augusta fazia
tudo o que podia por evitar o desastre.