Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulos 57 a 60

CAPÍTULO 57

CAMACHO era homem político. Formado em Direito em 1844, pela Faculdade do Recife, voltara para a província natal, onde começou a advogar; mas a advocacia era um pretexto. Já na academia, escrevera um jornal político, sem partido definido, mas com muitas idéias colhidas aqui e ali, e expostas em estilo meio magro e meio inchado. Pessoa que recolheu esses primeiros frutos de Camacho fez um índice dos seus princípios e aspirações: — ordem pela liberdade, liberdade pela ordem; a autoridade não pode abusar da lei, sem esbofetear-se a si própria; — a vida dos princípios é a necessidade moral das nações novas como das nações velhas; — dai-me boas finanças, dar-vos-ei boa política, dar-vos ei boas finanças (Barão Louis); — mergulhemos no Jordão constitucional; — dai passagem aos valentes, homens do poder; eles serão os vossos sustentáculos, etc, etc. Na província natal, essa ordem de idéias teve de ceder a outras; o mesmo se pode dizer do estilo. Fundou ali um jornal; mas, sendo a política local menos abstrata, Camacho aparou as asas e desceu às nomeações de delegados, às obras provinciais, às gratificações, à luta com a folha adversa, e aos nomes próprios e impróprios. A adjetivação exigiu grande apuro. Nefasto, esbanjador, vergonhoso, perverso, foram os termos obrigados, enquanto atacou o governo; mas, logo que, por uma mudança de presidente, passou a defendê-lo, as qualificações mudaram também: enérgico, ilustrado, justiceiro, fiel aos princípios, verdadeira glória da administração, etc., etc. Esse tiroteio durou três anos. No fim deles, a paixão política dominava a alma do jovem bacharel. Membro da assembléia provincial, logo depois da Câmara dos Deputados, presidente de uma província de segunda ordem, onde, por natural mudança do destino, leu nas folhas da oposição todos os nomes que escrevera outrora, nefasto, esbanjador, vergonhoso, perverso, Camacho teve dias grandes e pequenos, andou fora e dentro da câmara, orou, escreveu, lutou constantemente. Acabou por vir morar na capital do império. Deputado da conciliação dos partidos, viu governar o marquês de Paraná, e instou por algumas nomeações, em que foi atendido; mas, se é certo que o marquês lhe pedia conselhos, e usava confiar-lhe os planos que trazia, ninguém podia afirmá-lo, porque ele, em se tratando da própria consideração, mentia sem dificuldade. O que se pode crer é que queria ser ministro, e trabalhou por obtê-lo. Agregou-se a vários grupos, segundo lhe parecia acertado; na câmara discorria largamente sobre matérias de administração, acumulava algarismos, artigos de legislação, pedaços de relatório, trechos de autores franceses, embora mal traduzidos. Mas, entre a espiga e a mão, está o muro de que fala o poeta; e por mais que o nosso homem estendesse a mão do seu desejo para colhê-la, a espiga lá ficava do lado oposto, donde a arrancavam outras mãos, mais ou menos sôfregas, ou até descuidadas. Há solteirões na política. Camacho ia entrando nessa categoria melancólica, em que todos os sonhos nupciais se evaporam com o tempo; mas não tinha a superioridade de abandoná-la. Ninguém que organizasse um gabinete se atrevia, ainda que o desejasse, a dar-lhe uma pasta. Camacho ia-se sentindo cair; para simular influência, tratava familiarmente os poderosos do dia, contava em voz alta as visitas aos ministros e a outras dignidades do Estado; mas nem por isso dava um passo adiante. Não lhe faltava que comer. A família era pequena; mulher, uma filha, que ia nos dezoito anos, um afilhado de nove, e para isso dava a advocacia. Mas trazia a política no sangue; não lia, quase não falava de outra coisa. De literatura, ciências naturais, história, filosofia, artes, não se preocupava absolutamente nada. Também não conhecia grandes coisas de Direito; guardava algum do que lhe dera a academia, mais a legislação posterior e as práticas forenses. Com isso ia arrazoando e ganhando. 

CAPÍTULO 58 

DIAS antes, indo passar a noite em casa de um conselheiro, viu ali Rubião. Falava-se da chamada dos conservadores ao poder, e da dissolução da câmara. Rubião assistira à sessão em que o ministério Itaboraí pediu os orçamentos. Tremia ainda ao contar as suas impressões, descrevia a câmara, tribunas, galerias cheias que não cabia um alfinete, o discurso de José Bonifácio, a moção, a votação... Toda essa narrativa nascia de uma alma simples; era claro. A desordem dos gestos, o calor da palavra tinham a eloqüência da sinceridade. Camacho escutava-o atento. Teve modo de o levar a um canto da janela, e fazer-lhe considerações graves sobre a situação. Rubião opinava de cabeça, ou por palavras soltas e aprobatórias. — Os conservadores não se demoram no poder, disse-lhe finalmente Camacho. — Não? — Não; eles não querem a guerra, e têm de cair por força. Veja como andei bem no programa da folha. — Que folha? — Conversaremos depois. No dia seguinte, almoçaram no Hotel de la Bourse, a convite de Camacho. Este referiu ao outro que fundara, meses antes, uma folha com o único programa de continuar a guerra a todo transe... Andava muito acesa a dissensão entre liberais; pareceu-lhe que o melhor modo de servir ao próprio partido era dar-lhe um terreno neutro e nacional. — E isto agora serve-nos, concluiu ele, porque o governo inclina-se à paz. Já amanhã sai um artigo meu, furibundo. Rubião ouvia tudo, quase sem tirar os olhos do outro, comendo rapidamente, nos intervalos em que o próprio Camacho inclinava a cabeça ao prato. Folgava de ver-se confidente político; e, para dizer tudo, a idéia de entrar em luta para colher alguma coisa depois, um lugar na câmara, por exemplo, espanejou as asas de ouro no cérebro do nosso amigo. Camacho não lhe falou em mais nada; procurou-o no dia seguinte, e não o achou. Agora, pouco depois de entrar, vinha o Palha interrompê-los. 

CAPÍTULO 59

SIM, mas eu preciso ir a Minas, teimou Rubião. — Para quê? perguntou Camacho. Palha fez-lhe igual pergunta. Para que iria a Minas, salvo se era negócio de pouco tempo. Ou já estava aborrecido da Corte? — Não, aborrecido não estou; ao contrário... Ao contrário, gostava muito dela; mas a terra natal, — por menos bonita que seja, — um lugarejo, — dá saudades à gente; — ainda mais quando a pessoa veio de lá homem. Queria ver Barbacena. E Barbacena era a primeira terra do mundo. Durante alguns minutos, Rubião pôde subtrair-se à ação dos outros. Tinha a terra natal em si mesmo; ambições, vaidades da rua, prazeres efêmeros, tudo cedia ao mineiro saudoso da província. Se a alma dele foi alguma vez dissimulada, e escutou a voz do interesse, agora era a simples alma de um homem arrependido do gozo, e mal acomodado na própria riqueza. Palha e Camacho olharam um para o outro... Oh! esse olhar foi como um bilhete de visita trocado entre as duas consciências. Nenhuma disse o seu segredo, mas viram os nomes no cartão, e cumprimentaram-se. Sim, era preciso impedir que o Rubião saísse; Minas podia retê-lo. Concordaram que lá fosse, mas depois, — alguns meses depois; — e talvez o Palha fosse também. Nunca vira Minas; seria excelente ocasião. — O senhor? perguntou Rubião. — Sim, eu; há muito que desejo ir a Minas e a São Paulo. Olhe, há mais de ano que estivemos vai não vai... Sofia é companheira para estas viagens. Lembra-se quando nos encontramos no trem da estrada de ferro?... Vínhamos de Vassouras; mas esta idéia de Minas nunca nos deixou. Iremos os três. Rubião agarrou-se às eleições próximas; mas aqui interveio Camacho, afirmando que não era preciso, que a serpente devia ser esmagada cá mesmo na capital; não faltaria tempo depois para ir matar saudades e receber a recompensa. ..Rubião agitou-se no canapé. A recompensa era, com certeza, o diploma de deputado. Visão magnífica, ambição que nunca teve, quando era um pobre diabo... Ei-la que o toma, que lhe aguça todos os apetites de grandeza e glória... Entretanto, ainda insistiu por poucos dias de viagem, e, para ser exato, devo jurar que o fez sem desejo de que lhe aceitassem a proposta. A lua estava então brilhante; a enseada, vista pelas janelas, apresentava aquele aspecto sedutor que nenhum carioca pode crer que exista em outra parte do mundo. A figura de Sofia passou ao longe, na encosta do morro, e diluiu-se no luar; a última sessão da câmara, tumultuosa, ressoou aos ouvidos de Rubião... Camacho foi até à janela e voltou, logo. — Mas quantos dias? perguntou ele. — Isso é que não sei, mas poucos. — Em todo o caso, amanhã falaremos. Camacho despediu-se. Palha ficou ainda alguns instantes, para dizer-lhe que seria esquisito voltar a Minas, sem que eles liquidassem as contas... Rubião interrompeu-o. Contas? Quem falava em contas? — Bem se vê que o senhor não é homem de comércio, redargüiu Cristiano. — Não sou, é verdade; mas as contas pagam-se quando se podem. Entre nós, tem sido isto. Ou, quem sabe? Seja franco; precisa de algum dinheiro? — Não, não preciso. Obrigado. Tenho que propor um negócio, mas há de ser mais demoradamente. Vim vê-lo para não botar anúncios nos jornais: “Desapareceu um amigo, por nome Rubião, que tem um cachorro...” Rubião gostou da facécia. Palha saiu e ele foi acompanhá-lo até a esquina da Rua Marquês de Abrantes. Ao despedir-se prometeu visitá-lo em Santa Teresa, antes de ir a Minas. 

CAPÍTULO 60 

POBRE Minas! Rubião voltou para casa sozinho, a passo lento, pensando no modo de lá não ir agora. E as palavras dos dois andavam-lhe no cérebro, como peixinhos de ouro em globo de vidro, abaixo, acima, rutilantes: “aqui é que se deve esmagar a cabeça da cobra:” — “Sofia é companheira para estas viagens”. Pobre Minas! No dia seguinte recebeu um jornal que nunca vira antes, a Atalaia. O artigo editorial desancava o ministério, a conclusão, porém, estendia-se a todos os partidos e à nação inteira: — Mergulhemos no Jordão constitucional. Rubião achou-o excelente; tratou de ver onde se imprimia a folha para assiná-la. Era na Rua da Ajuda, lá foi, logo que saiu de casa; lá soube que o redator era o Doutor Camacho. Correu ao escritório dele.. Mas, em caminho na mesma rua: — Deolindo!, Deolindo! bradou angustiadamente uma voz de mulher à porta de uma colchoaria. Rubião ouviu o grito, voltou-se, viu o que era. Era um carro que descia e uma criança de três ou quatro anos que atravessava a rua. Os cavalos vinham quase em cima dela, por mais que o cocheiro os sofreasse. Rubião atirou-se aos cavalos e arrancou o menino ao perigo. A mãe, quando o recebeu das mãos do Rubião, não podia falar; estava pálida, trêmula e chorava. Algumas pessoas puseram-se a altercar com o cocheiro, mas um homem calvo, que vinha dentro, ordenou-lhe que fosse andando. O cocheiro obedeceu. Assim, quando o pai, que estava no interior da colchoaria, veio fora, já o carro dobrava a esquina de São José. — Ia quase morrendo, disse a mãe. Se não fosse este senhor, não sei o que seria do meu pobre filho. Era uma novidade no quarteirão. Vizinhos entravam a ver o que sucedera ao pequeno; na rua, crianças e moleques, espiavam pasmados. A criança tinha apenas um arranhão no ombro esquerdo, produzido pela queda. — Não foi nada, disse Rubião; em todo caso, não deixem o menino sair à rua; é muito pequenino. — Obrigado, acudiu o pai; mas onde está o seu chapéu? Rubião advertiu então que perdera o chapéu. Um rapazinho esfarrapado, que o apanhara, estava à porta da colchoaria, aguardando a ocasião de restituí-lo. Rubião deulhe uns cobres em recompensa, coisa em que o rapazinho não cuidara, ao ir apanhar o chapéu. Não o apanhou senão para ter uma parte na glória e nos serviços. Entretanto, aceitou os cobres, com prazer; foi talvez a primeira idéia que lhe deram da venalidade das ações. — Mas espere, tornou o colchoeiro, o senhor feriu-se? Com efeito, a mão do nosso amigo tinha sangue, um ferimento na palma, coisa pequena; só agora começava a senti-lo. A mãe do pequeno correu a buscar uma bacia e uma toalha, apesar de dizer o Rubião que não era nada, que não valia a pena. Veio a água; enquanto ele lavava a mão, o colchoeiro correu à farmácia próxima, e trouxe um pouco de arnica. Rubião curou-se, atou o lenço na mão; a mulher do colchoeiro escovou-lhe o chapéu; e, quando ele saiu, um e outro agradeceram-lhe muito o benefício da salvação do filho. A outra gente, que estava à porta e na calçada, fez-lhe alas.  

Agora é Lei: Toda mulher tem direito a acompanhante maior de idade em consultas, exames e cirurgias

  No dia 27/11/2023 foi promulgada a Lei 14.737 que altera a Lei 8.080, de 19/09/1990 - Lei Orgânica da Saúde, para ampliar o direito da mul...