Resumo: O presente artigo pretende fazer leitura e estudo comparado dos elementos constitutivos de O mez da grippe, do escritor e cineasta Valêncio Xavier, e Anjo Negro, do jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, a fim de pensar questões prezadas pela modernidade estética e presentes em ambas as obras, com ênfase nos aspectos formais e destacando elementos que emanam da afirmação da externalidade, tais como o panoptismo, a sociedade disciplinar e o estranho/fantasma que ameaça a ordem, a superficialidade dos personagens, assim como o clichê e a ironia, o gênero textual híbrido. Para tanto, utilizaremos como principal base teórica o pensamento do filósofo Michel Foucault, em especial seus livros Vigiar e punir e História da sexualidade 1: a vontade de saber.
Palavras-chave: Valêncio Xavier, Nelson Rodrigues, panoptismo, gênero híbrido.
Abstract: This paper aims to analyze and make a comparative study of the constitutive elements of O mês da grippe, by Valêncio Xavier, writer and film-maker, and Anjo Negro, by Nelson Rodrigues, journalist and playwright, aiming to reflect on issues cherished by modern aesthetics that appear in both works, emphasizing formal aspects and highlighting elements that emanate from the affirmation of externality, such as the panopticism, the disciplinary society and the odd/ghost that threatens the order, the characters’ superficiality, as well as the cliche and the irony of the hybrid textual gender. In order to do so, we will use, as main theoretical basis, the ideas of Michel Foucault, particularly his books Vigiar e punir and História da sexualidade 1: a vontade de saber. Keywords: Valêncio Xavier, Nelson Rodrigues, panopticism, hybrid gender.
Anjo Negro “A ficção para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós.” (RODRIGUES, Nelson. O anjo pornográfico. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 273.) A peça Anjo negro foi escrita em 1946 e, junto com Álbum de família e Senhora dos afogados, compõe o ciclo de peças apelidadas pelo próprio autor de “desagradáveis, por serem obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia” (RODRIGUES, 1993, p. 37). A questão central de Anjo Negro é o racismo, mas são explorados também assuntos como incesto, sexo e relações familiares. O eixo da trama é Ismael, o patriarca negro de uma família que vive reclusa em um microcosmo, em uma casa “que não tem teto para que a noite possa entrar e possuir seus moradores. No fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro” (RODRIGUES, 2012, p. 7). Conta a história de uma família que se mantém pelo estupro constante à mulher, a esposa Virgínia, a branca. A própria consumação desse casamento se deu como uma violação ao desejo de Virgínia, lembrança viva e presentificada pela cama “quebrada, metade do lençol para fora, travesseiro no chão” (RODRIGUES, 2012, p. 7), leito da violência que compõe o cenário. Além dessa violência primeira, Virgínia, assim como Medeia, mata sua prole, pois tem asco pela cor de seus descendentes. A peça se inicia com o velório de seu terceiro filho. Ismael rejeita sua cor tão intensamente quanto a esposa o rejeita. O negro inveja tanto os brancos que, quando criança, cega seu irmão Elias por ele ser branco. Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Mille Plateaux, travam uma importante discussão filosófica sobre a “máquina abstrata produtora de rostidade”, que se sustenta sobre dois imprescindíveis eixos: significação e subjetividade. O primeiro “não existe sem um muro branco sobre o qual inscreve seus signos e suas redundâncias”; já o segundo “não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua paixão, suas redundâncias” (1980, p. 31). O rosto surge, então, da interseção desses dois eixos, desse sistema muro branco-buraco negro. Deleuze e Guatari explicam:
[...] um rosto: sistema muro branco-buraco negro. Grande rosto com bochechas brancas, rosto de giz furado com olhos como buraco negro. Cabeça de clown, clown branco, pierrô lunar, anjo da morte, santo sudário. O rosto não é um invólucro exterior àquele que fala, que pensa ou que sente [...]. Uma criança, uma mulher, uma mãe de família, um homem, um pai, um chefe, um professor primário, um policial, não falam uma língua em geral, mas uma língua cujos traços significantes são indexados nos traços de rostidade específicos (DELEUZE, 1980, p. 32).
A partir dessa reflexão, percebe-se que a máquina abstrata criadora de rostos, ou o sistema muro branco-buraco negro, embora no plano humano produza rostos, estes são inumanos. Eles servem aos agenciamentos de poder, já que esse sistema introduz o homem em um rosto em vez de dar a posse de um. Os rostos não são mais originalmente individuais, mas definidores de territórios neutralizadores; as palavras de ordem devem ser transmitidas sem nenhuma espécie de ruído, então, o que é estranho à máquina, ela rejeita. Dessa forma, percebemos que a máquina abstrata de rostidade conecta linguagem-rosto; logo, a linguagem é indexada sobre os traços de rostidade. É notória a forte presença dessas questões ligadas à “rostidade” em Anjo Negro. Segundo os teóricos, em Mille Plateaux, “a cada instante, a máquina rejeita rostos não-conformes ou com ares suspeitos” (1980, p. 217), ordena as regularidades, hierarquiza e classifica, eliminando, assim, o excesso. Há pessoas que deveriam ser como nós, cujo crime é não o serem. “O racismo jamais detecta as partículas do outro, ele propaga as ondas do mesmo até a extinção daquilo que não se deixa identificar (ou que só se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio)” (1980, p. 218) O que é estranho à máquina, ela rejeita, exclui; ou tenta recuperar a humanidade do monstruoso. Na sociedade contemporânea, a indústria da beleza representa a máquina que fabrica o culturalmente aceito como belo. Os que fogem dessa padronização, ou seja, desta estética veiculada pela mídia e consumida mundialmente, são rejeitados pelo sistema. A máquina julga os rostos adequados e tenta “rostificar” os inadequados, numa tentativa de resgatá-los, eliminando os excessos, sobrecodificando para incluí-los no sistema, criando desejos de consumir o belo, de ser aceito pelo meio. É pelo rosto que as escolhas se guiam e os elementos se organizam. Segundo Deleuze, todos têm a necessidade de um rosto, pois é uma questão de economia e organização do poder, de vida. Em seu ensaio “Como desfazer para si próprio o seu rosto?”, Ana Godinho (2010) explica que os rostos são necessários ao poder. Ao poder passional, o poder do rosto amado, os rostos das celebridades e das figuras públicas etc. Em que circunstâncias a máquina de produção de rostos se faz necessária? Quando precisamos de um rosto, a máquina funciona ou por unidades ou por elementos ou por escolhas. “Qualquer que seja o conteúdo que se lhe atribua, a máquina procederá à constituição de uma unidade de rosto, de um rosto elementar em correlação biunívoca com um outro: é um homem ou uma mulher, um rico ou um pobre” (GODINHO, 2010, p. 73), um sujeito bom ou mau etc. “Os rostos concretos individualizados produzem-se e transformam-se em torno dessas unidades, dessas combinações de unidades, de tal modo que podemos dizer que em tal rosto se ‘vê’ tal vocação” (GODINHO, 2010, p 74). Fomos educados de maneira a ler os rostos. Há uma educação dos rostos. “Introduzimo-nos num rosto mais do que possuímos um” (GODINHO, 2010, p. 74).
A máquina criou, desta forma, o desejo em Ismael de ser visto como branco; ele mesmo se “rostifica” como homem branco para ser aceito por sua suposta filha, fruto da traição de Virgínia com Elias. O patriarca queima os olhos da bebê Ana Maria para criá-la, fazendo-a acreditar que ele é o único homem branco do mundo. Dessa forma, Ismael se introduz em um rosto idealizado por ele, e alcança o poder tão desejado e negado a ele, através do amor e da admiração de Ana Maria. No auge da adolescência de sua filha, em uma tentativa de desmascarar Ismael, Virgínia revela a ela que Ismael é negro:
Preto, meu pai? (feroz) Ele, não. Os outros, sim. É por isso que ele me esconde aqui, que me guarda, não deixa ninguém falar comigo, a não ser você. Porque todos são pretos, (repete, espantada) todos! Até no livro que meu pai leu pra mim... (RODRIGUES, 2012, p. 82).
Resguardado por altos muros, Ismael se reveste de um terno branco engomadíssimo, símbolo de sua obsessão, segunda pele que, ao mesmo tempo em que esconde sua pele escura, afirma um status quo de sua mudança de classe social – de menino negro a médico elegante, minando sua alteridade. O convívio com o mundo é obliterado para que a ficção, que ele criou acerca de sua cor, não seja prejudicada. Enquanto Ana Maria cresce e vira adolescente, um mausoléu é construído para ela a pedido de Ismael, onde ela deverá encerrar sua existência junto a ele. No entanto, Virgínia convence o marido a apenas encerrar Ana Maria, sozinha, lá. Assim a peça termina, com Virgínia e Ismael voltando para o quarto e Ana Maria em seu mausoléu. O coro de senhoras anuncia a chegada de mais um filho, outro anjo negro que morrerá como seus irmãos. No entanto, se as questões fomentadas pela problematização do conceito rostidade conferem dramaticidade à obra, a forma como tal enredo é construído provoca a
estranheza necessária à reinvenção do gênero tragédia e à configuração da crise do homem contemporâneo. Nessa peça, segundo Ângela Leite Lopes, em seu artigo “Nelson Rodrigues, o trágico e a cena do estilhaçamento”, Rodrigues põe em questão elementos característicos da tragédia, como o coro e as noções de destino, maldição, fatalidade. No entanto, o trágico é desconstruído, pois os elementos ditos trágicos também o são.
O que é destino, fatalidade, mostra-se na verdade o gesto de alguém. Um crime, uma paixão. O que era dito trágico torna-se trágico por essa desconstrução. Apela para um sentido que não está mais aí. O que tem por consequência imediata uma sensação de estranheza. Uma estranheza que se liga, intencionalmente, à realidade da cena (LOPES, 1994, p. 84).
A estranheza advém do que não estamos acostumados a ver representar. Anjo negro é trágico, mas não segue o rigor do gênero tragédia tal qual estávamos acostumados a ver nos teatros. Vemos refletida, até mesmo no gênero, a dissociação do homem contemporâneo.
O mez da grippe
Se com Anjo negro deparamos com uma “afirmação da externalidade” – isto é, o regime de verdade baseia-se nos fatos visíveis, na superficialidade (PEREIRA, 1994, p. 209) –, devido à problematização da rostidade, em O mez da grippe essa externalidade também é evidente. Valêncio Xavier1 , com sua inédita interação entre imagens e palavras, traz para o texto escrito sua experiência adquirida em outras áreas e escreve uma obra única, contribuição singular para o convívio da literatura com outros gêneros. Em O mez da grippe, estamos diante de uma Curitiba caótica vivendo o último trimestre de 1918. O livro, novela híbrida que narra a crise social consequente da epidemia de gripe espanhola, é uma narrativa criada a partir de montagem e colagem de cartas, poesias, trechos bíblicos, cartões postais, fotos, relatórios, depoimentos, pronunciamentos, decretos, matérias de jornais e até rótulos de produtos comerciais, entre outras colagens. A aparente organização caótica se dá justamente para configurar a crise vivida na época. A epígrafe escolhida por Xavier já antecipa o que iremos encontrar:
Vê-se um sepulcro cheio de cadáveres, sobre os quais se podem observar todos os diferentes estados da dissolução, desde o instante da morte até a destruição total do indivíduo. Esta macabra execução é de cera, colorida com tanta naturalidade que a natureza não poderia ser, nem mais expressiva, nem mais verdadeira (MARQUÊS DE SADE apud XAVIER, 1981, p. 5).
A instigante citação escolhida por Xavier nos remete ao esforço da literatura, da arte, de estruturar a ansiedade e o horror sob uma forma legível. No entanto, a representação, segundo o Marquês de Sade (apud XAVIER, 1981, p. 5), pode ser ainda mais expressiva do que a própria realidade. O teórico francês Maurice Blanchot, em O livro por vir (2005), afirmara que há dois tipos de navegação: a navegação imaginária da narrativa e a navegação da vida real. A navegação imaginária conduz à irrealidade de um espaço cintilante, mostrando-nos que a literatura é mais mordente que a própria realidade. Essa navegação conduz escritores e leitores para a irrealidade do texto. Já a navegação da vida real é aquela que leva o escritor, por meio de suas próprias ciladas, artimanhas, até a experiência literária. A navegação da vida real levou Xavier a escrever sobre o caótico ano de 1918, lançando-nos, assim, na homogeneidade absoluta da morte. A morte e a doença figuram em um universo de vozes que se unem num enredo que recria – a partir de literatura e história, linguagem verbal e não verbal (icônica, visual, imagética) – o sufocante contexto da gripe espanhola. Segundo Barthes (2000), uma das diferenças entre os “textos de prazer” e os de “gozo” situa-se na temporalidade da leitura. Os textos de prazer oferecem uma leitura fluente, podem- -se pular passagens sem grandes perdas de entendimento; os textos de gozo (também chamados modernos ou escrevíveis), no entanto, exigem uma leitura minuciosa, aplicada. Podemos considerar O mez da grippe não como um texto legível, mas escrevível, pois o leitor é convidado a preencher as lacunas do texto, a inventar, junto com o autor, a existência das coisas. É nesse texto não legível, mas escrevível, que somos provocados a entrar nesse jogo da escrita, completando sua significação de acordo com nossas experiências. As histórias narradas convergem e divergem, em uma natureza paradoxal, essência de toda obra de arte, tensão necessária para que ela seja concebida como tal. A pesquisadora Claudiana Soerensen, no artigo “O mez da grippe: palimpsesto pós-moderno”, fala sobre o estranhamento que tal leitura pode causar em um leitor menos experiente:
A leitura de O mez da grippe causa estranhamento e requer do leitor a habilidade da leitura não linear. Recortes e colagens são links de um hipertexto formado por fotografias, anúncios publicitários, depoimentos orais, versos de poema, músicas e manchetes jornalísticas, conduzindo o leitor a várias janelas textuais. O próprio autor, em sua entrevista à Revista Cult, manifestou que O mez da grippe é “pra ser lido como um jornal, em que a pessoa olha uma manchete, pula para a página de esportes, se detém na foto de uma atriz e já vai para ver o crime do dia, e assim por diante” (SOERENSEN, 2011, p. 76).
Dessa forma, ao percorrermos a Curitiba de 1918 de Xavier, sentimo-nos livres para nos perdermos na observação de imagens, fotografias, pular algumas páginas sem comprometer a leitura. Soerensen compara cada página de O mez da grippe a um hipertexto, isto é, cada página é dotada de vários links que permitem ao leitor novas informações. A pesquisadora cita Pierre Lévy para se fazer entender:
um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não são ligados linearmente, como em uma corda de nós, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrelas, de modo reticular. Navegar em um hipertexto significa portanto desenhar um percurso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque cada nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira (LÉVY, 1993, p. 33 apud SOERENSEN, 2011, p. 77).
Cabe ao leitor realizar os vários nós que estabelecerão as conexões entre os hipertextos. O hipertexto labiríntico proposto por Xavier configura-se como uma coletânea de informações provenientes de várias fontes, cujas páginas “independentes” conduzem, aparentemente, ao caos. Dessa maneira, o leitor fica desestabilizado ao ter diante de si a desconstrução da organização convencional da narrativa. Segundo Barthes (1988), o leitor passará por um processo de apreensão do novo que ocorre em três fases: a catarse – no contato com o novo, as referências do leitor são desorganizadas; a apropriação – quando se dá a compreensão do texto; a reconstrução – momento em que ocorre a atualização da estrutura potencial da obra.
Percebemos, então, que a obra pode ser lida de maneiras variadas: dividida por gêneros textuais ou por linguagens. A descontinuidade do texto e sua polifonia, que resulta em um aparente caos, são, acima de tudo, criação contínua. A narrativa de Xavier é híbrida: ela incorpora traços da linguagem cinematográfica, televisiva, fotográfica, jornalística, pornográfica, publicitária e até mesmo do romance policial. A grande diversidade de tipos e gêneros textuais, organizados por datas – a narrativa é montada em forma de diário –, nos remete ao vazio de que fala Jean Baudrillard (1983) num aparente paradoxo: “estar em cena” em exagero, isto é, o excesso de exposição conduz ao vazio, novamente estamos permeados pela presença-ausente. É a própria sucessão de imagens (incluindo as textuais) a produtora de uma narratividade conflituosa, desconfortável, como afirmou Flora Sussekind a respeito de “Minha História Dele”, de Valêncio Xavier (SUSSEKIND, 2013, p. 14). O mez da grippe é entremeado de enigmas, jogos, histórias que se superpõem e se entremeiam, um livro que impulsiona a linguagem à sua potência máxima. A unidade de sentido da obra não é estática, mas processual e plural, “resolução dos antagonismos que toda a obra necessariamente em si traz” (ADORNO, 2008, p.267). Ele é como um quebra-cabeças, cujas imagens se modificam a cada tentativa de montagem; as técnicas de cortes e recortes, a narração por partes descontínuas, desafiam-nos a cada leitura e nos colocam diante de um texto cuja fragmentação e o fragmentário se unem para nos intrigar e instigar. Apelidado por Décio Pignatari de Frankestein de Curitiba, Valêncio Xavier, em entrevista concedida a Luiz Andrioli em 1999, ao ser indagado se aprovava a alcunha a ele atribuída, diz: “O doutor Frankenstein pegava cadáveres e juntava as coisas. É uma definição da minha obra: eu faço arte com pedaços de coisas” (XAVIERapud ANDRIOLI, 2008). Em entrevista à CBN2 , Xavier revela que a ideia de O mez da grippe surgiu quando ele deparou com as notícias sobre a gripe de 1918. Interessante perceber que as imagens de jornais presentes no livro em questão são originais, isto é, elas não foram modificadas na obra. A respeito da construção da linguagem, Xavier relata, em entrevista à Cult, que nunca pensa antes de escrever, seu raciocínio é a posteriori; colada em seu computador, há a frase de Alain Resnais: “A forma preexiste em algum lugar e se incorpora no texto à medida que vamos escrevendo a história” (TERRON, 1999). Assim, a cada leitura que fazemos do livro, o sentido é reconstruído; novas possibilidades surgem, infinitos caminhos, em um processo permanente de geração de sentido, eterno devir. Deparamos com uma multiplicidade de corpos e várias histórias que são narradas paralelamente, mas todas elas se esbarram e se perpassam, há vozes plurais na narrativa, que se alternam e misturam criando um painel panorâmico de costumes, pensamentos, questões sociais da época.
Andando com estranhos e outros recortes
Interessante perceber que, em Xavier e em Nelson Rodrigues, não encontramos, como já disse Luiz Costa Lima sobre a obra de Rubem Fonseca, em “O cão pop e a alegoria cobradora”, “o cacoete da oposição ‘essência/ aparência’” (LIMA, 1981, p. 145). O mundo, também de O mez da grippe, é o da superfície. Fragmentos de mundo “se entulham ante os olhos do leitor à espera de alguma forma de organização” (LIMA, 1982, p. 145). Na obra de Xavier observamos uma fermentação do próprio lixo da sociedade de consumo, isto é, em um primeiro momento, obras feitas de colagens e repetições. O lixo cotidiano apresenta-se como realidade bruta. “O único traço formal a orientar imediatamente o receptor consiste no deslocamento do lixo, que perde seu lugar no cotidiano natural e se revela como seu ponto de destaque e se amplia, seja por efeito deste destaque, seja pelo acúmulo do lixo” (LIMA, 1981, p. 148). Há, em Xavier, o deslocamento de recortes de notícias de revistas e jornais, propagandas etc. Por causa do deslocamento desses recortes, há uma ampliação dos clichês que faz o leitor obrigar-se a pensar em um corriqueiro que já era tão automatizado que nele já não se pensa. O mez da grippe faz com que o leitor viaje para muito além da página impressa; ele propicia uma reflexão sobre os dramas humanos. Afirma Costa Lima (1981, p. 154): “como o pop na literatura se sustenta no trabalho realizado sobre os clichês, sua eficácia dependerá da capacidade de converter o kitsch em desvendamento irônico ou grotesco, mas sempre crítico”. Em Anjo Negro há também uma “afirmação da externalidade” – retomando a expressão que Victor Hugo Adler Pereira ultilizou para analisar Doroteia, outra peça de Rodrigues –
que faz com que se rebatam no mundo exterior os dados sobre sua natureza psicológica ou moral. Reverte-se desse modo a perspectiva que opõe o avesso e o direito, o interior e o exterior; as máscaras utilizadas pelas personagens confundem-se com o próprio rosto (PEREIRA, 1994, p. 209).
Então, lançando mão da perspectiva de Pereira (1994), analisemos o caso de Ismael, que, de tanto se afirmar homem branco e desejar sê-lo, insere-se na pele alva que criou para si, em seu terno branco engomado, que é sua máscara e confunde-se com sua própria pele. Para não falar de Virgínia, que afirma insistentemente sua brancura; é ela que resgata Ismael de sua ficção, acusando-o de negro. Predomina, portanto, uma construção de rostidade baseada na externalidade, nos fatos visíveis. É por essa razão que Ismael cega Ana Maria, para que ela não possa vê-lo e, assim, mantenha-se sua ficção. Também por essa razão é que ele ergue os muros, pois predomina um “regime de verdade baseado na externalidade, nos fatos visíveis” (PEREIRA, 1994, p. 210). Por falar então em rostos, há, em O mez da grippe, um novelo deixado por Xavier para que nós leitores nos guiemos por seus labirintos. Logo na primeira página lemos: “Um homem eu caminho sozinho/ nesta cidade sem gente/ as gentes estão nas casas/ a grippe” (XAVIER, 1998, p. 13). Ao lado desses versos vemos um rosto, o mesmo que figura na capa (desenhada por Rones Dumke), antecipando a importância dessa voz na “novella” – como a obra é classificada por seu autor na capa do livro (assim como em Anjo Negro temos na capa “Tragédia em três atos / Peça mítica”). Reparemos como é dado destaque ao rosto nessa obra. O rosto da capa parece confiável, homem sério; pelos ombros percebe-se que é bem vestido, talvez bem nascido. Ao fundo, vemos uma rua curitibana e um céu não de nuvens, mas de... caveiras. É intrigante perceber que, embora estampa da catástrofe, o rosto estampado na edição de O mez da grippe não tem expressão marcada pela dor. A morte parece não o alcançar. O rosto é assustadoramente calmo. Ele escapa da morte no momento em que a dor parece estar ali, presentificada, deixando o leitor no limite da presença-ausente. A voz solitária do rosto de O mez da grippe permeia toda a história, do início ao fim. Trata-se de um poema erótico, em que o eu lírico conta sua aventura amorosa/sexual com uma mulher vitimada pela gripe. Tal como em Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, um homem se gaba de sua aventura. Ele é um ser invisível que vaga pela cidade e pelo livro, um ser sem corpo, um corpo ausente, aproveitando-se do caos instalado e de seus moribundos, tirando os derradeiros suspiros (de dor? de prazer?) de uma mulher que ele deseja momentaneamente, sem nenhuma preocupação social em relação à moléstia e ao destino da cidade. Ele só quer aproveitar seu instante de gozo. A imagem da donzela branca, pálida, assim como também Virgínia de Ismael, se repete nesse livro. A solidão e a fome sexual também. Essa voz solitária é um elo entre leitor e enredo, já que ele se vê em meio a tantas notícias e documentos públicos. Uma história começa a se desenvolver, resultando em intimidade e proximidade com o leitor. Se em Noite na taverna o narrador conta sua interessante e inusitada história a seus amigos, aqui não há ninguém, senão os leitores, para escutar a aventura do invisível e solitário eu lírico, revivendo, em sua mente, suas lembranças. No entanto, um verso, em especial, chama-nos a atenção: “ninguém me viu nem me verá” (XAVIER, 1981, p. 62). Por que a certeza de que ninguém poderá vê-lo? Mais ainda: por que a morte não pode tocá-lo? Ele ainda sublinha: “nestes dias de grippe”. Sim, ele caminha destemido e protegido (?) pelas ruas silenciosas de Curitiba de 1918. Seria ele imortal? Um vampiro, talvez? Tal como seu conterrâneo, escrito por Dalton Trevisan, O vampiro de Curitiba. Aqui, pelo menos no que diz respeito ao homem solitário e somente a ele, não se conhece a dor nem a morte. Com Xavier temos uma pluralidade de vozes, sem aprofundamento de personagens, não há grande identificação com nenhum. Narrador em primeira pessoa há apenas o poeta solitário, mas o grotesco que ele nos apresenta provoca uma desidentificação por fim. Xavier esconderia a dor e o pavor que a gripe espanhola provoca entre seus inúmeros recortes, fragmentos? Lembremos que, para Bataille, o sujeito “é falha, fenda e é a consciência da negatividade que o impulsiona para a superação dos seus limites, para a busca do êxtase no excesso que desvenda a identidade entre prazer e dor, na descoberta [...] da ‘alegria torturante’” (BATAILLE apud BORBA, 2005, p. 127). Devemos, ainda, ler o excesso, que nos ajuda não só a compreender o pensamento moderno como também a entender o fragmento, a presença- -ausente, as máscaras, as imagens que figuram tanto em Xavier quanto em Nelson Rodrigues. Para compreender tais questões, precisamos atentar para uma forte repressão, a rígida disciplina que impera nas duas obras em questão. Em seu livro Vigiar e punir, Michel Foucault escreveu um capítulo intitulado “Panoptismo”, que inicia descrevendo, a partir de um regulamento do fim do século XVII, o funcionamento de uma cidade dominada pela peste. Segundo ele, a inspeção era constante, em cada rua havia um síndico, pessoa responsável por manter a ordem; os habitantes eram impedidos de sair de suas casas, sob pena de morte para quem tentasse burlar o sistema. “Cada qual se prende a seu lugar. E, caso se mexa, corre perigo de vida, por contágio ou punição” (FOUCAULT, 2013a, p. 186).
A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os tipos individuais – é a utopia da cidade perfeitamente governada. (FOUCAULT, 2013a, p. 189)
O resultado de toda essa vigilância é a sociedade disciplinar, em que os indivíduos são medidos, controlados e corrigidos, fazendo funcionar os dispositivos disciplinares que a peste impunha. O mez da grippe exemplifica bem esse estado de peste, e, por consequência, de controle com que os governantes, segundo Foucault, sonhavam. Nele, primeiramente, o controle vem em forma de conselho. Por causa da peste, a gripe espanhola, a primeira medida é a publicação do seguinte cartaz:
CONSELHO
ACONSELHAMOS AOS HABITANTES DE CORITIBA QUE NÃO SE VISITEM, MESMO QUE NÃO HAJA MOLESTIA NAS CASAS QUE PRETENDEREM FREQUENTAR, ATÉ QUE TERMINE A EPIDEMIA NO RIO DE JANEIRO; BEM COMO QUE NÃO CONCORRAM AOS LOGARES ONDE HOUVER AGLOMERAÇÕES DE PESSOAS. SR. DR. TRAJANO REIS DIRECTOR DO SERVIÇO SANITÁRIO DO ESTADO 22/10/1918 (XAVIER, 1981, p. 14)
Em seguida, dois dias após a publicação do conselho do Sr. Dr. Trajano Reis, o controle disciplinar vem em forma mais agressiva:
DECRETO Nº 132
O PREFEITO MUNICIPAL DA CAPITAL, TENDO EM VISTA QUE AS DIRECTORIAS DE SERVIÇOS SANITARIOS DA CAPITAL DE SÃO PAULO E DESTE ESTADO, BEM COMO DA CAPITAL FEDERAL, ACONSELHAM INSISTENTEMENTE QUE SE EVITE AGGLOMERAÇÃO, PRINCIPALMENTE À NOITE, AFIM DE IMPEDIR A PROPAGAÇÃO DA “GRIPPE ESPANHOLA”, EPIDEMIA ORA REINANTE EM DIVERSAS CAPITAIS DO PAIZ. A peste! Ella não nos visitou ainda, não nos visitará. E, se subir a serra pela linha férrea ou pela estrada da Graciosa, não encontrará aqui ensachas, meio favoravel a sua propagação virulenta. (Sebastião Paraná – Commercio do Paraná).
RESOLVE, COMO MEDIDA PREVENTIVA CONTRA A INVASÃO DESSA EPIDEMIA, SUSPENDER O FUNCIONAMENTO DOS CINEMAS E OUTRAS CASAS DE DIVERSÕES DESTA CAPITAL. CURITYBA, 24 DE OUTUBRO DE 1918 (ASSIGNADO) – JOÃO ANTONIO XAVIER PREFEITO MUNICIPAL (XAVIER, 1981, p. 17)
O olhar é praticamente onipresente nessa cidade empesteada. As pessoas comentam, medem-se, controlam umas às outras. Há, por exemplo, uma Dona Lúcia em O mez da grippe que fala sobre variados assuntos, sabe um pouco de tudo o que acontece na cidade, faz suposições e, sobretudo, comenta. Ela é uma constante no livro.
Segundo Foucault, somos nós as engrenagens da máquina panóptica. Foucault ilustra com duas imagens a disciplina: uma é a cidade pestilenta em estado de sítio e a outra é o Panóptico de Bentham, figura arquitetural, uma construção em anel em que o centro é ocupado por uma torre de vigilância. “O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente” (FOUCAULT, 2013a, p. 190). Aqui temos justamente o oposto de esconder: a luz e o olhar captam melhor que a sombra, fazendo da visibilidade uma armadilha, vigilância constante. Para Bentham, o poder deve ser visível e inverificável. “Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo.” (FOUCAULT, 2013a, p. 191). Assim o poder é desindividualizado, já que qualquer um pode fazer o mecanismo funcionar.
Pouco importa, consequentemente, quem exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta do diretor, sua família, os que o cercam, seus amigos, suas visitas, até seus criados. Do mesmo modo que é indiferente o motivo que o anima: a curiosidade de um indiscreto, a malícia de uma criança, o apetite de saber de um filósofo que quer percorrer esse museu da natureza humana, ou a maldade daqueles que têm prazer em espionar e em punir. Quanto mais numerosos esses observadores anônimos e passageiros, tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado. O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder. (FOUCAULT, 2013a, p. 192)
Então, em O mez da grippe, Dona Lúcia funciona como um mecanismo panóptico, pois ela espiona tudo o que pode ao seu redor, todo o livro é permeado de seus comentários. A máquina é mobilizada pela curiosidade de uma mulher comum. O olhar de uma observadora ocasional, sua “curiosidade indiscreta”, tal como diz Foucault, é responsável por manter a vigilância e a consequente disciplina.
Se quanto maior o número de informações em relação aos indivíduos, maior também a possibilidade de controlar seus comportamentos, observamos que a sociedade disciplinar tem como importantes engrenagens também os jornais e revistas. Na história de Xavier, tais engrenagens panópticas são fundamentais para a construção de sua novella. O Diário da Tarde e o Commercio do Paraná definem as relações de poder com o dia a dia dos homens. Se em O mez da grippe encontramos desde a cidade pestilenta a engrenagens panópticas, em Anjo Negro deparamos com o coro das pretas descalças e os comentários das senhoras, ambos mecanismos panópticos; e a própria casa de Ismael, com seus altos muros e o quarto do casal localizado no segundo andar, logo após uma escada longa, representa a própria figura arquitetural, o Panóptico. Pela descrição nas rubricas de Rodrigues, o quarto parece estar localizado no centro da casa, num lugar de muita visibilidade; nele há duas camas, objetos cruciais do cenário. Importante sublinhar que a casa não tem teto “para que a noite possa entrar e possuir os moradores. Os muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro” (RODRIGUES, 2012, p. 7). Interessante perceber que Ismael, ao mesmo tempo que guardião de Virgínia, é também prisioneiro de seus muros, sofrendo “uma solidão sequestrada” (FOUCAULT, 2013a, p. 191). Já Virgínia é prisioneira de Ismael, prisioneira de seus muros intransponíveis. Espantada, ela fala para Ismael sobre sua solidão: “Esperava você! Só posso esperar você, sempre. Só você chega, só você parte. O mundo está reduzido a nós dois eu e você” (RODRIGUES, 2012, p. 16). Virgínia já está tão inserida no Panóptico que a sensação de ser observada a inquieta. Sobre o filho que ela teve com o marido, ela diz, feroz: “Tão parecido com você, como se fosse você que estivesse me espiando pelos olhos dele” (RODRIGUES, 2012, p. 18). Já não importa se ela estava sendo espionada de fato, a sensação de estar sendo já faz cumprir o objetivo do panóptico: ela mesma se espiona. Ela sente a presença de Ismael em todo lugar, nela mesma: “A transpiração dele está por toda a parte, apodrecendo nas paredes, no ar, nos lençóis, na cama, nos travesseiros, até na minha pele, nos meus seios. (aperta a cabeça entre as mãos) E nos meus cabelos, meu Deus!” (RODRIGUES, 2012, p. 30). Para Virgínia, nem uma fuga, nem mesmo a morte poderia libertá-la: “a transpiração dele está entranhada na minha carne, na minha alma” (RODRIGUES, 2012, p. 35). Tais palavras são dirigidas a Elias, o irmão branco e cego de Ismael. O cego, tal como o caminhante solitário de O mez da grippe, é aquele que vem de fora e atrapalha a ordem disciplinar. Ele é o elemento estranho à ordem, que transpõe os muros alheios e, contra a vontade do negro, instala-se em sua casa e tem uma relação sexual com a cunhada, cujo fruto é Ana Maria. A repressão estimula a transgressão. Em O mez da grippe, por não haver o contato por medo do contágio, há o fantasma, homem incorpóreo, que transgride a regra, a ordem disciplinar, o homem que enxerga a si mesmo como o soberano, aquele que tem o direito à vida do outro, exerce seu poder de morte estuprando a jovem delirante. Em História da sexualidade, Foucault analisa, entre outras coisas, o direito de vida e morte e a transição de uma sociedade simbólica do sangue para uma analítica da sexualidade.
Por muito tempo, o sangue constituiu um elemento importante nos mecanismos do poder, em suas manifestações e rituais. Para uma sociedade onde predominam os sistemas de aliança, a forma política do soberano, a diferenciação em ordens e castas, o valor das linhagens, para uma sociedade em que a fome, as epidemias e as violências tornam a morte iminente, o sangue constitui um dos valores essenciais; seu preço se deve, ao mesmo tempo, a seu papel instrumental (poder de derramar o sangue), a seu funcionamento na ordem dos signos (ter um certo sangue, ser do mesmo sangue, dispor-se a arriscar seu próprio sangue), a sua precariedade (fácil de derramar, sujeito a extinção, demasiadamente pronto a se misturar, suscetível de se corromper rapidamente) (FOUCAULT, 2013b, p. 160).
Se outrora vivemos a sociedade do sangue, hoje estamos em uma sociedade do sexo, isto é, da sexualidade. Os mecanismos de poder atuais se dirigem ao corpo e à manutenção da vida. Na contemporaneidade, é a sexualidade que se encontra ao lado da norma, ela não é reprimida, pois é aliada da vida, do saber, do sentido, das disciplinas e das regulamentações. Quanto ao sangue, esse é ligado à morte, à transgressão, à soberania. Foucault, para ilustrar a passagem da “sanguinidade” para a “sexualidade”, cita Sade, também lembrado, como já dito aqui, por Xavier em O mez da grippe. Tanto lá quanto aqui, o nome do marquês está ligado ao sangue, já que a sexualidade está vinculada, em sua obra, ao poder de soberania e aos velhos prestígios do sangue. O sexo em Sade não tem normas, regras, ele só conhece o poder ilimitado de sua própria lei, isto é, “tal exercício o conduz a ser somente uma pura questão de soberania única e nua: direito ilimitado da monstruosidade onipotente. O sangue absorveu o sexo” (FOUCAULT, 2013b, p. 162). Percebemos, então, que a repressão estimula a transgressão. Assim como o homem incorpóreo, que transgride o poder de vida e estupra a delirante moça na Curitiba pestilenta de Xavier, em Rodrigues deparamos com Ismael, que constrói seu casamento a partir do estupro de sua noiva, cuja prova cabal é ostentada em seu quarto, a cama desfeita. O sangue da virgem é derramado em seu quarto violado pelo médico, soberano. Os filhos que têm o sangue derramado pela mãe, Virgínia, morrem pelo crime de terem o sangue negro correndo nas veias. O sangue, em Anjo negro, é importante mecanismo de poder para instaurar a ordem disciplinar, que é quebrada pelo elemento estranho, Elias. Em entrevista ao repórter J. J. Ribeiro, do jornal O opinático, em 26 de julho de 1980, Nelson Rodrigues explica sua concepção de arte. Para ele, a canalhice é inerente ao homem, e a salvação para tal fato é assumir essa condição: “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez” (RODRIGUES, 1980). Sua arte provocava reações exacerbadas da plateia, pois expunha inconfessáveis perversões. Seu teatro era desagradável, suscitava perplexidades e, por isso, muitas peças foram vaiadas veementemente. Sobre a desaprovação, o dramaturgo reflete em entrevista concedida ao Ciclo de Teatro Brasileiro do Museu da Imagem e do Som:
[...] eu gosto muito de O Casamento e estou quase solitário, pois pouca gente gosta. O que é, aliás, extremamente vantajoso para mim, porque a obra de arte quando nasce, é preciso que ela encontre oposição, que desagrade, irrite. Eu acho isso normal, válido, necessário. Eu considero o elogio unânime, a consagração unânime, inteiramente comprometedores. Tem um rapaz aí, o Jorge de Andrade, dramaturgo brasileiro de um renome formidável, o único defeito que acho dele, cuja obra conheço toda, é que tira todos os prêmios, tudo o que escreve é premiado automaticamente. Ele é um premiado nato e hereditário. Eu pergunto se um artista, num meio pobre como o nosso, consegue agradar todo mundo, os despreparados e os preparados, não será um sintoma comprometedor. De forma que quando não gostam de minhas coisas ou quando há divisão, me dá esperança de que eu não tenha fracassado totalmente (RODRIGUES, 1967).
Para Rodrigues, a vaia era muito mais potente e poderosa do que a aprovação desmedida, uma vez que ela revela “algo de mais profundo, inexorável e vital” (RODRIGUES, 1969). Segundo ele, “a verdadeira apoteose é a vaia”. Então, em suas peças, temas polêmicos e tratados sem pudores eram os preferidos. O sangue, assim como em Sade, absorveu o sexo em Anjo Negro. É o que também anuncia Sade na epígrafe de O mez da grippe. Com a epidemia, que torna a morte evidente, o sangue, como afirma Foucault, constitui um dos valores essenciais da sociedade. Na Curitiba de 1918 de Xavier também há a morte, a transgressão e a soberania. Se a analítica da sexualidade e a simbólica do sangue a princípio pertencem a regimes de poder bem diferentes, eles “não se sucederam (nem tampouco esses próprios poderes) sem justaposições, interações ou ecos” (FOUCAULT, 2013b, p. 162). Observamos, enfim, que, desde o fim do século XIX, vivemos o niilismo. Caminhamos para a anulação das forças. As paixões individuais prevalecem, como provaram Ismael, Virgínia, Elias e o caminhante solitário de Curitiba. O coletivo se torna, muitas vezes, inviável, e tanto *Valêncio Xavier quanto Nelson Rodrigues o ilustram de forma singular, remetendo-nos ao esforço da literatura, da arte, de estruturar as crises do homem contemporâneo sob uma forma legível.
Referências Bibliográficas
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Outras Fontes
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Notas
* Valêncio Xavier, além de escritor, foi jornalista, historiador de cinema, cineasta, fotógrafo, cenógrafo, artista gráfico, assistente de direção artística, produtor, roteirista e diretor de curtas-metragens.