— Mas quem foi o patife? Disse ele impaciente.
— Mau, se vamos assim, não digo nada. Quem foi? Quer saber quem foi? Há de
ouvir sossegado. Foi o Rubião.
— O Rubião?
— Nunca imaginei tanto. Parecia-me acanhado e respeitoso; fica sabendo que
não é o hábito que faz o monge. De tantos homens que aqui vêm, e até rapazes solteiros
não ouvi nunca o menor dito. Olham para mim; naturalmente, porque não sou feia...
Para que estás andando assim de um lado para outro? Para, que não quero levantar a
voz...Bem, assim...Vamos ao caso. Não me fez declaração positiva...
— Ah! não? Acudiu vivamente o marido.
— Não, mas vem a dar na mesma.
E depois de contar o que se passara no jardim, desde que ali chegaram os dois,
até que o major apareceu:
— Foi só isso, concluiu; mas é bastante para ver que se ele não disse amor é
porque não lhe chegou a língua, mas chegou-lhe a mão, que me apertou os dedos... Só
isso, e é demais. Ainda bem que te não zangas; mas é preciso trancar-lhe a porta, — ou
de uma vez ou aos poucos; eu preferia logo, mas estou por tudo. Como achas melhor?
Mordendo o beiço inferior, Palha ficou a olhar para ela a modo de estúpido.
Sentou-se no canapé, calado. Considerava o negócio. Achava natural que as gentilezas
da esposa chegassem a cativar um homem, — e Rubião podia ser esse homem; mas
confiava tanto no Rubião, que o bilhete que Sofia mandara a este, acompanhando os
morangos, foi redigido por ele mesmo; a mulher limitou-se a copiá-lo, assiná-lo e
mandá-lo. Nunca, entretanto, lhe passou pela cabeça que o amigo chegasse a declarar
amor a alguém, menos ainda a Sofia, se é que era amor deveras; podia ser gracejo de
intimidade. Rubião olhava para ela muita vez, é certo; parece também que Sofia, em
algumas ocasiões, pagava os olhares com outros... Concessões de moça bonita! Mas,
enfim, contanto que lhe ficassem os olhos, podiam ir alguns raios deles. Não havia de
ter ciúmes do nervo óptico, ia pensando o marido. Sofia levantou-se, foi pôr o lenço
com os grampos em cima do piano, e deu uma olhada ao espelho para ver-se com a
trança caída. Quando voltou ao canapé, o marido pegou-lhe a mão, rindo:
— Parece-me que te amofinas mais do que o caso merecia. Comparar os olhos
de uma moça às estrelas, e as estrelas aos olhos, afinal de contas é coisa que até se pode
fazer à vista de todos, em família, e em prosa ou verso para o público. A culpa é de
quem tem olhos bonitos. Demais, apesar do que me contas, sabes que ele é ainda muito
matuto...
— Então o diabo também é matuto, porque ele pareceu-me nada menos que o
diabo. E pedir-me que a certa hora olhasse para o Cruzeiro, a fim de que as nossas almas
se encontrassem?
— Isso, sim, isso já cheira a namoro, concordou Palha; mas bem vês que é um
pedido de alma cândida. É assim que as moças falam aos quinze anos; é assim que
falam os tolos em todos os tempos, e os poetas também; mas ele nem é moça nem poeta.
— Creio que não; mas segurar-me nas mãos para reter-me no jardim?
Palha teve um calafrio; a idéia do contato das mãos e da força empregada para
reter a mulher é que o mortificava mais. Francamente, se pudesse era capaz de ir ter
com ele, de deitar-lhe as mãos ao gasnate. Outras idéias, porém, acudiram e dissiparam
o efeito da primeira; de modo que, cuidando Sofia havê-lo irritado, viu-o dar de ombros
com desprezo, e responder-lhe que efetivamente era um ato de grosseria.
— E depois, Sofia, que lembrança foi essa de convidá-lo a ir ver a lua, não me
dirás?
— Chamei Dona Tonica para ir conosco.
ao jardim. São coisas que acodem logo. Tu é que deste ocasião...
Sofia olhou para ele, contraindo as grossas sobrancelhas: ia responder, mas
calou-se. Palha continuou a desenvolver a mesma ordem de idéias; a culpa era dela, não
devia ter dado ocasião...
— Mas você mesmo não me tem dito que devemos tratá-lo com atenções
particulares? Seguramente que eu não iria ao jardim, se pudesse imaginar o que se
passou. Mas nunca esperei que um homem tão pacato, tão não sei como, se tirasse dos
seus cuidados para vir dizer-me coisas esquisitas...
— Pois daqui em diante evita a lua e o jardim, disse o marido, procurando sorrir.
— Mas, Cristiano, como queres tu que lhe fale a primeira vez que ele vier? Não
tenho cara para tanto; olha, o melhor de tudo é acabar com as relações.
Palha atravessou uma perna sobre a outra e começou a rufar no sapato. Durante
alguns segundos ficaram calados. Palha cuidava na proposta de acabar com as relações,
não que quisesse aceitá-la, mas não sabia como responder à mulher, que mostrava tanto
ressentimento, e se portava com tal dignidade. Era preciso nem desaprová-la, nem
aceitar a proposta, e não lhe acudiu nada. Levantou-se, meteu as mãos nas algibeiras das
calças, e depois de alguns passos, parou defronte de Sofia.
— Talvez nos estejamos a incomodar com um simples efeito de vinhos. Olha
que ele não mandou o seu quinhão ao vigário; cabeça fraca, um pouco de abalo, e
entornou o que tinha dentro... Sim, eu não nego que lhe possas ter causado certa
impressão, como tantas outras senhoras. Há dias foi a um baile no Catete, e voltou
encantado das senhoras que lá vira, de uma principalmente, a viúva Mendes
Sofia interrompeu-o:
— Por que é que não convidou essa beleza a ver o Cruzeiro?
— Não jantou lá, naturalmente, e não havia jardim nem lua. O que eu quero
dizer é que o nosso amigo não estaria em si. Talvez se ache agora arrependido do que
fez, envergonhado, sem saber como se há de explicar, ou se não explicará nada... É
muito possível até que se ausente...
— Era melhor.
— Se o não chamarmos, concluiu Palha.
— Mas para que chamá-lo?
— Sofia, disse-lhe o marido, sentando-se ao pé dela. Não quero entrar em
minudências; digo só que não permito que alguém te falte ao respeito...
Houve uma pequena pausa: Sofia olhava para ele, esperando.
— Não permito, e ai daquele que o fizesse, assim como ai de ti se o consentires;
sabes que sou de ferro, a este respeito, e que a certeza da tua amizade, — ou, vá logo
tudo, — do amor que me tens é que me tranqüiliza. Pois bem, nada me abala
relativamente ao Rubião. Crê que o Rubião é nosso amigo, devo-lhe obrigações.
— Alguns presentes, algumas jóias, camarotes no teatro, não são motivos para
que eu fite o Cruzeiro com ele.
— Prouvera a Deus que fosse só isso! suspirou o zangão.
— Que mais?
— Não entremos em minudências... Há outras coisas... Falaremos depois... Mas
fica certa que nada me faria recuar, se visse no que contaste alguma gravidade. Não há
nenhuma. O homem é um simplório.
— Não.
— Não?
Sofia levantou-se; também não queria entrar em minudências. O marido pegoulhe na mão, ela ficou de pé e calada. Palha, com a cabeça reclinada nas costas do sofá, olhava sorrindo, sem achar que dizer. Ao cabo de alguns minutos, ponderou a mulher
que era tarde, que ia mandar apagar tudo.
— Bem, tornou o Palha depois de breve silêncio; escrevo-lhe amanhã que não
ponha aqui os pés.
Olhou para a mulher esperando alguma recusa. Sofia coçava as sobrancelhas, e
não respondeu nada. Palha repetiu a solução; e pode ser que desta vez com sinceridade.
A mulher então com ar de tédio:
— Ora, Cristiano... Quem é que te pede cartas? Já estou arrependida de haver
falado nisto. Contei-te um ato de desrespeito, e disse que era melhor cortar as relações,
— aos poucos ou de uma vez.
— Mas como se hão de cortar as relações de uma vez?
— Fechar-lhe a porta, mas não digo tanto; basta, se queres, aos poucos.
Era uma concessão; Palha aceitou-a; mas imediatamente ficou sombrio, soltou a
mão da mulher, com um gesto de desespero. Depois, agarrando-a pela cintura, disse em
voz mais alta do que até então:
— Mas, meu amor, eu devo-lhe muito dinheiro.
Sofia tapou-lhe a boca e olhou assustada para o corredor.
— Está bom, disse, acabemos com isto. Verei como ele se comporta, e tratarei
de ser mais fria... Nesse caso, tu é que não deves mudar, para que não pareça que sabes
o que se deu. Verei o que posso fazer.
— Você sabe, apertos do negócio, algumas faltas... é preciso tapar um buraco
daqui, outro dali... o diabo! É por isso que... Mas riamos, meu bem; não vale nada.
Sabes que confio em ti.
— Vamos, que é tarde.
— Vamos, repetiu o Palha dando-lhe um beijo na face.
— Estou com muita dor de cabeça, murmurou ela. Creio que foi do sereno, ou
desta história... Estou com muita dor de cabeça.