— Chegaram tarde. Morangos? repetiu ele sem saber o que dizia.
— Não é preciso corar, meu caro amigo, disse-lhe rindo o Freitas, logo que o
criado saiu. Estas coisas acontecem a quem ama...
— A quem ama? repetiu Rubião corando deveras. Mas, pode ler a carta, veja...
Ia mostrá-la, recuou e meteu-a no bolso. Estava fora de si, meio confuso, meio
alegre; Carlos Maria deleitou-se em dizer-lhe que ele não podia encobrir que o mimo
era de alguma namorada. E não achava que repreender; o amor era lei universal: se era
alguma senhora casada, louvava-lhe a discrição...
— Mas pelo amor de Deus! interrompeu o anfitrião.
— Viúva? Estamos no mesmo caso, continuou Carlos Maria; a discrição aqui é
ainda um merecimento. O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado.
Eu, se fosse legislador, propunha que se queimassem todos os homens convencidos de
indiscrição nestas matérias; e haviam de ir para a fogueira, como os réus da Inquisição,
com a diferença que, em vez de sambenito, levariam uma capa de penas de papagaio.
Freitas não podia ter-se com riso e batia na mesa, à maneira de aplauso; Rubião,
meio enfiado, acudia que não era casada nem viúva...
— Solteira então? replicou o moço. Um casório em breve? Vá, que é tempo.
Morangos de noivado, continuou pegando alguns entre os dedos. Cheiram a alcova de
donzela e a latim de padre.
Rubião não sabia mais que dissesse; afinal tornou atrás e explicou-se; eram da
senhora de um seu amigo particular. Carlos Maria piscou o olho; Freitas interveio
dizendo que, agora, sim, senhor, estava explicado; mas que, a princípio, o mistério, o
arranjo da cestinha, o ar dos próprios morangos, — morangos adúlteros, disse ele, rindo,
— todas essas coisas davam ao negócio um aspecto imoral e pecaminoso; mas tudo
ficara acabado.
Tomaram em silêncio o café; depois passaram à sala. Rubião desfazia-se em
obséquios, mas preocupado. Corridos alguns minutos, estava satisfeito com a primeira
suposição dos dois convivas: a de um amor adúltero; achou até que se defendera com
demasiado calor. Uma vez que não dissesse o nome de ninguém, podia ter confessado
que era, em verdade, um negócio íntimo. Mas também podia acontecer que o próprio
calor da negativa deixasse alguma dúvida no ânimo dos dois, alguma suspeita... Aqui
sorriu consolado.
Carlos Maria consultou o relógio; eram duas horas, ia-se embora. Rubião
agradeceu-lhe muito e muito o obséquio e pediu-lhe que repetisse; podiam passar alguns
domingos assim em boa palestra amigável.
— Apoiado! bradou Freitas aproximando-se.
Tinha metido meia dúzia de charutos no bolso, e ao sair, disse ao ouvido do
Rubião:
— Cá vai a lembrança do costume; seis dias de delícias, uma delícia por dia.
— Leve mais.
— Não; virei buscá-los depois.
Rubião acompanhou-os ao portão de ferro. Quincas Borba, logo que ouviu
vozes, correu do fundo do jardim e veio saudá-los, particularmente ao senhor; fez festas
a Carlos Maria, quis lamber-lhe a mão. Rubião deu um pontapé no cachorro, que o fez
gritar e fugir. Afinal despediram-se todos.
— O senhor para onde vai? perguntou Carlos Maria ao Freitas.
Freitas calculou que ele iria a alguma visita para os lados de São Clemente, e
quis acompanhá-lo.
— Vou até o fim da praia, disse.
— Eu volto para trás, tornou o outro.
Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulo 32
QUEM é que manda isto? perguntou Rubião.
— Dona Sofia.
Rubião não conhecia a letra; era a primeira vez que ela lhe escrevia. Que podia
ser? Via-se-lhe a comoção no rosto e nos dedos. Enquanto ele abria a carta, Freitas
familiarmente descobria a cestinha: eram morangos. Rubião leu trêmulo estas linhas:
“Mando-lhe estas frutinhas para o almoço, se chegarem a tempo; e, por ordem
do Cristiano, fica intimado a vir jantar conosco, hoje, sem falta. Sua verdadeira amiga.
SOFIA”.
— Que frutas são? perguntou Rubião fechando a carta.
— Morangos.
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