Tudo coincide nas nossas vidas. O santo e eu passamos uma parte do tempo nos deleites
e na heresia, porque eu considero heresia tudo o que não é a minha doutrina de
Humanitas; ambos furtamos, ele, em pequeno, umas pêras de Cartago, eu, já rapaz, um
relógio do meu amigo Brás Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, ele
pensava, como eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no capítulo XVI,
livro VII das Confissões, com a diferença que, para ele, o mal é um desvio da vontade,
ilusão própria de um século atrasado, concessão ao erro, pois que o mal nem mesmo
existe, e só a primeira afirmação é verdadeira; todas as coisas são boas, omnia bonna, e
adeus.
“Adeus, ignaro. Não contes a ninguém o que te acabo de confiar, se não queres
perder as orelhas. Cala-te, guarda, e agradece a boa fortuna de ter por amigo um grande
homem, como eu, embora não me compreendas. Hás de compreender-me. Logo que
tornar a Barbacena, dar-te-ei em termos explicados, simples, adequados ao
entendimento de um asno, a verdadeira noção do grande homem. Adeus; lembranças ao
meu pobre Quincas Borba. Não esqueças de lhe dar leite; leite e banhos; adeus,
adeus...Teu do coração
QUINCAS BORBA”.
Rubião mal sustinha o papel nos dedos. Passados alguns segundos, advertiu que
podia ser um gracejo do amigo, e releu a carta; mas a segunda leitura confirmou a
primeira impressão. Não havia dúvida; estava doido. Pobre Quincas Borba! Assim, as
esquisitices, a freqüente alteração de humor, os ímpetos sem motivo, as ternuras sem
proporção, não eram mais que prenúncios da ruína total do cérebro. Morria antes de
morrer. Tão bom! Tão alegre! Tinha impertinências, é verdade; mas a doença explicavaas. Rubião enxugou os olhos, úmidos de comoção. Depois, veio a lembrança do possível
legado, e ainda mais o afligiu, por lhe mostrar que bom amigo ia perder.
Quis ainda uma vez ler a carta, agora devagar, analisando as palavras,
desconjuntando-as, para ver bem o sentido e descobrir se realmente era uma troça de
filósofo. Aquele modo de o descompor brincando, era conhecido; mas o resto
confirmava a suspeita do desastre. Já quase no fim, parou enfiado. Dar-se-ia que,
provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento, e perdidas as deixas?
Rubião teve uma vertigem. Estava ainda com a carta aberta nas mãos, quando viu
aparecer o doutor, que vinha por notícias do enfermo: o agente do correio dissera-lhe
haver chegado uma carta. Era aquela?
— É esta, mas...
— Tem alguma comunicação reservada...?
— Justamente, traz uma comunicação reservada, reservadíssima; negócios
pessoais. Dá licença?
Dizendo isto. Rubião meteu a carta no bolso; o médico saiu; ele respirou.
Escapara ao perigo de publicar tão grave documento, por onde se podia provar o estado
mental de Quincas Borba. Minutos depois, arrependeu-se, devia ter entregado a carta,
sentiu remorsos, pensou em mandá-la à casa do médico. Chamou por um escravo;
quando este acudiu, já ele mudara outra vez de idéia; considerou que era imprudência; o
doente viria em breve, — dali a dias, — perguntaria pela carta, argüi-lo-ia de indiscreto,
de delator... Remorsos fáceis, de pouca dura.
— Não quero nada, disse ao escravo. E outra vez pensou no legado. Calculou o
algarismo. Menos de dez contos, não. Compraria um pedaço de terra, uma casa,
cultivaria isto ou aquilo, ou lavraria ouro. O pior é se era menos, cinco contos... Cinco?
Era pouco; mas, enfim, talvez não passasse disso. Cinco que fossem, era um arranjo
menor, e antes menor que nada. Cinco contos... Pior seria se o testamento ficasse nulo.
Vá, cinco contos!
Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulo 10
SETE semanas depois, chegou a Barbacena esta carta, datada do Rio de Janeiro, toda do
punho do Quincas Borba:
“Meu caro senhor e amigo,
“Você há de ter estranhado o meu silêncio. Não lhe tenho escrito por certos
motivos particulares, etc. Voltarei breve; mas quero comunicar-lhe desde já um negócio
reservado, reservadíssimo.
“Quem sou eu, Rubião? Sou Santo Agostinho. Sei que há de sorrir, porque você
é um ignaro, Rubião; a nossa intimidade permitia-me dizer palavra mais crua, mas façolhe esta concessão, que é a última. Ignaro!
“Ouça, ignaro. Sou Santo Agostinho; descobri isto anteontem: ouça e cale-se.
Agora é Lei: Toda mulher tem direito a acompanhante maior de idade em consultas, exames e cirurgias
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