Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulo 9
HORAS depois, teve Rubião um pensamento horrível. Podiam crer que ele próprio
incitara o amigo à viagem, para o fim de o matar mais depressa, e entrar na posse do
legado, se é que realmente estava incluso no testamento. Sentiu remorsos. Por que não
empregou todas as forças, para contê-lo? Viu o cadáver do Quincas Borba, pálido,
hediondo, fitando nele um olhar vingativo; resolveu, se acaso o fatal desfecho se desse
em viagem, abrir mão do legado.
Pela sua parte o cão vivia farejando, ganindo, querendo fugir; não podia dormir
quieto, levantava-se muitas vezes, à noite, percorria a casa, e tornava ao seu canto. De
manhã, Rubião chamava-o à cama, e o cão acudia alegre; imaginava que era o próprio
dono; via depois que não era, mas aceitava as carícias, e fazia-lhe outras, como se
Rubião tivesse de levar as suas ao amigo, ou trazê-lo para ali. Demais, havia-se-lhe
afeiçoado também, e para ele era a ponte que o ligava à existência anterior. Não comeu
durante os primeiros dias. Suportando menos a sede, Rubião pôde alcançar que bebesse
leite; foi a única alimentação por algum tempo. Mais tarde, passava as horas, calado,
triste, enrolado em si mesmo, ou então com o corpo estendido e a cabeça entre as mãos.
Quando o médico voltou, ficou espantado da temeridade do doente; deviam tê-lo
impedido de sair; a morte era certa.
— Certa?
— Mais tarde ou mais cedo. Levou o tal cachorro?
— Não, senhor, está comigo; pediu que cuidasse dele, e chorou, olhe que chorou
que foi um nunca acabar. Verdade é, disse ainda Rubião para defender o enfermo,
verdade é que o cachorro merece a estima do dono; parece gente.
O médico tirou o largo chapéu de palha para concertar a fita; depois sorriu.
Gente? Com que então parecia gente? Rubião insistia, depois explicava; não era gente
como a outra gente, mas tinha coisas de sentimento, e até de juízo. Olhe, ia contar-lhe
uma...
— Não, homem, não, logo, logo, vou a um doente de erisipela... Se vierem
cartas dele, e não forem reservadas, desejo vê-las, ouviu? E lembranças ao cachorro,
concluiu saindo.
Algumas pessoas começaram a mofar do Rubião e da singular incumbência de
guardar um cão em vez de ser o cão que o guardasse a ele. Vinha a risota, choviam as
alcunhas. Em que havia de dar o professor! sentinela de cachorro! Rubião tinha medo da
opinião pública. Com efeito, parecia-lhe ridículo; fugia aos olhos estranhos, olhava com
fastio para o animal; dava-se ao diabo, arrenegava da vida. Não tivesse a esperança de
um legado, pequeno que fosse. Era impossível que lhe não deixasse uma lembrança.
Agora é Lei: Toda mulher tem direito a acompanhante maior de idade em consultas, exames e cirurgias
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