... OU, mais propriamente, capítulo em que o leitor, desorientado,— não pode combinar
as tristezas de Sofia com a anedota do cocheiro. E pergunta confuso: — Então a
entrevista da Rua da Harmonia, Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e
delinqüentes é tudo calúnia? Calúnia do leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro, que
não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anedota verdadeira. É o que terias
visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado, adverte bem que era inverossímil; que um
homem, indo a uma aventura daquelas, fizesse parar o tílburi diante da casa pactuada.
Seria pôr uma testemunha ao crime. Há entre o céu e a terra muitas mais ruas do que
sonha a tua filosofia,— ruas transversais, onde o tílburi podia ficar esperando.
— Bem; o cocheiro não soube compor. Mas que interesse tinha em inventar a
anedota?
Conduzira Rubião a uma casa, onde o nosso amigo ficou quase duas horas, sem
o despedir; viu-o sair, entrar no tílburi, descer logo e vir a pé, ordenando-lhe que o
acompanhasse. Concluiu que era ótimo freguês; mas, ainda assim não se lembrou de
inventar nada. Passou, porém, uma senhora com um menino, — a da Rua da Saúde, — e
Rubião quedou-se a olhar para ela com vistas de amor e melancolia. Aqui é que o
cocheiro o teve por lascivo, além de pródigo, e encomendou-lhe as suas prendas. Se
falou em Rua da Harmonia foi por sugestão do bairro donde vinham; e, se disse que
trouxera um moço da Rua dos Inválidos, é que naturalmente transportara de lá algum,
na véspera, — talvez o próprio Carlos Maria, — ou porque lá morasse, ou porque lá
tivesse a cocheira, — qualquer outra circunstância que lhe ajudou a invenção, como as
reminiscências do dia servem de matéria aos sonhos da noite. Nem todos os cocheiros
são imaginativos. Já é muito concertar farrapos da realidade.
Resta só a coincidência de morar na Rua da Harmonia uma das costureiras do
luto. Aqui, sim, parece um propósito do acaso. Mas a culpa é da costureira; não lhe
faltaria casa mais para o centro da cidade, se quisesse deixar a agulha e o marido. Ao
contrário disso, ama-os sobre todas as coisas deste mundo. Não era razão, para que eu
cortasse o episódio, ou interrompesse o livro.
CAPÍTULO CVII
DAS reflexões de Sofia é que não há que explicar. Todos tinham o pé na verdade. Era
certo e certíssimo que Carlos Maria não correspondera às primeiras esperanças, — nem
às segundas e terceiras, — porque as houve em quadras diversas, ainda que menos
verdes e bastas. Quanto à causa disso, vimos que Sofia, à míngua de uma, atribuiu-lhe
sucessivamente três. Não chegou a pensar em alguns amores que ele porventura
trouxesse e lhe tornassem insípidos quaisquer outros. Seria uma quarta causa, e talvez a
verdadeira.
CAPÍTULO CVIII
DURANTE alguns meses, Rubião deixou de ir ao Flamengo. Não foi resolução fácil de
cumprir. Custou-lhe muita hesitação, muito arrependimento; mais de uma vez chegou a
sair com o propósito de visitar Sofia e pedir-lhe perdão. De quê? Não sabia; mas queria
ser perdoado. Em todas as tentativas desse gênero, a lembrança de Carlos Maria fazia-o
recuar. De certo ponto em diante, foi o próprio lapso de tempo que o tolheu; era
esquisito aparecer lá um dia, como um triste filho pródigo, unicamente para suplicar o
calor dos belos olhos da dona da casa. Ia ao armazém, visitar o Palha; este, ao fim de cinco semanas, reprochou-lhe a ausência; e, passados dois meses, perguntou-lhe se era
formal propósito.
— Tenho tido muito que fazer, acudiu Rubião; estes negócios políticos tomam
todo o tempo a uma pessoa. Vou lá domingo.
Sofia aparelhou-se para recebê-lo. Espiaria a ocasião de lhe dizer o que era a
carta, jurando por todas as coisas santas, para que ele visse que a verdade não era contra
ela. Planos perdidos; Rubião não compareceu. Veio outro domingo, vieram outros
domingos... Não obstante, Sofia remeteu-lhe um dia a subscrição para as Alagoas; ele
assinou cinco contos de réis.
— É muito, disse-lhe o sócio, no armazém, quando ele lhe foi levar o papel.
— Não dou menos.
— Mas olhe que pode dar muito, sem dar tanto. Parece-lhe então que esta
subscrição é feita entre meia dúzia de pessoas? Anda nas mãos de muitas senhoras e de
alguns homens; está nos mostradores das lojas, na Praça do Comércio, etc. Assine
menos.
— Como, se está escrito?
— Deste 5 pode-se fazer muito bem um 3. Três contos já é uma boa assinatura.
Há maiores, mas são de pessoas obrigadas pelo cargo ou pelos milhões; o Bonfim. por
exemplo, assinou dez contos.
Rubião não pôde reter um risinho irônico; abanou a cabeça, e não recuou dos
cinco contos. Só emendaria, escrevendo o algarismo 1 atrás, — quinze contos, — mais
que o Bonfim.
— Seguramente, que pode dar cinco, dez e quinze contos, tornou o Palha: mas o
seu capital precisa cautelas, você está entrando muito por ele... Repare que já lhe rende
menos.
Palha era agora o depositário dos títulos de Rubião (ações, apólices, escrituras)
que estavam fechados na burra do armazém. Cobrava-lhe os juros, os dividendos e os
aluguéis de três casas, que lhe fizera comprar algum tempo antes, a vil preço, e que lhe
rendiam muito. Guardava também uma porção de moedas de ouro, porque Rubião tinha
a mania de as colecionar, para a contemplação. Conhecia mais que o dono, a soma total
dos bens, e assistia aos rombos feitos na caravela, sem temporal, mar de leite. Três
contos bastavam, insistiu ele; e provou a sinceridade pelo fato de ser justamente marido
da fundadora da comissão. Mas o Rubião não desistiu dos cinco; aproveitou a ocasião
para pedir-lhe mais dez, precisava de dez contos. Palha coçou a cabeça.
— Você desculpe, disse-lhe ao cabo de alguns instantes, mas para que os quer?
Não está certo que vai perdê-los, ou arriscá-los, ao menos?
Rubião riu da objeção.
— Se eu estivesse certo de que os perdia, não vinha buscá-los. Pode ser
arriscado, mas não é sem arriscar que se ganha. Preciso deles para um negócio, — quero
dizer, três negócios. Dois são empréstimos seguros, e não passam de um conto e
quinhentos. Os oito contos e quinhentos são para uma empresa. Por que abana a cabeça,
senão sabe de que se trata?
— Por isso mesmo. Se você me consultasse, se me dissesse que empresa e que
pessoas eram, eu veria logo se podia arriscar-se; e receio muito que nada preste, a não
ser o dinheiro que se perder. Lembra-se das ações daquela Companhia União dos
Capitais Honestos? Disse-lhe logo que este título era enfático, um modo de embair a
gente, e dar emprego a sujeitos necessitados. Você não quis crer, e caiu. As ações estão
por baixo, e já este semestre não há dividendos.
— Pois venda justamente essas ações; contento-me com o sólido. Ou então dême da caixa da nossa casa. Passo logo por aqui, se você quiser, — ou mande-me lá a
Botafogo. Caucione umas apólices, se lhe parecer melhor...
— Não, não faço nada; não dou os dez contos, atalhou fogosamente o Palha.
Basta de ceder a tudo; o meu dever é resistir. Empréstimos seguros? Que empréstimos
são esses? Não vê que lhe levam o dinheiro, e não lhe pagam as dívidas? Sujeitos que
vão ao ponto de jantar diariamente com o próprio credor, como um tal Carneiro que lá
tenho visto. Dos outros não sei se lhe devem também; é possível que sim. Vejo que é
demais. Falo-lhe por ser amigo; não dirá algum dia que não foi avisado em tempo. De
que há de viver, se estragar o que possui? A nossa casa pode cair.
— Não cai, acudiu o Rubião.
— Pode cair; tudo pode cair. Eu vi cair o banqueiro Souto, em 1864.
Rubião remoía os conselhos do sócio, não por serem bons nem prováveis, mas
por achar neles uma intenção maviosa, revestida de forma crua. Agradeceu-os de
coração, mas rejeitou-os; precisava dos dez contos. Podia ter mais tanto, dali em diante,
e afirmava-lhe que seria menos fácil. De resto, possuía de sobra, tinha dinheiro para dar
e vender...
— Para vender só, emendou o Palha.
E, depois de um instante:
— Bem, agora é tarde, amanhã levo-lhe os dez contos. E por que os não há de ir
buscar lá à nossa casa ao Flamengo? Que mal lhe fizemos nós? Ou que lhe fizeram elas?
porque a zanga parece ser com elas, visto que o vejo aqui algumas vezes. Que foi, para
castigá-las? concluiu rindo.
Rubião desviou os olhos do sócio, cuja palavra lhe parecia afiada de ironia, —
como de pessoa que soubesse tudo, e risse dele. Quando lhos tornou, viu o mesmo
semblante interrogativo, e respondeu:
— Não me fizeram nada; lá irei amanhã à noite.
— Vá jantar.
— Jantar, não posso, tenho uns amigos em casa; vou de noite. E querendo rir:
Não as castigue, que não me fizeram nada.
— Alguém o possui, refletiu Palha logo que ele saiu; alguém, por inveja às
nossas relações... Também pode ser que Sofia lhe fizesse alguma para arredá-lo de
casa...
Rubião assomou outra vez à porta; não tivera tempo de chegar à esquina.
Voltava para dizer que, precisando do dinheiro cedo, viria buscá-lo ao armazém; de
noite iria então visitá-los. Precisava do dinheiro até às duas horas da tarde.
CAPÍTULO CIX
NESSA noite, Rubião sonhou com Sofia e Maria Benedita. Viu-as num grande terreiro,
apenas vestidas de saia, costas inteiramente despidas; o marido de Sofia, armado de um
azorrague de cinco pontas de couro, rematando em bicos de ferro, castigava-as
despiedadamente. Elas gritavam, pediam misericórdia, torciam-se, alagadas em sangue,
as carnes caíam-lhes aos bocados. Agora, por que razão Sofia era a imperatriz Eugênia,
e Maria Benedita uma aia sua, é o que não sei dizer com exatidão. “São sonhos, sonhos,
Penseroso!” exclamava um personagem do nosso Álvares de Azevedo. Mas eu prefiro a
reflexão do velho Polonius, acabando de ouvir uma fala tresloucada de Hamlet:
“Desvario embora, lá tem seu método.” Também há método aqui, nessa mistura de
Sofia e Eugênia; e ainda há método no que se lhe seguiu, e que parece mais
extravagante.
her as vítimas. Urna delas, Sofia, aceitou um lugar na carruagem aberta que
esperava pelo Rubião, e lá foram a galope, ela garrida e sã, ele glorioso e dominador. Os
cavalos, que eram dois à saída, eram daí a pouco, oito, quatro belas parelhas. Ruas e
janelas cheias de gente, flores chovendo em cima deles, aclamações... Rubião sentiu que
era o imperador Luís Napoleão; o cachorro ia no carro aos pés de Sofia...
Tudo acabou sem fim, nem fracasso. Rubião abriu os olhos; talvez alguma pulga
o mordeu; qualquer coisa: “Sonhos, sonhos, Penseroso!” Ainda agora prefiro o dito de
Polonius: “Desvario embora, lá tem seu método!”
CAPÍTULO CX
RUBIÃO fez os dois empréstimos e o negócio. O negócio era uma Empresa
Melhoradora dos Embarques e Desembarques no porto do Rio de Janeiro. Um dos
empréstimos tinha por fim pagar certa conta atrasada de papel da .Atalaia, dívida
urgente. A folha estava ameaçada de parar.
— Perfeitamente, disse Camacho, quando Rubião lhe foi levar o dinheiro à casa.
Muito obrigado. Veja você como, por uma miséria desta ordem, podia emudecer o
nosso órgão. São os espinhos naturais da carreira. O povo não está educado; não
reconhece, não apóia os que trabalham por ele, os que descem à arena todos os dias em
defesa das liberdades constitucionais. Imagine, que de momento, não dispúnhamos deste
dinheiro, tudo estava perdido, cada um ia para os seus negócios, e os princípios ficavam
sem o seu leal expositor.
— Nunca! protestou Rubião.
— Tem razão; redobraremos de esforços. A Atalaia será como o Anteu da
fábula. De cada vez que cair, erguer-se-á com mais vida.
Dito isto, Camacho mirou o maço de notas. Um conto e duzentos, não?
perguntou; e meteu-o no bolso do fraque. Continuou a dizer que estavam seguros agora,
a folha ia de vento em popa. Tinha certas reformas materiais em vista; foi ainda mais
longe.
— Precisamos desenvolver o programa, dar um empurrão aos correligionários,
atacá-los, se for preciso...
— Como?
— Ora, como? atacando. Atacar é um modo de dizer; corrigir. É evidente que o
órgão do partido está afrouxando. Chamo órgão do partido, porque a nossa folha é órgão
das idéias do partido; compreende a diferença?
— Compreendo.
— Vai afrouxando, continuou Camacho apertando um charuto entre os dedos,
antes de o acender; nós precisamos de acentuar os princípios, mas francamente,
nobremente, dizendo a verdade. Creia que os chefes precisam ouvi-la a seus próprios
amigos e aderentes. Nunca rejeitei a conciliação dos partidos, pugnei por ela; e a idéia
fundamental de Atalaia foi a princípio um terreno neutro. Mas conciliação não é jogo de
empulha. Para lhe dar um exemplo, na minha província a gente dos Pinheiros tem o
apoio do governo, unicamente para me deslocar; e os meus correligionários da Corte,
em vez de a combater, visto que o governo lhe dá força, que pensa que fazem? Dão
também apoio aos Pinheiros.
— Têm ao menos alguma influência os Pinheiros?
— Nenhuma, respondeu Camacho fechando violentamente a caixa de fósforos
que ia abrir. Há um réu de polícia entre eles, e há outro que até foi aprendiz de barbeiro.
Matriculou-se, é verdade, na Faculdade do Recife, creio que em 1855, por morte do padrinho que lhe deixou alguma coisa, mas tal é o escândalo da carreira desse homem
que, logo depois de receber o diploma de bacharel, entrou na assembléia provincial. É
uma besta; é tão bacharel como eu sou papa.
Entenderam-se sobre as modificações políticas da folha. Camacho lembrou ao
Rubião que a candidatura deste naufragara por causa justamente da oposição dos chefes.
De alguns, emendou logo. Rubião concordou; assim lho tinha dito o amigo em tempo, e
a lembrança avivou o ressentimento do desastre. Podia, devia estar na câmara. Os tais é
que o não quiseram; mas haviam de ver, pensava. Rubião; tinham de amargar o mal
feito. Deputado, senador, ministro, vê-lo-iam tudo, com olhos tortos e espantados. A
cabeça de nosso amigo, tanto que o outro lhe pôs a faísca, foi ardendo de si mesma, não
por ódio, nem inveja, mas de ambição ingênua, de cordial certeza, visão antecipada e
deslumbrante das grandezas. Camacho estimou achá-lo de acordo.
— A nossa gente é de igual opinião, disse ele. Creio que não faz mal uma
pequena ameaça aos amigos.
Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo em que advertia o partido da conveniência
de não ceder às perfídias do poder, apoiando em algumas províncias certa gente
corrupta e sem valor. Eis aqui a conclusão:
“Os partidos devem ser unidos e disciplinados. Há quem pretenda (mirabile
dictu!) que essa disciplina e união não podem ir ao ponto de rejeitar os benefícios que
caem das mãos dos adversários. Risum teneatis! Quem pode proferir tal blasfêmia sem
que lhe tremam as carnes? Mas suponhamos que assim seja, que a oposição possa, uma
ou outra vez, fechar os olhos aos desmandos do governo, à postergação das leis, aos
excessos da autoridade, à perversidade e aos sofismas. Quid inde? Tais casos, — aliás,
raros, — só podiam ser admitidos quando favorecessem os elementos bons, não os
maus. Cada partido tem os seus díscolos e sicofantas. É interesse dos nossos adversários
ver-nos afrouxar, a troco da animação dada à parte corrupta do partido. Esta é a verdade;
negá-lo é provocar-nos à guerra intestina, isto é, à dilaceração da alma nacional... Mas,
não, as idéias não morrem; elas são o lábaro da justiça. Os vendilhões serão expulsos do
templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos,
locais e passageiros a vitória indefectível dos princípios. Tudo que não for isto ter-nos-á
contra si. Alea jacta est.”