MAS não há serenidade total que corte uma polegada sequer às abas do tempo, quando
a pessoa não tem maneira de o fazer mais curto. Ao contrário, a ânsia de ir ao
Flamengo, à noite, vinha tornar as horas mais arrastadas. Era cedo, cedo para tudo, para
ir à Rua do Ouvidor, para voltar a Botafogo. O Doutor Camacho estava em Vassouras
defendendo um réu no júri. Não havia divertimento algum público, festa nem sermão.
Nada. Rubião, profundamente aborrecido, trocava as pernas, à toa, lendo as tabuletas,
ou detendo-se ao simples incidente de um atropelo de carros. Em Minas, não se
aborrecia tanto, por quê? Não achou solução ao enigma, uma vez que o Rio de Janeiro
tinha mais em que se distrair, e que o distraía deveras; mas havia aqui horas de um tédio
mortal.
Felizmente, há um deus para os enojados. Acudiu à memória de Rubião que o
Freitas, — aquele Freitas tão alegre — estava gravemente enfermo; Rubião chamou um
tílburi e foi visitá-lo à Praia Formosa, onde morava. Gastou ali perto de duas horas,
conversando com o doente; este adormeceu, ele despediu-se da mãe, — um caco de
velha, — e à porta antes de sair:
— A senhora há de ter tido seus apertos de dinheiro, disse Rubião; e, vendo-a
morder o beiço e baixar os olhos: Não se envergonhe; necessidade aflige, mas não
envergonha. Eu o que queria era que a senhora aceitasse alguma coisa, que lhe vou
deixar para acudir à despesa; pagará um dia, se puder...
Tinha aberto a carteira, tirou seis notas de vinte mil-réis, fez um bolo de todas
elas, e deixou-lho na mão. Abriu a porta e saiu. A velha, espantada, nem teve alma para
agradecer; só ao rodar do tílburi, é que correu à janela, mas já não podia ver o benfeitor.
CAPÍTULO LXXXVI
TUDO aquilo saiu tão espontaneamente ao Rubião, que ele só teve tempo de refletir,
depois que o tílburi começou a andar. Parece que chegou a levantar a cortina do postigo;
a velha ia entrando; viu-lhe ainda o resto do braço. Rubião sentiu toda a vantagem de
não estar inválido. Reclinou-se, desabafou o peito com um grande suspiro e olhou para a
praia; logo depois inclinou-se. Na vinda, mal pudera vê-la.
— Vossa Senhoria está gostando, disse-lhe o cocheiro contente com o bom
freguês que tinha.
— Acho bonito.
— Nunca veio aqui?
— Creio que vim, há muitos anos, quando estive no Rio de Janeiro pela primeira
vez. Que eu sou de Minas... Pare, moço.
O cocheiro fez parar o cavalo: Rubião desceu, e disse-lhe que fosse andando
devagar.
Em verdade, era curioso. Aquelas grandes braçadas de mato, brotando do lodo, e
postas ali ao pé da cara do Rubião, davam-lhe vontade de ir ter com elas. Tão perto da
rua! Rubião nem sentia o sol. Esquecera o doente e a mãe do doente. Assim sim, —
dizia ele consigo, — fosse o mar todo uma coisa daquele feitio, alastrado de terras e
verduras, e valia a pena navegar. Para lá daquilo ficava a Praia dos Lázaros e a de São
Cristóvão. Uma pernada apenas.
— Praia Formosa, murmurou ele; bem posto nome.
Entretanto, a praia ia mudando de aspecto. Dobrava para o Saco do Alferes,
vinham as casas edificadas do lado do mar. De quando em quando, não eram casas, mas
canoas, encalhadas no lodo, ou em terra, fundo para o ar. Ao pé de uma dessas canoas,
viu meninos brincando, em camisa e descalços, em volta de um homem que estava de
barriga para baixo. Todos eles riam; um ria mais que os outros porque não acabava de
fixar o pé do homem no chão. Era um pequerrucho de três anos; agarrava-se-lhe à perna
e ia-a estendendo até nivelá-la com o chão, mas o homem fazia um gesto e levava pelo
ar o pé e o menino.
Rubião deteve-se alguns minutos diante daquilo. O sujeito, vendo-se objeto de
atenção, redobrou o esforço no brinco; perdeu a naturalidade. Os outros meninos mais
idosos detiveram-se a olhar espantados. Mas Rubião não distinguia nada; via tudo
confusamente. Foi ainda a pé durante largo tempo; passou o Saco do Alferes, passou a
Gamboa, parou diante do Cemitério dos Ingleses, com os seus velhos sepulcros trepados
pelo morro, e afinal chegou à Saúde. Viu ruas esguias, outras em ladeira, casas
apinhadas ao longe e no alto dos morros, becos, muita casa antiga, algumas do tempo do
rei, comidas, gretadas, estripadas, o caio encardido e a vida lá dentro. E tudo isso lhe
dava uma sensação de nostalgia... Nostalgia do farrapo, da vida escassa, acalcanhada e
sem vexame. Mas durou pouco; o feiticeiro que andava nele transformou tudo. Era tão
bom não ser pobre!
CAPÍTULO LXXXVII
RUBIÃO chegou ao fim da Rua da Saúde. Ia à toa com os olhos espraiados e
desatentos. Rente com ele, passou uma mulher, não bonita, nem feia, singela sem
elegância, antes pobre que remediada, mas fresca de feições; contaria vinte e cinco anos,
e levava pela mão um menino. Este atrapalhou-se nas pernas do Rubião.
— Que é isso, nhonhô? disse a moça, puxando o filho pelo braço.
Rubião inclinara-se ao pequeno, para ampará-lo.
— Muito obrigada, desculpe, disse ela sorrindo; e cumprimentou-o.
Rubião tirou o chapéu, sorriu também. A visão da família apoderou-se dele outra
vez. — “Case-se e diga que eu o engano!” — Parou, olhou para trás, viu ir a moça,
tique-tique, e o menino ao pé dela, amiudando as perninhas, para ajustar-se ao passo da
mãe. Depois, foi andando lentamente, pensando em várias mulheres que podia escolher
muito bem, para executar, a quatro mãos, a sonata conjugal, música séria, regular e
clássica. Chegou a pensar na filha do major, que apenas sabia umas velhas mazurcas. De
repente, ouvia a guitarra do pecado, tangida pelos dedos de Sofia, que o deliciavam, que
o estonteavam, a um tempo; e lá se ia toda a castidade do plano anterior. Teimava
novamente, forcejava por trocar as composições; pensava na moça da Saúde, modos tão
bonitos, criancinha pela mão...
CAPÍTULO LXXXVIII
A vista do tílburi fez-lhe lembrar o doente da Praia Formosa.
— Pobre Freitas! suspirou.
Logo depois, pensou também no dinheiro que deixara à mãe do enfermo, e
achou que fizera bem. Talvez a idéia de haver dado uma ou duas notas demais esvoaçou
por alguns segundos no cérebro do nosso amigo; ele a sacudiu depressa, não sem se
zangar consigo, e, para esquecê-la de todo, exclamou ainda em vez alta:
— Boa velha! pobre velha!
CAPÍTULO LXXXIX
COMO a idéia tornasse ainda, Rubião atirou-se depressa ao tílburi, entrou e sentou-se,
falando ao cocheiro, para fugir a si mesmo.
— Dei uma caminhada grande; mas, sim senhor, isto aqui é bonito, é curioso;
aquelas praias, aquelas ruas, é diferente dos outros bairros. Gosto disto. Hei de vir mais
vezes.
O cocheiro sorriu para si de um modo tão particular, que o nosso Rubião
desconfiou. Não atinava com o motivo do riso; talvez lhe houvesse escapado alguma
palavra que no Rio de Janeiro tivesse mau sentido; mas repetiu-as e não descobriu nada;
eram todas usadas e comuns. Entretanto, o cocheiro sorria ainda, com o mesmo ar do
princípio, meio subserviente, meio velhaco. Rubião esteve a pique de o interrogar, mas
recuou a tempo. Foi o outro que reatou a conversação.
— Vossa Senhoria está então muito admirado do bairro? disse ele. Há de deixar
que eu não acredite, sem se zangar, que não é para ofender a Vossa Senhoria, nem eu
sou pessoa que agrave um freguês sério; mas não creio que esteja admirado do bairro.
— Por quê? aventurou Rubião.
O cocheiro meneou a cabeça para um e outro lado, e insistiu em não crer, — não
porque o bairro não fosse digno de apreço, mas porque naturalmente já o conhecia
muito. Rubião ratificou a primeira afirmação; tinha ido ali muitos anos antes, quando
esteve da outra vez no Rio de Janeiro, mas não se lembrava de nada. E o cocheiro ria; e,
à medida que o freguês ia demonstrando, ele ia ficando mais familiar, fazia negativas
com o nariz, com os beiços, com a mão.
— Já sei disso, concluiu ele. Nem eu sou homem que não veja as coisas. Vossa
Senhoria pensa que não vi a maneira por que olhou para aquela moça que passou ainda
agora? Basta só isso para mostrar que Vossa Senhoria tem faro e gosta.
Rubião, lisonjeado, sorriu um pouco; mas emendou-se logo:
— Que moça?
— Que lhe dizia eu? redargüiu o homem. Vossa Senhoria é fino, e faz muito
bem; mas eu sou pessoa de segredo, e cá o carro tem servido para estas idas e vindas.
Não há muitos dias trouxe um belo moço, muito bem vestido, pessoa fina, — já se sabe,
negócio de rabo de saia.
— Mas eu... interrompeu Rubião.
Mal podia conter-se; a suposição agradava-lhe; o cocheiro cuidou que ele
dissimulava a culpa.
— Olhe, eu bem digo, — continuou ele; tal qual o moço da Rua dos Inválidos.
Vossa Senhoria pode ficar descansado; não digo nada; cá estou para outras. Então, quer
que eu acredite que é por gosto que uma pessoa, que tem carro às ordens, vem andando
a pé desde a Praia Formosa até aqui? Vossa Senhoria veio ao lugar marcado, a pessoa
não veio...
— Que pessoa? Fui ver um doente, um amigo que está para morrer.
— Tal qual o moço da Rua dos Inválidos, repetiu o homem. Esse veio ver uma
costureira da mulher, como se fosse casado...
— Da Rua dos Inválidos? perguntou Rubião, que só agora atentava no nome da
rua.
— Não digo mais nada, acudiu o cocheiro. Era da Rua dos Inválidos, bonito, um
moço de bigodes e olhos grandes, muito grandes. Oh! eu também se fosse mulher, era
capaz de apaixonar-me por ele... Ela não sei donde era, nem diria ainda que soubesse;
sei só que era um peixão.
E vendo que o freguês o escutava com os olhos arregalados:
— Oh! Vossa Senhoria não imagina! Era de boa altura, bonito corpo, a cara
meia coberta por um véu, coisa papafina. A gente, por ser pobre, não deixa de apreciar o
que é bom.
— Mas... como foi? murmurou Rubião.
— Ora, como foi! Ele chegou como Vossa Senhoria, no meu tílburi, apeou-se e
entrou numa casa de rótula; disse que ia ver a costureira da mulher. Como eu não lhe
perguntei nada, e ele tinha vindo calado toda a viagem, muito cheio de si, compreendi
logo a finura. Agora, podia ser verdade, porque é mesmo uma costureira que mora na
casa da Rua da Harmonia...
— Da Harmonia? repetiu Rubião.
— Mau! Vossa Senhoria está arrancando o meu segredo; mudemos de assunto;
não digo mais nada.
Rubião olhava atônito para o homem, que de fato se calou por dois ou três
minutos, mas logo depois continuou:
— Também não há muita coisa mais. O moço entrou; eu fiquei esperando; meia
hora depois vi um vulto de mulher, ao longe, e desconfiei logo que ia para lá. Meu dito,
meu feito; ela veio, veio, devagar, olhando disfarçadamente para todos os lados; ao
passar pela casa, não lhe digo nada, nem precisou bater; foi como nas mágicas, a rótula
abriu-se por si, e ela enfiou por ali dentro. Se eu já conheço isto. Em que é que Vossa
Senhoria quer que a gente ganhe algum cobrinho mais? O preço da tabela mal dá para
comer; é preciso fazer estes ganchos.