Rubião naturalmente ficou impressionado. Durante alguns segundos esteve
como agora à escolha de um tílburi. Forças íntimas ofereciam-lhe o seu cavalo, umas
que voltasse para trás ou descesse para ir aos seus negócios, — outras que fosse ver
enforcar o preto. Era tão raro ver um enforcado! Senhor, em vinte minutos está tudo
findo! — Senhor, vamos tratar de outras coisas! E o nosso homem fechou os olhos, e
deixou-se ir ao acaso. O acaso, em vez de levá-lo pela Rua do Ouvidor abaixo até à da
Quitanda, torceu-lhe o caminho pela dos Ourives, atrás do préstito. Não iria ver a
execução, pensou ele; era só a marcha do réu, a cara do carrasco, as cerimônias... Não
queria ver a execução. De quando em quando, parava tudo, chegava gente às portas e
janelas, o oficial de justiça relia a sentença. Depois, o préstito continuava a andar com a
mesma solenidade. Os curiosos iam narrando o crime, — um assassinato em MataPorcos. O assassino era dado como homem frio e feroz. A notícia dessas qualidades fez
bem a Rubião; deu-lhe força para encarar o réu, sem delíquios de piedade. Não era já a
cara do crime; o terror dissimulava a perversidade. Sem reparar, deu consigo no largo da
execução. Já ali havia bastante gente. Com a que vinha formou-se multidão compacta.
— Voltemos, disse ele consigo.
Verdade é que o réu ainda não subira à forca; não o matariam de relance; sempre
era tempo de fugir. E, dado que ficasse, por que não fecharia os olhos, como fez certo
Alípio diante do espetáculo das feras? Note-se bem que Rubião nada sabia desse tal
rapaz antigo; ignorava, não só que fechara os olhos, mas também que os abrira logo
depois, devagarinho e curioso...
Eis o réu que sobe à forca. Passou pela turba um frêmito. O carrasco pôs mãos à
obra. Foi aqui que o pé direito de Rubião descreveu uma curva na direção exterior,
obedecendo a um sentimento de regresso; mas o esquerdo, tomado de sentimento
contrário deixou-se estar; lutaram alguns instantes... Olhe o meu cavalo! — Veja, é um
rico animal! — Não seja mau! — Não seja medroso! Rubião esteve assim alguns
segundos, os que bastaram para que chegasse o momento fatal. Todos os olhos fixaramse no mesmo ponto, como os dele. Rubião não podia entender que bicho era que lhe
mordia as entranhas, nem que mãos de ferro lhe pegavam da alma e a retinham ali. O
instante fatal foi realmente um instante; o réu esperneou, contraiu-se, o algoz cavalgouo de um modo airoso e destro; passou pela multidão um rumor grande. Rubião deu um
grito, e não viu mais nada.
Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulo 47
RUBIÃO não era filósofo; a comparação que ali fez entre os seus cuidados e os do
maltrapilho apenas lhe trouxe à alma uma sombra de inveja. Aquele malandro não pensa
em nada, disse ele consigo; daqui a pouco está dormindo, enquanto eu...
— Meu amo, entre, que o animal é bom. Vamos lá em quinze minutos.
Os outros dois cocheiros diziam-lhe a mesma coisa, quase por iguais palavras:
— Meu amo, venha aqui e verá...
— Olhe o meu cavalinho...
— Faça favor; são treze minutos de viagem. Em treze minutos está em casa.
Rubião, depois de hesitar ainda, deu consigo dentro do tílburi que lhe ficava à
mão, e mandou tocar para Botafogo. Então lembrou-se de um velho episódio esquecido,
ou foi o episódio que lhe deu inconscientemente a solução. Uma ou outra coisa, Rubião
guiou o pensamento, com o fim de escapar às sensações daquela noite.
Lá iam longos anos. Ele era então muito rapaz, e pobre. Um dia, às oito horas da
manhã, saiu de casa, que era na Rua do Cano (Sete de Setembro), entrou no Largo de
São Francisco de Paula; dali desceu pela Rua do Ouvidor. Ia com alguns cuidados;
morava em casa de um amigo, que começava a tratá-lo como hóspede de três dias, e ele
já o era de quatro semanas. Dizem que os de três dias cheiram mal; muito antes disso
cheiram mal os defuntos, ao menos nestes climas quentes... Certo é que o nosso Rubião,
singelo como um bom mineiro, mas desconfiado como um paulista, ia cheio de
cuidados, pensando em retirar-se quanto antes. Pode crer-se que desde que saiu de casa,
entrou no Largo de São Francisco, e desceu a Rua do Ouvidor até à dos Ourives, não viu
nem ouviu coisa nenhuma.
Na esquina da Rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de pessoas, e um
préstito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz alta um papel, a
sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados, curiosos. Mas, as principais figuras
eram dois pretos. Um deles, mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a
cor fula, e levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas mãos de
outro preto. Este outro olhava para a frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com
galhardia a curiosidade pública. Lido o papel, o préstito seguiu pela Rua dos Ourives
adiante; vinha do aljube e ia para o Largo do Moura.
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