VOU agarrá-la antes de chegar ao Catete, disse Rubião subindo pela Rua do Príncipe.
Calculou que a costureira teria ido por ali. Ao longe, descobriu alguns vultos de
um e outro lado; um deles pareceu-lhe de mulher. Há de ser ela, pensou; e picou o
passo. Entende-se naturalmente que levava a cabeça atordoada: Rua da Harmonia,
costureira, uma dama, e todas as rótulas abertas. Não admira que, fora de si, e andando
rápido, desse um encontrão em certo homem que ia devagar, cabisbaixo. Nem lhe pediu
desculpa; alargou o passo, vendo que a mulher também andava depressa.
CAPÍTULO XCVI
E o homem empurrado, apenas sentiu o empurrão. Caminhava absorto, mas contente,
espraiando a alma, desabafado de cuidados e fastios. Era o diretor de banco, o que
acabava de fazer a visita de pêsames ao Palha. Sentiu o empurrão, e não se zangou;
consertou o sobretudo e a alma, e lá foi andando tranqüilamente.
Convém dizer, para explicar a indiferença do homem, que ele tivera, no espaço
de uma hora comoções opostas. Fora primeiro à casa de um ministro de Estado, tratar do
requerimento de um irmão. O ministro, que acabava de jantar, fumava calado e pacífico.
O diretor expôs atrapalhadamente o negócio, tornando atrás, saltando adiante, ligando e
desligando as frases. Mal sentado, para não perder a linha do respeito, trazia na boca um
sorriso constante e venerador; e curvava-se, pedia desculpas. O ministro fez algumas
perguntas; ele, animado, deu respostas longas, extremamente longas, e acabou
entregando um memorial. Depois ergueu-se, agradeceu, apertou a mão ao ministro, este
acompanhou-o até à varanda. Aí fez o diretor duas cortesias, — uma em cheio, antes de
descer a escada, — outra em vão, já embaixo, no jardim; em vez do ministro, viu só a
porta de vidro fosco, e na varanda, pendente do teto, o lampião de gás. Enterrou o
chapéu, e saiu. Saiu humilhado, vexado de si mesmo. Não era o negócio que o afligia,
mas os cumprimentos que fez, as desculpas que pediu, as atitudes subalternas, um
rosário de atos sem proveito. Foi assim que chegou à casa do Palha.
Em dez minutos, tinha a alma espanada e restituída a si mesma, tais foram as
mesuras do dono da casa, os apoiados de cabeça, e um raio de sorriso perene, não
contando oferecimentos de chá e charutos. O diretor fez-se então severo, superior, frio,
poucas palavras; chegou a arregaçar com desdém a venta esquerda, a propósito de uma
idéia do Palha, que a recolheu logo, concordando que era absurda. Copiou do ministro o
gesto lento. Saindo, não foram dele as cortesias, mas do dono da casa.
Estava outro, quando chegou à rua; daí o andar sossegado e satisfeito, o espraiar
da alma devolvida a si própria, e a indiferença com que recebeu o embate do Rubião. Lá
se ia a memória dos seus rapapés; agora o que ele rumina saborosamente são os rapapés
de Cristiano Palha.
CAPÍTULO XCVII
QUANDO Rubião chegou à esquina do Catete, a costureira conversava com um
homem, que a esperara, e que lhe deu logo depois o braço; viu-os ir ambos,
conjugalmente, para o lado da Glória. Casados? amigos? Perderam-se na primeira dobra
da rua, enquanto Rubião ficou parado, recordando as palavras do cocheiro, a rótula, o
moço de bigodes, a senhora de bonito corpo, a Rua da Harmonia... Rua da Harmonia;
ela dissera Rua da Harmonia.
Deitou-se tarde. Parte do tempo esteve à janela, matutando, charuto aceso, sem acabar de explicar aquele negócio. Dondon era por força a terceira nos amores; devia
ser, tinha olhos sonsos, pensava Rubião.
— Amanhã vou lá, saio mais cedo, vou esperá-la na esquina; dou-lhe cem milréis, duzentos, quinhentos; ela há de confessar-me tudo.
Quando cansou, olhou para o céu; lá estava o Cruzeiro... Oh! se ela houvesse
consentido em fitar o Cruzeiro! Outra teria sido a vida de ambos. A constelação pareceu
confirmar este modo de sentir, fulgurando extraordinariamente; e Rubião quedou-se a
mirá-la, a compor mil cenas lindas e namoradas, — a viver do que podia ter sido.
Quando a alma se fartou de amores nunca desabrochados, acudiu à mente do nosso
amigo que o Cruzeiro não era só uma constelação, era também uma ordem honorífica.
Daqui passou a outra série de pensamentos. Achou genial a idéia de fazer do Cruzeiro
uma distinção nacional e privilegiada. Já tinha visto a venera ao peito de alguns
servidores públicos. Era bela, mas principalmente rara.
— Tanto melhor! disse ele em voz alta.
Era perto de duas horas quando saiu da janela; fechou-a e foi meter-se na cama,
dormiu logo; acordou ao som da voz do criado espanhol, que lhe trazia um bilhete.
CAPÍTULO XCVIII
RUBIÃO sentou-se na cama, estremunhado, não reparou na letra do sobrescrito; abriu o
bilhete, e leu:
“Ficamos ontem muito inquietos, depois que o senhor saiu. Cristiano não vai lá
agora, porque acordou tarde, e tem de ir ao inspetor da alfândega. Mande-nos dizer se
passou melhor. Lembranças de Maria Benedita e da
Sua amiga e obrigada
SOFIA.”
— Diga ao portador que espere.
Daí a vinte minutos a resposta chegou à mão do moleque que trouxera o bilhete;
foi o próprio Rubião que lha entregou, perguntando-lhe como tinham passado as
senhoras. Soube que bem; deu-lhe dez tostões, recomendando-lhe que, quando
precisasse algum dinheiro, viesse procurá-lo. O rapaz, espantado, arregalou os olhos e
prometeu tudo.
— Adeus! disse-lhe benevolamente o Rubião.
E ficou parado, enquanto o portador descia os poucos degraus. Indo este a meio
do jardim, ouviu bradar:
— Espera!
Voltou para acudir ao chamado; Rubião já tinha descido os degraus; foram um
ao outro, e pararam, calados. Correram dois minutos, sem que Rubião abrisse a boca.
Afinal, perguntou alguma coisa, — se as senhoras tinham passado bem. Era a mesma
pergunta de há pouco; o criado confirmou a resposta. Depois, Rubião deixou vagar os
olhos pelo jardim. As rosas e as margaridas estavam lindas e frescas, alguns cravos
desabrochavam, outras flores e folhagens, begônias e trepadeiras, todo esse pequeno
mundo parecia estender os olhos invisíveis ao Rubião, e bradar-lhe:
— Alma sem vigor, acaba de uma vez com o teu desejo; colhe-nos, manda-nos...
— Bem, disse finalmente Rubião; lembranças às senhoras. Não se esqueça do
que lhe disse; precisando de mim, venha cá. Guardou a carta?
— Está aqui, sim, senhor.
— E melhor metê-la no bolso, mas olhe não machuque.
— Não machuco, não, senhor, retorquiu o criado acomodando a carta.
CAPÍTULO XCIX
SAIU o moleque; Rubião ficou passeando no jardim, com as mãos nos bolsos do
chambre, e os olhos nas flores. Que tinha que mandasse algumas? Era um presente
natural, e até de obrigação para pagar uma cortesia com outra. Fez mal; correu ao
portão, mas já o moleque ia longe; Rubião advertiu que o luto excluía as lembranças
alegres, e ficou tranqüilo.
Senão quando, ao recomeçar o passeio, viu uma carta ao pé de um canteiro.
Inclinou-se, apanhou-a, leu o sobrescrito... A letra era dela, tão-só dela; comparou-a
com a do bilhete que recebera; era a mesma. O nome era o do diabo: Carlos Maria.
— Sim, foi isso, pensou ele ao cabo de alguns minutos, o portador da minha
carta trouxe esta, e deixou-a cair.
E, mirando a carta, de um e outro lado, perguntava-lhe pelo conteúdo. Oh! o
conteúdo! Que iria ali escrito dentro daquele papel homicida? Perversidade, luxúria,
toda a linguagem do mal e da demência, resumidas em duas ou três linhas. Ergueu-a
ante os olhos, para ver se podia ler alguma coisa; o papel era grosso; não se podia ler
nada. Ao lembrar-se que o portador, dando por falta da carta, voltaria a procurá-la,
meteu-a atrapalhadamente no bolso, e correu para dentro.
Em casa, tirou-a e mirou-a outra vez; as mãos hesitavam reproduzindo o estado
da consciência. Se abrisse a carta, saberia tudo. Lida e queimada, ninguém mais
conheceria o texto, ao passo que ele teria acabado por uma vez com essa terrível
fascinação que o fazia penar ao pé daquele abismo de opróbrios... Não sou eu que o
digo, é ele; ele é que junta esse e outros nomes ruins, ele é que pára no meio da sala,
com os olhos no tapete, em cuja trama figura um turco indolente, cachimbo na boca,
olhando para o Bósforo... Devia ser o Bósforo.
— Infernal carta! rosnou surdamente, repetindo uma frase ouvida no teatro,
semanas antes; frase esquecida, que vinha agora exprimir a analogia moral do
espetáculo e do espectador.
Teve ímpetos de abri-la; era só um gesto, um ato; ninguém o via, os quadros da
parede estavam quietos, indiferentes, o turco do tapete continuava a fumar e a olhar para
o Bósforo. Contudo, sentia escrúpulos; a carta, posto que achada no jardim, não lhe
pertencia, mas ao outro. Era como se fosse um embrulho de dinheiro; não devolveria o
dinheiro ao dono? Despeitado, meteu-a outra vez no bolso. Entre mandar a carta ao
destinatário e entregá-la a Sofia, adotou afinal o segundo alvitre; tinha a vantagem de
poder ler a verdade nas feições da própria autora.
— Digo-lhe que achei uma carta, assim e assim, pensou Rubião; e antes de lhe
dar a carta, vejo bem na cara dela, se fica aterrada ou não. Talvez empalideça; então
ameaço-a, falo-lhe da Rua da Harmonia; juro-lhe que estou disposto a gastar trezentos,
oitocentos, mil contos, dois mil, trinta mil contos, se tanto for preciso para estrangular o
infame...