— Seguramente, afirmou o Palha.
Já os olhos deste não brilhavam, refletiam profundamente. Rubião metera-se por
um mato cerrado, onde lhe cantavam todos os passarinhos da fortuna; regalava-se em
falar da herança; confessou que não sabia ainda a soma total, mas podia calcular por
longe...
— O melhor é não calcular nada, atalhou Cristiano. Nunca será menos de cem
contos?
— Upa!
— Pois daí para cima, é esperar calado. E, outra coisa...
— Creio que não menos de trezentos...
— Outra coisa. Não repita o seu caso a pessoas estranhas. Agradeço-lhe a
confiança que lhe mereci, mas não se exponha ao primeiro encontro. Discrição e caras
serviçais nem sempre andam juntas.
Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulo 21
NA estação de Vassouras, entraram no trem Sofia e o marido, Cristiano de Almeida e
Palha. Este era um rapagão de trinta e dois anos; ela ia entre vinte e sete e vinte e oito.
Vieram sentar-se nos dois bancos fronteiros ao do Rubião, acomodaram as cestinhas e
embrulhos de lembranças que traziam de Vassouras, onde tinham ido passar uma
semana; abotoaram o guarda-pó, trocaram algumas palavras, baixo.
Depois que o trem continuou a andar, foi que o Palha reparou na pessoa do
Rubião, cujo rosto, entre tanta gente carrancuda ou aborrecida, era o único plácido e
satisfeito. Cristiano foi o primeiro que travou conversa, dizendo-lhe que as viagens de
estrada de ferro cansavam muito, ao que Rubião respondeu que sim; para quem estava
acostumado a costa de burro, acrescentou, a estrada de ferro cansava e não tinha graça;
não se podia negar, porém, que era um progresso.
— De certo, concordou o Palha. Progresso e grande.
— O senhor é lavrador?
— Não, senhor.
— Mora na cidade?
— De Vassouras? Não; viemos aqui passar uma semana. Moro mesmo na Corte.
Não teria jeito para lavrador, conquanto ache que é uma posição boa e honrada.
Da lavoura passaram ao gado, à escravatura e à política. Cristiano Palha
maldisse o governo, que introduzira na fala do trono uma palavra relativa à propriedade
servil; mas, com grande espanto seu, Rubião não acudiu à indignação. Era plano deste
vender os escravos que o testador lhe deixara, exceto um pajem; se alguma coisa
perdesse, o resto da herança cobriria o desfalque. Demais, a fala do trono, que ele
também lera, mandava respeitar a propriedade atual. Que lhe importavam escravos
futuros, se os não compraria? O pajem ia ser forro, logo que ele entrasse na posse dos
bens. Palha desconversou, e passou à política, às câmaras, à guerra do Paraguai, tudo
assuntos gerais, ao que Rubião atendia, mais ou menos. Sofia escutava apenas; movia
tão-somente os olhos, que sabia bonitos, fitando-os ora no marido, ora no interlocutor.
— Vai ficar na Corte ou volta para Barbacena? perguntou o Palha no fim de
vinte minutos de conversação.
— Meu desejo é ficar, e fico mesmo, acudiu Rubião; estou cansado da província;
quero gozar a vida. Pode ser até que vá à Europa, mas não sei ainda.
Os olhos do Palha brilharam instantaneamente.
— Faz muito bem; eu faria o mesmo, se pudesse; por agora, não posso.
Provavelmente, já lá foi?
— Nunca fui. É por isso que tive cá umas idéias, ao sair de Barbacena; ora
adeus! é preciso a gente tirar a morrinha do corpo. Não sei ainda quando será; mas hei de...
— Tem razão. Dizem que há lá muita coisa esplêndida; não admira, são mais
velhos que nós; mas lá chegaremos; e há coisas em que estamos a par deles, e até acima.
A nossa Corte, não digo que possa competir com Paris ou Londres, mas é bonita, verá...
— Já vi.
— Já?
— Há muitos anos.
— Há de achá-la melhor; tem feito progressos rápidos. Depois, quando for à
Europa...
— A senhora já foi à Europa? interrompeu Rubião, dirigindo-se a Sofia.
— Não, senhor.
— Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher, acudiu Cristiano. Rubião
inclinou-se respeitosamente; e, voltando-se para e marido, disse-lhe sorrindo:
— Mas não me apresenta a mim? Palha sorriu também; entendeu que nenhum
deles sabia o nome um do outro, e deu-se pressa em dizer o seu.
— Cristiano de Almeida e Palha.
— Pedro Rubião de Alvarenga; mas Rubião é como todos me chamam.
A troca dos nomes pô-los ainda mais a gosto. Sofia não interveio, porém, na
conversa; afrouxou a rédea aos olhos, que se deixaram ir ao sabor de si mesmos. Rubião
falava, risonho, e ouvia atento as palavras do Palha, agradecido da amizade com que o
tratava um moço que ele nunca tinha visto. Chegou a dizer-lhe que bem podiam ir
juntos à Europa.
— Oh! eu não poderei ir nestes primeiros anos, respondeu o Palha.
— Também não digo já; eu não irei tão cedo. O desejo que me deu, quando saí
de Barbacena, foi simples desejo sem prazo; irei, não há dúvida, mas lá para diante,
quando Deus quiser.
Palha acudiu, rápido:
— Ah! eu, quando digo que só daqui a anos, acrescento também que a vontade de
Deus pode ordenar o contrário. Quem sabe se daqui a meses? A Divina Providência é
que manda o melhor.
O gesto que acompanhou estas palavras era convicto e pio; mas, nem
Sofia o viu (olhava para os pés), nem o próprio Rubião escutou as últimas palavras. O
nosso amigo estava morto por dizer a causa que o trazia à capital. Tinha a boca cheia da
confidência, prestes a entorná-la no ouvido do companheiro de viagem, — e só por um
resto de escrúpulo, já frouxo, é que ainda a retinha. E por que retê-la, senão era crime, e
ia ser caso público?
— Tenho de cuidar primeiro de um inventário, murmurou finalmente.
— O senhor seu pai?
— Não; um amigo. Um grande amigo, que se lembrou de fazer-me seu herdeiro
universal.
— Ah!
— Universal. Creia que há amigos neste mundo; como aquele, poucos. Aquilo
era ouro. E que cabeça! que inteligência! que instrução! Viveu doente os últimos
tempos, donde lhe veio alguma impertinência, alguns caprichos. Sabe, não? rico e
doente, sem família, tinha naturalmente exigências... Mas ouro puro, ouro de lei. Aquilo
quando estimava, estimava de uma vez. Éramos amigos, e não me disse nada. Vai um
dia, quando morreu, abriu-se o testamento, e achei-me com tudo. É verdade. Herdeiro
universal! Olhe que não há uma deixa no testamento para outra pessoa. Também não
tinha parentes. O único parente que teria, seria eu, se ele chegasse a casar com uma irmã
minha, que morreu, coitada! Fiquei só amigo; mas, ele soube ser amigo, não acha?
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