Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulo 15
TAL era a cláusula. Rubião achou-a natural, posto que só tivesse pensamento para
cuidar na herança. Espreitara uma deixa, e sai-lhe do testamento a massa toda dos bens.
Não podia acabar de crer; foi preciso que lhe apegassem muito as mãos, com força, — a
força dos parabéns, — para não supor que era mentira.
— Sim, senhor, lavre um tento, dizia-lhe o dono da farmácia que ministrara os
remédios ao Quincas Borba.
Herdeiro já era muito; mas universal... Esta palavra inchava as bochechas à
herança. Herdeiro de tudo, nem uma colherinha menos. E quanto seria tudo? ia ele
pensando. Casas, apólices, ações, escravos, roupa, louça, alguns quadros, que ele teria
na Corte, porque era homem de muito gosto, tratava de coisas de arte com grande saber.
E livros? devia ter muitos livros, citava muitos deles. Mas em quanto andaria tudo? Cem
contos? Talvez duzentos. Era possível; trezentos mesmo não havia que admirar.
Trezentos contos! Trezentos! E o Rubião tinha ímpetos de dançar na rua. Depois
aquietava-se; duzentos que fossem, ou cem, era um sonho que Deus Nosso Senhor lhe
dava, mas um sonho comprido, para não acabar mais.
A lembrança do cachorro pôde tomar pé no torvelinho de pensamentos que iam
pela cabeça do nosso homem. Rubião achava que a cláusula era natural, mas
desnecessária, porque ele e o cão eram dois amigos, e nada mais certo que ficarem
juntos, para recordar o terceiro amigo, o extinto, o autor da felicidade de ambos. Havia,
sem dúvida, umas particularidades na cláusula, uma história de urna, e não sabia que
mais; mas tudo se havia de cumprir, ainda que o céu viesse abaixo... Não, com a ajuda
de Deus, emendava ele. Bom cachorro! excelente cachorro!
Rubião não esquecia que muitas vezes tentara enriquecer com empresas que
morreram em flor. Supôs-se naquele tempo um desgraçado, um caipora, quando a
verdade era que “mais vale quem Deus ajuda, do que quem cedo madruga.” Tanto não
era impossível enriquecer, que estava rico.
— Impossível, o quê? exclamou em voz alta. Impossível é a Deus pecar. Deus
não falta a quem promete.
Ia assim, descendo e subindo as ruas da cidade, sem guiar para casa, sem plano,
com o sangue aos pulos. De repente, surgiu-lhe este grave problema: — se iria viver no
Rio de Janeiro, ou se ficaria em Barbacena. Sentia cócegas de ficar, de brilhar onde
escurecia, de quebrar a castanha na boca aos que antes faziam pouco caso dele, e
principalmente aos que se riam da amizade do Quincas Borba. Mas logo depois, vinha a imagem do Rio de Janeiro, que ele conhecia, com os seus feitiços, movimentos, teatros
em toda a parte, moças bonitas, “vestidas à francesa". Resolveu que era melhor, podia
subir muitas e muitas vezes à cidade natal.
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