Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulo 6
PARA entenderes bem o que é a morte e a vida, basta contar-te como morreu minha
avó.
— Como foi?
— Senta-te.
Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior interesse possível, enquanto Quincas
Borba continuava a andar, recolhendo as idéias.
— Foi no Rio de Janeiro, começou ele, defronte da Capela Imperial, que era
então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro, para ir ter à
cadeirinha, que a esperava no Largo do Paço. Gente como formiga. O povo queria ver
entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em que minha avó
saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar-se uma das
bestas de uma sege; a besta disparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minha avó
caiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima. Foi levada em braços para
uma botica da Rua Direita, veio um sangrador, mas era tarde; tinha a cabeça rachada,
uma perna e o ombro partidos, era toda sangue; expirou minutos depois.
— Foi realmente uma desgraça, disse Rubião.
— Não.
— Não?
— Ouve o resto. Aqui está como se tinha passado o caso. O dono da sege estava
no adro, e tinha fome, muita fome, porque era tarde, e almoçara cedo e pouco. Dali pôde
fazer sinal ao cocheiro; este fustigou as mulas para ir buscar o patrão. A sege no meio
do caminho achou um obstáculo e derribou-o; esse obstáculo era minha avó. O primeiro
ato dessa série de atos foi um movimento de conservação: Humanitas tinha fome. Se em
vez de minha avó, fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o
fato era o mesmo; Humanitas precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse
um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos
necrológios; mas o fundo subsistia. O universo ainda não parou por lhe faltarem alguns
poemas mortos em flor na cabeça de um varão ilustre ou obscuro; mas Humanitas (e isto
importa, antes de tudo) Humanitas precisa comer.
Rubião escutava, com a alma nos olhos, sinceramente desejoso de entender; mas
não dava pela necessidade a que o amigo atribuía a morte da avó. Seguramente o dono
da sege, por muito tarde que chegasse à casa, não morria de fome, ao passo que a boa
senhora morreu de verdade, e para sempre. Explicou-lhe, como pôde, essas dúvidas, e
acabou perguntando-lhe:
— E que Humanitas é esse?
— Hurnanitas é o princípio. Mas não, não digo nada, tu não és capaz de entender
isto, meu caro Rubião; falemos de outra coisa.
— Diga sempre.
Quincas Borba, que não deixara de andar, parou alguns instantes.
— Queres ser meu discípulo?
— Quero.
— Bem, irás entendendo aos poucos a minha filosofia; no dia em que a houveres
penetrado inteiramente, ah! nesse dia terás o maior prazer da vida, porque não há vinho
que embriague como a verdade. Crê-me, o Humanitismo é o remate das coisas; e eu,
que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas
Borba está olhando para mim? Não é ele, é Humanitas...
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— Mas que Humanitas é esse?
— Humanitas é o principio. Há nas coisas todas certa substância recôndita e
idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível, —
ou, para usar a linguagem do grande Camões:
Uma verdade que nas coisas anda,
Que mora no visíbil e invisíbil.
Pois essa sustância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas.
Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais
entendendo?
— Pouco; mas, ainda assim, como é que a morte de sua avó...
— Não há morte. O encontro de ditas expansões, ou a expansão de duas formas,
pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida,
porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não
atinge o princípio universal e comum. Daí o carácter conservador e benéfico da guerra.
Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para
alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra
vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as
batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz,
nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e
recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas
públicas e todos demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais
demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora
e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa
canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao
vencedor, as batatas.
— Mas a opinião do exterminado?
— Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca
viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo,
e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.
— Bem; a opinião da bolha...
— Bolha não tem opinião. Aparentemente, há nada mais contristador que uma
dessas terríveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é
um benefício, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de resistência,
como porque dá lugar à observação, à descoberta da droga curativa. A higiene é filha de
podridões seculares; devemo-la a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde,
tudo é ganho. Repito. as bolhas ficam na água. Vês este livro? É Dom Quixote. Se eu
destruir o meu exemplar, não elimino a obra, que continua eterna nos exemplares
subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela, belamente eterna, como este
mundo divino e supradivino.
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