Quincas Borba - Machado de Assis - Fuvest 2021 - Capítulo 5
RUBIÃO achou um rival no coração de Quincas Borba, — um cão, um bonito cão,
meio tamanho, pelo cor de chumbo, malhado de preto. Quincas Borba levava-o para
toda parte, dormiam no mesmo quarto. De manhã, era o cão que acordava o senhor,
trepando ao leito, onde trocavam as primeiras saudações. Uma das extravagâncias do
dono foi dar-lhe o seu próprio nome; mas, explicava-o por dois motivos, um doutrinário,
outro particular.
— Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o princípio da vida e
reside em toda a parte, existe também no cão, e este pode assim receber um nome de
gente, seja cristão ou muçulmano...
— Bem, mas por que não lhe deu antes o nome de Bernardo, disse Rubião com o
pensamento em um rival político da localidade.
— Esse agora é o motivo particular. Se eu morrer antes, como presumo,
sobreviverei no nome do meu bom cachorro. Ris-te, não?
Rubião fez um gesto negativo.
— Pois devias rir, meu querido. Porque a imortalidade é o meu lote ou o meu
dote, ou como melhor nome haja. Viverei perpetuamente no meu grande livro. Os que,
porém, não souberem ler, chamarão Quincas Borba ao cachorro, e...
O cão, ouvindo o nome, correu à cama. Quincas Borba, comovido, olhou para
Quincas Borba:
— Meu pobre amigo! meu bom amigo! meu único amigo!
— Único!
— Desculpa-me, tu também o és, bem sei, e agradeço-te muito; mas a um doente
perdoa-se tudo. Talvez esteja começando o meu delírio. Deixa ver o espelho.
Rubião deu-lhe o espelho. O doente contemplou por alguns segundos a cara
magra, o olhar febril, com que descobria os subúrbios da morte, para onde caminhava a
passo lento, mas seguro. Depois, com um sorriso pálido e irônico:
— Tudo o que está cá fora corresponde ao que sinto cá dentro; vou morrer, meu
caro Rubião... Não gesticules, vou morrer. E que é morrer, para ficares assim
espantado?
— Sei, sei que você tem umas filosofias... Mas falemos do jantar; que há de ser
hoje?
Quincas Borba sentou-se na cama, deixando pender as pernas, cuja
extraordinária magreza se adivinhava por fora das calças.
— Que é? que quer? acudiu Rubião.
— Nada, respondeu o enfermo sorrindo. Umas filosofias! Com que desdém me
dizes isso! Repete, anda, quero ouvir outra vez. Umas filosofias!
— Mas não é por desdém... Pois eu tenho capacidade para desdenhar de
filosofias? Digo só que você pode crer que a morte não vale nada, porque terá razões,
princípios...
Quincas Borba procurou com os pés as chinelas; Rubião chegou-lhas; ele
calçou-as e pôs-se a andar para esticar as pernas. Afagou o cão e acendeu um cigarro.
Rubião quis que se agasalhasse, e trouxe-lhe um fraque, um colete, um chambre, um
capote, à escolha. Quincas Borba recusou-os com um gesto. Tinha outro ar agora; os
olhos metidos para dentro viam pensar o cérebro. Depois de muitos passos, parou, por alguns segundos, diante de Rubião.
Agora é Lei: Toda mulher tem direito a acompanhante maior de idade em consultas, exames e cirurgias
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