O sol ainda não apontava no céu, mas o calor deixava todos cansados e suarentos.
Os tocos de pau que à noite gemiam na fogueira aquecendo conversa de terreiro, agora eram torrões queimados como carvão.
As vozes emudeceram. No silêncio, a aflição.
***
Mazé saiu da casa simples de barro. Esticou os braços ossudos e pegou a enxada encostada no cocho vazio.
Seguida de perto pelo cachorro Sarnento, Mazé pisou a terra rachada, calcinada pelo sol em busca do lago seco.
Seus pés descalços e curtidos, já fizeram aquele caminho incontáveis vezes. Cada vez mais trazia menos o de beber. Com sorte, um pouco de água lamacenta mataria a sede dos filhos pequenos e cozeria um tantinho de feijão de corda, último da colheita retrasada. Derradeiro daquela manhã. Junho já chegara e chuva que era bom, nada.
Mazé chegou ao lago seco. Fincou a enxada no solo duro. Não achou água. Seus olhos arderam de aflição. Tentou chorar. Não pôde. Estava tão seca quanto aquela terra rachada.
Voltou para junto dos filhos. Ainda bem que tinha farinha. Olhou para os pés, cerrou o cenho. Deu por falta de Sarnento.
Decerto estava correndo atrás do cabrito abandonado deixado pelo boiadeiro.
Boiadeiro, cheio de terras, foi com a família para a Zona da Mata. Lá não tinha seca. Tinha muita comida. Tinha água.
Em época de secura era assim: quem tinha como fugir, fugia; quem não tinha, rezava.
Mazé deu o de comer para os meninos. Deixaria o restante para Sarnento. Ela era mãe, não precisava comer.
Chamou o filho mais velho de seis anos para cuidar do mais novo, de dois, enquanto saía à cata de xiquexique. No caminho acharia Sarnento e que sabe alguma caça.
Pegou o facão de cima do fogão de barro. Esperava estar de volta ao final do dia.
Saiu da casinha de pau a pique. O céu do meio-dia trazia o sol mais ardido.
Chamou Sarnento. Sarnento não deu resposta.
Continuou seu caminho pelo terreiro batido.
Deu falta do cabrito abandonado do boiadeiro. Será que estava o bicho fugindo de Sarnento? Decerto que sim. Levar o bicho embora, ninguém levara. Não havia ladrão por aquelas paragens.
De cenho franzido, mexeu na bainha do facão.
Um sentimento estranho se entranhava em seu ventre, subindo pela barriga e doendo o coração.
Mais à frente o sentimento ficou mais forte, principalmente com os urubus voando por cima do imbuzeiro. Maldito imbuzeiro que matara seu companheiro na estação passada. Agora era só ela, os filhos e Sarnento para aguentar a lida diária.
Mazé passou ao largo do imbuzeiro e adentrou a mata retorcida. A farinha já acabara e água não tinha.
O xiquexique mataria a fome e a sede enquanto a chuva não vinha. Se é que viria.
***
Nada de chuva no sertão. O inverno estava acabando e o verão estava à porta. Seria um ano inteirinho de seca.
O berro estridente das cigarras calava na alma do sertanejo tal como folha seca esfarelada ao menos sopro de vento ou pisada de criação.
O sol em brasa há muito esgotara as vazantes.
Água só de caminhão de pipa quando esse não ficava quebrado pelo caminho noduloso. Caminhão velho e enferrujado. Cansado de andar léguas. Tal e qual o povo daquela terra.
A criação de olhos encavados e costelas pontudas sob a pele era uma constante lembrança da morte sorrateira, ambulante malfazeja, que escolhia a dedo quem com ela iria. Fosse boi, cabra, jumento ou gente. A hora de cada um tinha seu dia. Sina.
A fome era tanta que nem queimar espinho resolvia. A reza para os adultos Às vezes servia. Para as crianças se dizia para dormir que a fome passaria.
Não passava. Nem passaria. Só se o sono fosse eterno, então não haveria mais fome, desespero... Agonia.
***
Mazé terminou de assar o xiquexique.
Os meninos comiam com gosto enquanto ela matutava quanto demoraria até perguntarem de Sarnento. O tempo de encherem a barriga. Vida sofrida.
Enquanto a pergunta não vinha, tinha uma tarefa ingrata a fazer. Sertanejo não escolhia tarefa. Fazia.
Com a enxada nas costas envergadas. Mazé foi para o terreiro onde uma vala aberta a esperava.
Jogou nela Sarnento e o cabrito sumido. Ambos espetados de imbuzeiro. Mortos, como seu companheiro.
Fincou a enxada na terra dura e poeirenta e pouco a pouco cobriu a vala. Parte dela ficou lá dentro.
Olhou para o céu num repente escurecido. Um relâmpago o cortou. Trovejou.
Com a primeira gota de chuva, Mazé chorou. Uma única lágrima. Melhor que nada. Era água.
***
Cacimbas cheias, mato cheirando, criação pastando.
Bicho e gente festejando a volta da vida. Mal começa e já termina. Aproveita enquanto há tempo. Viva.
A chuva molhava as almas e encharcava o chão. Embora sem dar sinal de trégua para fixar a semente, trazia esperança ao coração sertanejo de tão cansada e sofrida gente.
O lago renascera. Estava cada vez mais cheio. Mais uma semana e seria verão.
Da terra molhada brotaria o alimento. Criação e gente teriam o que comer.
A próxima seca não seria tão inclemente.
O som da vida retornava. A vida brotava da água.
***
Mazé estava preocupada. A aguaceira não parava e o lago estava à sua porta. Teria que partir. Com chuva e tudo ou a nado.
Mazé fez uma trouxa com roupa e outra com xiquexique. Água tinha de sobra no caminho. Colocou uma dentro da outra e levou a trouxa única à cabeça.
Tomou os bracinhos fininhos dos filhos em cada mão e pôs-se a caminho.
Passando o terreiro, a água estava nas canelas. De olhos esbugalhados viu descer arrastados pela água, gado berrando e o jumento manco zurrando. A lagoa antes seca, agora parecia um enorme rio faminto engolindo tudo pelo caminho...
E mais chuva caindo...
Mazé não perdeu tempo. Colocou o filho menor no ombro e o maior dependurado na cintura. Precisava andar até encontrar lugar alto para ficar. Demorara muito em sua decisão de fugir.
Nunca fugira de seca. Nunca imaginara fugir de chuva.
O trovão forte anunciava mais água. Um raio caiu desgalhando o imbuzeiro. O mesmo que matara Sarnento e o cabrito abandonado. O mesmo imbuzeiro que levara embora seu companheiro amado.
Com os ossos tremendo de cansaço, Mazé caminhou até o imbuzeiro desgalhado. Uma escada de galhos retorcidos seria poleiro para ela e seus filhos.
Outro trovão. Depois um raio. Mais outro trovão.
A chuva grossa era como a picada de mil agulhas em sua pele ossuda. Os meninos tremiam de frio. Em algum lugar ali próximo, um raio inclemente partira outra árvore. Talvez o juazeiro.
A água subia e mais cabra descia. Uma boneca de pano. Um pé de sandália de menina.
Mazé olhou para a água que quase tocava seus pés. Uma folha de juazeiro desceu pela água, rodopiou e sumiu debaixo do rio lamacento. Folha afogada.
Mazé pensou na sina do sertanejo. Ou morria de sede ou morria de água.
Para não assustar as crianças fez uma prece contida.
Sertanejo quando não tem como fugir, reza.
Mazé rezou...
O texto Folha seca, folha afogada, de Luciane Viana Braga de Carvalho, Ane Braga, recebeu menção honrosa no Concurso Novo Milênio de Literatura 2011 da Faculdade Novo Milênio.