Tia Dorina é uma “idosa” de oitenta e cinco anos que acaba de receber alta do Hospital da Ordem Terceira
da Penitência, após dois meses na Unidade de Tratamento Intensivo, a tal UTI. Depois de um derrame em decorrência de hipertensão arterial negligenciada, passou mal, teve dor de cabeça, perdeu a força e o movimento dos lábios e de um dos braços, e foi parar toda torta no hospital, com sangramento lá dentro do cérebro. Ô azar.
A internação foi penosa, necessitou de coma induzido e de tubos. Mas aos poucos recuperou-se, voltou a
falar, desentortou-se o rosto e já está de volta a casa, até pensando em escolher uma nova cor para pintar os cabelos.
Minha mãe vibrou ferozmente com a desgraça de Tia Dorina. Eu não. Nunca fez parte de meu modo de ser
isto de ser feliz com sofrimentos dos outros, por mais que os outros possam ter feito por merecer. Disse ela – minha
mãe – que vinha desejando um fim trágico para ela há cerca de quarenta anos – que é quase a minha idade. Pois quando eu nasci, um dos primeiros netos ou sobrinhos-netos da família, nasci com os vinte dedinhos – como era hábito temeroso contar no berçário naquela época de talidomida, mas desafortunadamente nasci sem um pequenino pedaço da orelha esquerda. E, segundo conta minha mãe, mitomaniacamente ou não, tia Dorina fez deste considerado “defeito físico” motivo de grande escárnio e comemoração na gigantesca família onde fui inserido, no meio de dez tias-avós absolutamente fofoqueiras e maledicentes. Tia Dorina teria ferido minha mãe em seu maior temor, talvez, no medo de ter um filho defeituoso de corpo ou de caráter. No meu modo de ver durante a infância e a adolescência, a falta de um pedaço do lóbulo de minha orelha foi mesmo um motivo de vergonha para minha mãe somente, pois talvez se considerasse uma fêmea má geradora ou má nutriz, já que seu filho tinha pedaço de menos no corpo. Passou minha infância e adolescência me assediando para me submeter a uma cirurgia plástica, na qual uma pequena pele da nádega seria transplantada para a orelha e eu, finalmente, teria o corpo “perfeito”, talvez neutralizando o escárnio de tia Dorina. Para isto eu teria que ser exibido novamente à família, como se fosse um troféu de novo no berçário. Acontece que eu sempre gostei muito mais de minha orelha defeituosa do que da outra teoricamente perfeita, porém maior e menos harmoniosa com meu rosto – aos meus olhos. E com o tempo passando, verdade isto é, nem me lembrava mais que orelha eu tinha, a não ser na hora do banho, por ser parte do corpo tão sebácea e tão dada a odores azedos, merecendo o maior dos caprichos com o sabonete. E sim, como esquecer, quando
ia ao pediatra, Dr. Gregório, que sempre me dizia que o que faltava na orelha estaria muito provavelmente sobrando no cérebro. Acho que ele pensava que me consolava dizendo essa grande idiotice. Ou minha mãe transmitia a ele este trauma envergonhado de ter um filho com a orelha diferente. Hoje entendo que certas asneiras têm que ser ditas, se delas resultar um período de conforto e harmonia a quem as ouve.
Mas vamos às verdades. (Continua na Parte II)