Ensaio Sobre o Pó - Bruno de Faria


Um dos momentos em que mais me entrego à reflexão sobre a vida e a morte é na hora em que limpo o filtro do aspirador de pó. A cada duas semanas. Aspirando em dias alternados um pequeno apartamento de dois quartos que fica quase sempre lacrado, recolho cerca de 150 gramas de pó e de cabelos, lascas de piso e de parede, além de muitos insetos mortos, fibras não-identificáveis, pequenos ferrinhos, farelos de pão, resíduos de cera e de verniz dos móveis. E sempre me assola um espanto que é o mesmo espanto que se me dá quando olho estrelas, algo raríssimo de se ver hoje em dia, ou quando vi a cauda do cometa deixando um rastro de seu resto, ou vejo um velório em plena decomposição, ou mesmo um recém-nascido em ávida aquisição tecidual e organização funcional das células. E me ocorre uma espécie de porrada no pensamento: ao pó retornarás. E de onde vem tanto pó, de minhas células sempre desprendendo-se de minha superfície (li que 80% do pó de uma casa é pura pele!), da tinta das paredes esfoliando de ressecamento, das solas dos sapatos que trazem das ruas restos de tudo que se possa imaginar, das fibras de algodão e de linho desentrelaçando-se das roupas que uso, de meus cabelos caindo, e do sal evaporando de meu suor. O sal condensa-se novamente, por ressecamento, e cai ao chão. Assim retorno a cerca de sessenta bilhões de anos, quando tudo já estava em esfarinhamento. Poeira de estrelas?, ou as estrelas são realmente gigantescas ou somos simplesmente a menor das miniaturas. E penso nas criaturas que habitavam aqui, há tanto tempo, que foram sendo substituídas por criaturas cada vez menores. Ainda hoje as criaturas maiores tendem a desaparecer. A miniaturização parece ser a única forma de sobrevivência. E o ser humano, que tinha cerca de um metro e sessenta, hoje chega a dois metros tão facilmente, tenderá ao desaparecimento devido ao agigantamento? Pois parece que chegamos ao tamanho crucial de risco para o nosso fim. Tento não me desconcentrar: é limpeza de aspirador e nada mais. Porém retorno à visão tenebrosa de saírem 150 gramas de pó em duas semanas de aspiração. O caminho parece ser invariavelmente aquele. Encho minha mão com aquele pó, compacto com ajuda de um pouco de água e o atiro um tijolinho feito dele no vaso sanitário. Ali ele se expande, mas dou a descarga antes que leve outro susto. Será espalhado na unidade de tratamento de esgoto, e depois no meio do oceano, de onde provavelmente servirá de alimento, poluente, veneno, evaporativo para formação de outras coleções de criaturas que, por sua vez, estão também a caminho do destino em pó.

O pó me assusta. Mais ainda me assusta tudo o que faço para que consiga atrasar ao máximo o meu próprio destino, que é esfarinhar, ressecar, até que eu me resuma de novo a nada.


Bruno de Faria é médico e escritor.Suas obras podem ser admiradas em:

http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=76789

Boa Leitura!

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